28 Outubro 2021
“As décadas de germinação das ideias de ultradireita conseguiram mudar significativamente as sociedades ocidentais, tornando-as mais propensas a abraçar novas propostas e cada vez mais radicais”, escreve Daniel Vicente Guisado, cientista político, em artigo publicado por Público, 25-10-2021. A tradução é do Cepat.
O fenômeno da ultradireita não é novo. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, diferentes grupelhos surgiram para questionar, de forma matizada e soterrada devido ao resultado bélico, os regimes liberais que foram se erguendo tanto nas ruínas dos fascismos, quanto nos países com democracias consolidadas antes.
O consenso era básico e claro para enfrentá-los: Estados de bem-estar fortes, reconstrução e direitos fundamentais. As novas formações de extrema direita, ancoradas na nostalgia, se opunham a essas regras democráticas.
Com o tempo, e devido à marginalidade que essas formações encontravam em todos os países ocidentais, a extrema direita foi mudando de objetivo e estratégia. O adversário já não era o sistema democrático, mas as elites políticas, os novos valores pós-modernos, as esquerdas.
As consequências de Maio de 68 aceleram essa dinâmica até forçar os especialistas a mudar a tipologia de estudo. Não estávamos mais diante da extrema direita opositora à democracia, mas diante de uma direita radical, em certos momentos populista, que aceitava as regras democráticas e buscava a integração de seus programas e ideias nativistas, autoritárias e populistas na sociedade.
A aparência é importante. A estratégia não era mais derrotar, mas mudar por dentro. O estabelecimento dos regimes liberais no ocidente eram muros quase impenetráveis. A nova direita radical viu um filão de ouro na imigração, na integração supranacional e nas novas elites políticas para crescer eleitoralmente. A guerra ao terror que se instaurou após o 11-S, a crise econômica de 2008 e a de refugiados por volta de 2015, foram suas novas munições.
Dados concretos. A ultradireita ficava longe da média de 5% de apoio eleitoral na Europa antes dos anos 1980. Com a entrada do novo século, começou a superar em muito essa porcentagem. A explosão da crise mundial a colocou nos 10%. Finalmente, hoje, é difícil encontrar um país onde essas formações estejam abaixo dos 15%.
A extrema direita primeiro e a direita radical depois, há décadas, vêm desenvolvendo todo um processo de germinação. Não é um fenômeno novo ou excepcional. O que vemos hoje é o resultado do ontem e do anteontem. Da gradual normalização de ideias e propostas na sociedade. E assim como os partidos e líderes foram substituídos por novos enfoques e lideranças, a partir dos anos 1980, um fenômeno parecido pode começar a ocorrer em breve.
Ninguém ignora dois novos levantes radicais que estão ocorrendo no coração da Europa ocidental. Por um lado, Giorgia Meloni não apenas superou Matteo Salvini, como também lidera a imensa maioria das pesquisas, desde o início do verão. Apesar das semelhanças entre os dois expoentes da direita radical italiana, com Meloni existe um fio grosso e visível que a vincula com Giorgio Almirante, histórico líder do Movimento Social Italiano surgido do DNA da República Nazifascista de Salò.
Assim como também ninguém está alheio aos últimos terremotos políticos na França, onde o polemista e extremista Éric Zemmour, sem nem sequer ter oficializado sua candidatura para as eleições presidenciais do próximo mês de abril, já é avaliado cara a cara com Le Pen nas pesquisas. A surpresa pode explodir e nos encontrar, em alguns meses, diante de um segundo turno entre Macron e Zemmour. Assim como no caso italiano, o polemista pode guardar muitos paralelismos programáticos com Le Pen, mas suas formas e seus apelos vão um passo além.
A priori, duas causas podem estar correlacionadas com o surgimento dessas novas opções políticas. Uma que é óbvia alude às características espaciais da competição política. Elas nos dizem que os movimentos abrem novos espaços.
Há anos, Le Pen busca a moderação para maximizar suas opções presidenciais. Salvini buscou substituir Berlusconi como grande pai da direita italiana. Ambos se deslocaram significativamente de seus programas e discursos iniciais para ser mais eficientes na arena eleitoral, logo, novos espaços à sua direita se abriram.
Essas novas brechas políticas também podem estar correlacionadas com a falta de resultados ou, em seu defeito, com decepções por causa dos poucos resultados. Nesses casos, novos atores podem infundir novos impulsos renovadores pela direita.
No entanto, há uma segunda causa que já apareceu mais acima. As décadas de germinação das ideias de ultradireita conseguiram mudar significativamente as sociedades ocidentais, tornando-as mais propensas a abraçar novas propostas e cada vez mais radicais.
É nesse sentido que vai um dos últimos relatórios do think tank francês Fundação para a Inovação Política. Em suas 40 páginas, encontramos provas de estudos quantitativos que demonstram a importante conversão da França, Alemanha, Itália e Reino Unido aos valores de direita.
O estudo demonstra como quatro em cada dez cidadãos desses países se posicionam à direita, em contraposição a apenas 27% que se definem como de esquerda. Uma correlação que só aumentou nos últimos anos e que, com nuances, é transversal nas diferentes áreas ocupacionais. De empresários a trabalhadores de colarinho azul e branco, a maioria se posiciona à direita.
A razão dessa conversão pode estar relacionada com as opiniões que se tem sobre a imigração, que, conforme apontado antes, faz parte do núcleo essencial da direita radical. Motor de seu crescimento recente.
Por exemplo, na hora de perguntar aos eleitores dos diferentes países se seria necessário fechar, abrir ou deixar as fronteiras nacionais como estão em relação à migração, todos apostam majoritariamente em se fazer o esforço de fechá-las mais. Embora majoritária entre as formações extremistas, é uma opinião compartilhada por eleitores dos dois lados ideológicos e partidários. Dos partidos de esquerda aos de direita.
Também existe uma vitória pela individualidade. Independentemente de partidos ou ideologias, a grande maioria dos cidadãos acredita que as pessoas podem mudar a sociedade através de seus atos, podem escolher livremente sua vida e possuem total controle sobre o seu próprio futuro.
Ao serem questionados se os desempregados, se quisessem e se esforçassem, poderiam encontrar trabalho, a grande maioria acredita que sim. Uma opinião que encontra maior apoio entre as classes socioprofissionais mais baixas.
Um individualismo, além disso, que se conecta com a narrativa da meritocracia. Entre as pessoas que se sentem de direita, 71% pensam que, com esforço, qualquer um pode triunfar. Entre aqueles de esquerda, o número ainda é muito alto, 58%.
Em um terreno fértil como esse, que se viu reforçado nos últimos tempos, é mais racional observar o surgimento e consolidação de opções radicais como as acima mencionadas. Diante de uma Europa à direita, com opções de ultradireitas históricas caminhando para a moderação, é normal que comece a ocorrer uma substituição das mesmas por novas opções que levantam a bandeira da firmeza dos ideais. Figuras como Zemmour ou Meloni que se vangloriam de suas posturas e valores claros.
Sua essência é a tentativa de revalorizar uma política mais própria de outros tempos. Aquela que diz a você que não existem táticas para maximizar votos. Você vê o que existe. É pegar ou largar. Além de terem os ventos a seu favor, possuem a clareza de que devem oferecer falsas seguranças, explorando medos atuais.
A narrativa se apresenta como uma luta civilizatória. Meloni apelando ao “Deus, Pátria e Família” e Zemmour fazendo uso da teoria da substituição, a ideia de uma França onde não haverá mais franceses. A subversão das democracias liberais a partir delas mesmas. O que está em jogo não são medidas concretas, é o devir de nossa civilização religiosa, étnica e nacional, dizem.
Propõem uma modernidade passada ancorada no medo. Como pando de fundo, surge a dúvida de se estar diante de um momento conjuntural ou o início de uma nova ofensiva. De imediato, a sensação de tontura diante das curvas que vêm. Pelo caminho, o objetivo de construir um desejo que supere o seu medo.
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Uma nova geração de ultradireita se levanta na Europa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU