28 Setembro 2021
"O apoio do Papa Francisco às proteções legais para os casamentos homossexuais também representa um desafio para a Igreja em países cujas leis e costumes se opõem violentamente a qualquer tipo de aceitação das pessoas LGBT”, escreve o jesuíta estadunidense James Martin, em artigo publicado por America, e traduzido e republicado por Settimana News, 25-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos últimos meses, o Santo Padre falou várias vezes sobre a abordagem pastoral da Igreja para com as pessoas LGBT, em diferentes momentos. Dependendo das simpatias de cada um, as declarações do Papa Francisco poderiam parecer uma lufada de ar fresco; enquanto para outros poderiam representar um escândalo; e para outros ainda, suas posições poderiam parecer confusas ou talvez até contraditórias.
A meu ver, o papa está recortando um espaço devido há tempo e necessário e para as pessoas LGBT na Igreja Católica, com alguns limites claros. Mas mesmo com esses limites, trata-se de um espaço muito mais amplo do que qualquer um de seus antecessores teria tolerado.
Alguns comentários recentes do Papa Francisco evidenciam esta nova realidade. Recentemente, ele falou aos jesuítas na Eslováquia durante a sua viagem pastoral e afirmou a necessidade de "cuidado pastoral para os casais homossexuais" - enquanto, ao mesmo tempo, expressou sua oposição à "ideologia de gênero".
Durante uma coletiva de imprensa no voo de retorno da Eslováquia, ele disse: "Se um casal homossexual quiser levar uma vida junto, o estado tem a possibilidade de dar-lhes segurança, estabilidade, herança". Na mesma resposta, ele também afirmou a posição tradicional da Igreja Católica sobre o matrimônio: na Igreja, é um sacramento reservado para um homem e uma mulher.
E apenas poucos meses atrás, em uma carta endereçada a mim por ocasião da Outreach LGBTQ Catholic Ministry Conference, ele encorajou aqueles que lidam com o "rebanho" LGBT (ele usou a palavra espanhola feligresia) a aproximar-se deles no "estilo de Deus”, que descreveu como tendo “proximidade, compaixão e ternura”.
Em essência, o Papa Francisco está encorajando a Igreja a acompanhar pastoralmente as pessoas LGBT, o que significa tratá-las com "o respeito, a compaixão e a sensibilidade" que o Catecismo da Igreja Católica exige: ouvir suas diferentes experiências; ajudá-las a se sentirem mais bem-vindos em sua própria Igreja; e apoiar os indivíduos e os grupos que os assistem nas paróquias, nas escolas e nos outros lugares.
E ele demonstrou que muitas vezes está disposto a ficar do lado deles contra a homofobia. Durante conferências de imprensa anteriores a bordo, Francisco disse que as pessoas LGBT nunca deveriam ser expulsas de suas famílias e que Jesus nunca diria "afaste-se de mim" para um homossexual. Como acontece com grande parte de sua abordagem pastoral em geral, sua abordagem às pessoas LGBT pode ser caracterizada pela palavra "acompanhamento".
A abordagem de Francisco é temperada por sua desconfiança em relação ao que é definido como "ideologia de gênero" ou "teoria de gênero" que, segundo os críticos, impõe construções ideológicas às pessoas e as encoraja a escolher ou mudar de gênero; assim como sua ênfase nos ensinamentos tradicionais sobre o sacramento do matrimônio. Francisco, que se opõe às ideologias em geral como "abstratas" e, portanto, separadas das experiências das pessoas, definiu a ideologia de gênero como "perigosa" em seu discurso aos jesuítas eslovacos.
A Congregação do Vaticano para a Educação argumentou que "culmina na afirmação da emancipação completa do indivíduo de qualquer definição sexual dada a priori e no desaparecimento das classificações vistas como rígidas demais".
O espaço que Francisco criou, portanto, inclui o cuidado pastoral das pessoas LGBT na Igreja e a aceitação dos casais do mesmo sexo na esfera social - delimitada pelas normas sobre o matrimônio sacramental e sua posição sobre a "ideologia de gênero".
Permitam-me falar sobre dois aspectos dignos de nota desse novo "espaço".
Em primeiro lugar, as palavras constantemente encorajadoras do papa para os casais do mesmo sexo em uniões civis e seu desejo não apenas de defender as proteções legais, mas de acompanhá-las pastoralmente é, para dizer o mínimo, revolucionário. Essa abordagem está em contraste com a recente descrição do Papa Emérito Bento XVI do casamento homossexual como uma "distorção da consciência" e o comentário de Bento XVI em 2012, no qual o vê como "uma ameaça ao futuro da própria humanidade".
O apoio do Papa Francisco às proteções legais para os casamentos homossexuais também representa um desafio para a Igreja em países cujas leis e costumes se opõem violentamente a qualquer tipo de aceitação das pessoas LGBT.
Um livro recente de Mark Gevisser, intitulado The Pink Line, oferece uma visão abrangente e muitas vezes chocante das barreiras impostas às pessoas LGBT que vivem como indivíduos, quanto mais como casais, em muitas partes do mundo. O livro de Gevisser descreve em detalhes os espancamentos, os assédios e as\violências que as pessoas LGBT, especialmente os casais, devem enfrentar e que abrigam algumas a fugir de seus países como refugiados.
Assim, as palavras do papa, que podem parecer mornas no Ocidente, podem ser recebidas como revolucionárias em outros lugares.
O incentivo de Francisco para alcançar pastoralmente não apenas os indivíduos LGBT, mas, como ele disse aos jesuítas eslovacos, também os "casais homossexuais", está em desacordo com a prática de muitas instituições nos Estados Unidos, muitas vezes com o incentivo de bispos locais, de demitir funcionários que vivem em casamentos homoafetivos. Demitir as pessoas, privá-las de seu sustento e retirá-las de cargos muitas vezes ocupados por muito tempo em suas comunidades, é o oposto do "cuidado pastoral".
A questão da "ideologia de gênero" é mais complicada. É um termo notoriamente amorfo que parece ter tantas definições quanto opositores. Mas, no geral, passou a significar qualquer abordagem filosófica ou, mais geralmente, intelectual que coloque em discussão o sexo tradicional ou os papeis de gênero. Portanto, é visto novamente como uma "ideologia".
A realidade das experiências vividas pelas pessoas LGBT, conforme elas as relatam, parece ser mais complexa. A grande maioria das pessoas LGBT, especialmente as pessoas trans, dizem que não estão respondendo a nenhuma "ideologia" filosófica ou política, mas que estão vivendo o que acreditam que são, muitas vezes diante das mais duras perseguições. Como Luisa Derouen, uma freira dominicana que trabalha com pessoas trans desde 1999, escreveu em um e-mail: “As pessoas trans vivem em uma condição neurobiológica complexa. É a sua experiência de vida não escolhida”.
Ou como Ray Dever, um diácono católico e pai de uma criança transgênero, que disse em um artigo publicado na US Catholic: “Quando ouço declarações sobre uma 'ideologia de gênero', elas simplesmente não me parecem verdadeiras. Qualquer pessoa com experiência significativa em primeira mão com indivíduos transgêneros ficaria desconcertado com a sugestão de que pessoas trans são de alguma forma o resultado de uma ideologia. É um fato histórico que, muito antes de haver programas de estudos de gênero em qualquer universidade ou a frase ideologia de gênero jamais ter sido proferida, as pessoas transgêneros estavam presentes, reconhecidas e até mesmo apreciadas em algumas culturas em todo o mundo".
A abordagem pastoral do Papa Francisco, portanto, pode ser vista como aquela que busca oferecer cuidado, acolhimento e acompanhamento, dentro de certos limites. Mas o espaço que recortou é muito mais amplo do que o espaço limitado concedido por seus antecessores. A aproximação de Francisco, a meu ver, expressa e se assemelha muito mais à "proximidade, compaixão e ternura" de Deus para com uma comunidade de pessoas que são nossos irmãos, irmãs e irmãos.
A Igreja ainda tem um longo caminho a percorrer, mas Francisco está nos convidando a caminhar na direção certa.
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Francisco e as pessoas LGBT - Instituto Humanitas Unisinos - IHU