25 Outubro 2021
"A vitória de Lula seria progressiva, mas um novo governo de colaboração de classes seria regressivo. O problema é saber se este critério deve ser suficiente para impossibilitar um apoio eleitoral no primeiro turno. Em especial, quando se admite esse apoio no segundo", escreve Valerio Arcary, professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da Resistência/PSOL, em artigo publicado por Brasil de Fato, 21-10-2021.
Conheces o marinheiro quando vem a tempestade.
Sabedoria popular portuguesa
O PSOL realizou o seu Congresso Nacional e reafirmou a aposta do partido na luta pelo impeachment de Bolsonaro, impulsionando a mobilização de massas.
Entretanto, nenhum setor importante da burguesia quer a queda de Bolsonaro antes de 2022. Mesmo aqueles que evoluíram nessa direção, em algum momento, recuaram. A perspectiva da derrubada de Bolsonaro passou a ser improvável depois da “apoteose” da mobilização reacionária que levou centenas de milhares às ruas no dia sete de setembro.
Nesse contexto, o Congresso aprovou, também, uma resolução que autoriza a direção a defender uma mesa de negociação com o PT, e outros partidos de esquerda, sobre um programa de reformas estruturais e medidas anticapitalistas.
O objetivo é explorar a possibilidade de uma candidatura presidencial comum. O PSOL aprovou, também, uma resolução que desautoriza, interdita e proíbe a participação em governos de coalizão em que estejam representados os inimigos de classe, ou que tenham uma orientação que ataque os direitos dos trabalhadores.
Ou seja, sinalizou que está de “mente aberta” para buscar um acordo em torno de um programa comum de revisão de todas as medidas reacionárias aprovadas nos últimos cinco anos, mas, ao mesmo tempo, que esse acordo não significa disposição de integrar um possível governo Lula. Duas decisões que se complementam.
Estas posições foram tomadas considerando cinco elementos mais favoráveis da nova situação internacional, em especial na América do Sul, depois de um ano e meio de pandemia:
(a) a derrota eleitoral de Trump;
(b) a vitória eleitoral do MAS na Bolívia contra o golpe;
(c) a vitória de uma candidatura de esquerda no Peru;
(d) o triunfo, ainda que parcial, da onda de mobilização de massas no Chile com a eleição da Assembleia Constituinte;
(e) a resistência na Venezuela contra as pressões imperialistas pela derrocada do governo Maduro.
Identificou que, à exceção da Colômbia, talvez, onde se aproximam eleições presidenciais, mas o uribismo permanece muito forte, a situação brasileira parece ser a mais recuada.
Mas, trata-se, realmente, de um giro tático, em função, em primeiríssimo lugar, das derrotas acumuladas desde 2016, ou seja, de uma avaliação da relação social de forças. Em todas as eleições, até hoje, o PSOL lançou candidato presidencial próprio: Heloísa Helena em 2006, Plínio de Arruda Sampaio em 2010, Luciana Genro em 2014 e Guilherme Boulos em 2018. Consiste, portanto, em um reposicionamento. Não poderia deixar de existir dúvidas e objeções.
Uma importante minoria de 40% critica esta posição, apaixonadamente, quase como um “pecado” político. Não ter uma candidatura própria é denunciado como uma capitulação que ameaçaria a existência do PSOL: um armagedon ou “fim do mundo”.
Para formar um juízo do debate, três elementos centrais devem ser equacionados: o que é o perigo bolsonarista, qual é o legado da tradição marxista sobre luta contra o perigo neofascista, e qual é o lugar do PT.
a. É preciso ser rigoroso quando estudamos nossos inimigos. O bolsonarismo não é somente uma corrente eleitoral de extrema direita, é um partido de “combate” em construção e, mais importante, está no poder.
Movimentou centenas de milhares de uma massa de classe média privilegiada, exaltada e furiosa no passado sete de setembro. Partidos eleitorais, especialmente quando estão no poder, não se apoiam em mobilizações de impulso contrarrevolucionárias.
Enganam-se os que pensam que Bolsonaro é, somente, um espantalho. Um espantalho político é uma ameaça imaginária. Ele não é um “bode dentro da sala”. Não é uma ilusão conspiratória caracterizar o bolsonarismo como uma corrente neofascista.
O governo Bolsonaro é uma coalizão de extrema-direita com um projeto bonapartista. E a retórica golpista é, simultaneamente, demagogia tática e aposta estratégica para a consolidação de uma corrente com influência de massas de tipo fascista, se preparando para uma luta longa, seja qual for o desenlace eleitoral.
b. Bolsonaro não é um “cadáver insepulto”. O resultado das eleições de 2022 é ainda imprevisível. A eleição de Lula permanece, neste momento, um ano antes das eleições presidenciais, a hipótese mais provável. Mas essa é uma premissa em cálculo de probabilidades com margens de incerteza.
Bolsonaro vai se apresentar como o inimigo nº 1 da esquerda e enfrentá-lo é uma questão de princípios irredutível. Sim, os princípios importam. Combater o fascismo sem vacilação é um princípio. Ignorá-lo seria, também, fatal. Desmoralizaria a nossa base social.
O fascismo se combate em todos os terrenos, inclusive no terreno eleitoral, mas não poderá ser derrotado somente com um voto na urna. A luta será complexa. O debate sobre qual deve ser a tática eleitoral do PSOL só será resolvido, prudentemente, no primeiro semestre do ano que vem, o que é justo. Mas uma tática eleitoral se define em função de um objetivo central.
Não podem ser dois, três, quatro, objetivos equivalentes. Quando se trata de uma luta pela consciência de dezenas de milhões não se pode lutar contra todos ao mesmo tempo. Nós não escolhemos as condições "ideais" para lutar.
Apresentar uma candidatura própria no primeiro turno significará, mesmo que diferenciando o ataque a Bolsonaro das críticas a Lula, uma localização perigosíssima. É razoável escolher Bolsonaro como inimigo e Lula como adversário? É sensato preferir deixar para combater Bolsonaro, ao lado de todos os movimentos sociais e do PT, somente em um hipotético segundo turno?
c. A hipótese de que a rejeição a Bolsonaro será suficiente para que ele seja, facilmente, derrotado é somente uma conjectura. E o problema não é somente eleitoral. O perigo de uma derrota histórica esteve, seriamente, colocado e, embora hoje mais afastado, deve nos preocupar, porque ainda não está descartado.
Uma derrota histórica é uma inversão da relação social e política de forças de máxima gravidade e, tão desfavorável, que uma geração inteira se desmoraliza por um intervalo longo. Contrafactuais são exercícios lógicos temerários, porém, inescapáveis, quando refletimos sobre o campo de possibilidades do passado.
Hoje sabemos que o impacto da pandemia foi chave para o desgaste ininterrupto do último ano e meio. Mas sabemos, também, que a influência do bolsonarismo se mantém em, pelo menos, um piso de 20% do eleitorado e o seu núcleo duro não é menor que 10%. Muito difícil prever que não conseguirá chegar a um segundo turno. E não podemos descartar que uma parcela da fração burguesa que apoia uma terceira via, e do setor de massas que a acompanha, se desloque para o apoio a Bolsonaro.
a. A tática da Frente Única foi elaborada pela III Internacional e, posteriormente, desenvolvida por Leon Trotsky no contexto dramático da luta contra o nazismo na Alemanha. A ideia mais importante é simples. Quando em uma situação defensiva, os revolucionários devem lutar pela unidade das organizações que representam os trabalhadores e oprimidos, portanto, também, de todos partidos da esquerda, inclusive, os mais reformistas, para construir uma trincheira, barreira, muralha contra o inimigo de classe.
O objetivo é impulsionar a luta. O eixo da tática é a compreensão de que a unidade fortalece a confiança e gera melhores condições de colocar em movimento milhões e sair da defensiva. A tática prioriza o terreno da ação direta: a preparação de atos, passeatas, e greves, quando possível, para mudar a relação social de forças.
Foi isso que o PSOL fez ao ajudar à construção da campanha "Fora, Bolsonaro" que realizou seis jornadas nacionais a partir de uma convocação unitária das Frentes Brasil Popular (onde o PT tem a maior influência) e Povo sem Medo (onde o PSOL tem maior autoridade).
Trotsky não criticou o PC da Alemanha, por exemplo, por apresentar candidatura própria. Não porque subestimasse Hitler. Escreveu um clássico alertando, incansavelmente, o perigo da derrota histórica, que, finalmente, ocorreu. Mas, porque considerava que o peso relativo do PC o legitimava. Ter força própria conta muito na hora da definição da tática dos revolucionários. Mas ela não exclui a possibilidade, também, da apresentação de uma Frente Eleitoral de Esquerda. Essa decisão repousa no critério da avaliação da relação política de forças, tanto na sociedade, quanto dentro da esquerda.
b. Afinal, o PT é um partido de esquerda? Na tradição marxista, o critério chave para definir se um partido é de esquerda é social, de classe, não ideológico. Ou seja, admite-se que os trabalhadores são um sujeito social que se representa por diferentes partidos, dos mais moderados aos mais radicais.
Existem aqueles que discordam. Defendem que Ciro Gomes, por exemplo, um demagogo burguês especialista em retórica histriônica, estaria à esquerda do PT. Há quem defenda que um partido se define, essencialmente, pela sua linha política: ou é de direita, centro, esquerda ou as variantes intermediárias.
Esse critério é insuficiente e ingênuo. O vocabulário político flutua de acordo com a mudança nas relações sociais e políticas de força e, também, pela presença no governo ou na oposição. Nenhum partido burguês jamais participou de um governo dos trabalhadores em dinâmica de ruptura com o capitalismo.
Mas, há mais de cem anos, a burguesia logrou atrair partidos operários para a colaboração em governos burgueses. A elaboração marxista conceituou que um partido reformista, quando na oposição, é um partido operário-burguês, e quando em governos de colaboração de classes, é um partido burguês-operário, uma solução teórico-dialética.
c. O PT é o maior partido que a classe trabalhadora brasileira construiu em sua história. Surgiu como um partido operário de massas de tipo laborista. Não deixou de o ser, apesar de treze anos de governos de colaboração de classes. É um tipo especial de partido de esquerda. É um partido eleitoral e reformista.
É um aparelho eleitoral profissional, mas não porque concorre a eleições. É eleitoral, porque depende, há muitas décadas, dos mandatos parlamentares e do financiamento público para sobreviver, e não da sua militância. É reformista, não porque luta por reformas, mas porque está adaptado ao regime. Reformista, porque defende a regulação do capitalismo.
Mas a condição eleitoral e uma política reformista não transformam o PT em um partido burguês. Um partido é burguês quando mantém relações estruturais com alguma fração dos capitalistas. Portanto, o PT é muito diferente do peronismo. Conheceu uma gênese nos anos oitenta, o apogeu na virada do milênio, e entrou em uma lenta decadência, pelo menos, desde 2013, mas iniciou uma recuperação após o golpe institucional de 2016.
Reconhecer a natureza de classe de um partido não equivale a dizer que sua política representa os interesses da classe. É muito mais complicado. Um partido reformista pode ser um instrumento adaptado à gestão do capitalismo e, ao mesmo tempo, relativamente, independente da burguesia. Isso significa que tem a liberdade para fazer “giros políticos à esquerda”, ainda com maior impulso se está na oposição.
a. Há cinco anos, o PT foi deslocado do governo, não cinco meses. O ponto de partida de qualquer discussão deve ser a resposta a uma pergunta inescapável: houve um golpe institucional no Brasil em 2016 contra o governo Dilma Rousseff, sim ou não?
Estamos ainda em uma situação reacionária, portanto, defensiva, sim ou não? A minoria no PSOL acredita que a pergunta chave não é essa. Pensam que a questão decisiva é caracterizar que a candidatura Lula terá um programa reformista e um arco de alianças, mesmo que somente com a sombra da burguesia.
Essa avaliação é muito provável. Em caso de vitória eleitoral do PT, justifica, de forma irredutível, a decisão de não entrar em um governo Lula, por razões de princípio. Mas a derrota de Bolsonaro, ainda que eleitoral, seria ou não vitória importantíssima? Temos, portanto, um paradoxo dialético.
A vitória de Lula seria progressiva, mas um novo governo de colaboração de classes seria regressivo. O problema é saber se este critério deve ser suficiente para impossibilitar um apoio eleitoral no primeiro turno. Em especial, quando se admite esse apoio no segundo.
Porque é bom lembrar que essa posição é uma mudança: o PSOL nunca chamou ao voto no PT no segundo turno. Esta premissa desvaloriza dois elementos chaves. Primeiro, o perigo Bolsonaro. Segundo, a imensa maioria dos trabalhadores e dos oprimidos, inclusive, entre a vanguarda, politicamente, mais consciente, apesar de tudo, e esse “tudo” é imenso, já decidiu apoiar Lula desde o primeiro turno”.
b. A bússola da política revolucionária não se reduz à avaliação das condições objetivas para a definição das táticas. Um dos pilares “graníticos” na herança marxista, em particular, o saudável “empirismo” leninista, é a valorização das oscilações da consciência de classe. A esperança em Lula é maior do que a expectativa no PT.
Lula deixou a presidência em 2010, onze anos atrás, com elevado prestígio, uma aprovação superior a 80%. Lula representa, diante da consciência dos trabalhadores e da juventude, um instrumento para derrotar Bolsonaro, sim ou não? A experiência de massas com o PT já foi feita? A experiência com o PT foi ou não interrompida?
A resposta é que, mesmo entre o ativismo mais jovem e radicalizado, a liderança de Lula permanece muito grande. A resiliência de sua influência, depois até da campanha que o levou à prisão, é um dos fatos centrais da conjuntura. Um arrastão lulista no espaço de oposição a Bolsonaro é, portanto, uma hipótese muito provável.
Um arrastão é uma onda na forma de tsunami que leva tudo no seu caminho. Não haverá qualquer espaço para ser disputado à esquerda de Lula. Mas, o mais triste não seria uma votação dramaticamente reduzida. O mais grave é que se romperia o diálogo com o melhor do movimento sindical, feminista, negro, estudantil, LGBTIA+, ambiental, da cultura e dos direitos humanos. O candidato do PSOL teria que passar, inescapavelmente, toda a campanha eleitoral explicando suas diferenças com Lula, não a necessidade de derrotar Bolsonaro.
c. Considerar a relação política de forças no interior da esquerda, seriamente, não é oportunismo, mas inteligência tática. O PSOL é ainda um partido muito minoritário entre os trabalhadores e o povo. Mas o PSOL não é irrelevante, nem no terreno da ação direta, nem no campo eleitoral.
Deve se preocupar em não abraçar uma tática que o reduziria a uma condição invisível e marginal. A sua afirmação tem importância revolucionária. Lançar candidato próprio é uma tática eleitoral, não uma estratégia. Se fosse uma estratégia, seria autoproclamação permanente.
A tática da Frente Eleitoral de Esquerda não diminui o PSOL a um satélite do PT. Um possível apoio a Lula para as eleições presidenciais não significa deixar de construir o PSOL como um polo de reorganização da esquerda mais combativa, portanto, crítico e independente do PT.
Primeiro, porque o PSOL pode integrar a Frente ou somente chamar ao voto em Lula, dependendo de se conseguir um acordo no programa e do arco de alianças.
Segundo, porque o PSOL apresentará candidatos próprios para deputados federais e estaduais em todo o país.
Terceiro, porque já decidiu lançar Guilherme Boulos como pré-candidato a governador em São Paulo que será, depois da presidencial, a mais importante para cargos majoritários. Por último, porque o PSOL não negocia a colaboração, integração ou participação em um possível governo Lula.
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Duas táticas no Congresso do PSOL. Artigo de Valerio Arcary - Instituto Humanitas Unisinos - IHU