11 Setembro 2021
Enquanto o mundo mantém seus olhos presos na situação afegã, a UE e a Grécia inauguram um novo campo para bloquear as pessoas em Samos.
A reportagem é publicado por Médicos sem Fronteiras, 08-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na noite entre 8 e 9 de setembro de 2020, o campo de Moria foi completamente destruído por um incêndio que se tornou um símbolo do fracasso total da política de migração da União Europeia baseada em hotspots nas ilhas gregas. Um ano depois das promessas da UE de uma nova abordagem, Médicos Sem Fronteiras (MSF) denuncia como os líderes da Europa e da Grécia continuam a negar dignidade aos requerentes de asilo e migrantes que buscam segurança na Europa, enquanto continua o odioso projeto a construir campos similares a prisões em as cinco ilhas do norte do Egeu.
“Na Grécia, o futuro parece mais distópico do que nunca, pois os migrantes continuam a viver em campos miseráveis nas ilhas gregas. É tragicamente irônico que, enquanto o mundo mantém seus olhos presos na situação afegã, a União Europeia e a Grécia estão inaugurando um novo campo similar a uma prisão para segurar os refugiados na ilha de Samos. É a demonstração mais clara da crueldade das políticas de migração da UE”, declara Konstantinos Psykakos, chefe da missão do MSF na Grécia.
Pacientes assistidos por MSF continuam contando como a situação de limbo em que vivem nas ilhas, o processo de pedido de asilo gerido de forma arbitrária e precipitada, o medo da expulsão e as condições precárias de vida contribuem para a deterioração de seu estado de saúde físico e mental. As crianças que recebem suporte mental na clínica do MSF em Lesbos costumam manifestar comportamentos regressivos, como agressividade, enurese secundária ou atrasos no desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Pessoas que sofreram traumas significativos têm dificuldade em elaborar as memórias mais dolorosas e continuam a viver no medo por muito tempo. Os sintomas de transtorno de estresse pós-traumático e transtorno depressivo estão entre os que nossa equipe médica vê com mais frequência, afetando aproximadamente 50% dos nossos pacientes adultos e menores.
“As nossas condições físicas e mentais são péssimas. No momento, não sei se seremos reconhecidos como requerentes de asilo ou se receberemos outra recusa”, disse Mariam*, uma mulher afegã que mora em Lesbos com sua filha de dois anos há dois anos. “Até agora, minha filha nunca foi a um parque. Temos problemas para obter as licenças necessárias para deixar o campo. Minha filhinha tende a ter comportamentos agressivos por causa do que viu aqui. Ela não gosta de brincar, rir, conversar e brincar com as bonecas”.
“Não há diferença entre o antigo acampamento de Moria e o de Kara Tepe. Os procedimentos e o sistema são os mesmos. Como uma pessoa doente, sinto que estou piorando a cada dia. O Parlamento Europeu e a União Europeia sabem o que está acontecendo neste campo da vergonha, mas ninguém pode nos ouvir”, disse Ali*, um sobrevivente das torturas na Síria que está em Lesbos há um ano e seis meses.
O MSF recentemente mudou suas atividades para um local próximo ao campo de Kara Tepe, onde as equipes de MSF fornecem vacinação para crianças contra doenças infantis e serviços de saúde sexual e reprodutiva para as mulheres refugiadas e continuam a oferecer apoio psicológico a crianças e adultos na clínica de Mitilene.
À medida que as crises humanitárias aumentam em diferentes partes do mundo, o MSF continua a pedir à Comissão Europeia, à Grécia e aos países europeus que implementem políticas que visem proteger e ajudar refugiados e requerentes de asilo, em vez de desencorajar, impedir e repelir as pessoas que buscam segurança na Europa. Um primeiro passo seria acabar com a construção de centros que prendem as pessoas em ambientes semelhantes a prisões, como aqueles encontrados nas ilhas gregas, focando-se mais em políticas de acolhimento humanas e dignas.
Todas as instalações nas ilhas gregas deveriam ter como único objetivo prestar assistência e facilitar a recolocação dos requerentes de asilo recém-chegados para estruturas seguras em toda a Europa.
Mariam* (Nota: Os nomes das pessoas foram alterados para proteger sua privacidade), uma mulher do Afeganistão que vive em Lesbos há dois anos
Mariam* vive em Lesbos com sua família, seu marido e sua filha de dois anos e está esperando um segundo filho.
“Somos uma família de três pessoas. Eu, meu marido e nossa filha de três anos, e estou grávida de 8 meses e 3 semanas. Cheguei a Lesbos há dois anos, morei no campo de Moria e agora moro no novo campo de Kara Tepe.
Quando o campo Moria pegou fogo, havia chamas em todos os lugares para onde olhávamos. Estávamos no meio do incêndio, fugimos para as montanhas para nos salvar. Depois do incêndio, vivemos na rua por cerca de 10 dias. Não tínhamos água e não havia comida suficiente para todos.
No campo de Kara Tepe em que vivemos agora, as condições continuam difíceis. Faz frio, faz calor, não é fácil o acesso aos serviços higiênicos, a situação é insuportável. Não me sinto bem. Não uso um banheiro privativo há dois anos. Todos nós somos estamos psicologicamente provados.
No momento não sei se seremos reconhecidos como requerentes de asilo ou se receberemos outra recusa. Também temos problemas para obter as licenças necessárias para deixar o campo. Espero que possamos nos locomover livremente, para poder levar minha filha a um parque, onde ela nunca esteve até hoje.
Ela é muito agressiva por causa da experiência de vida aqui no campo. Briga o tempo todo em vez de brincar com os amigos, rir, conversar e brincar com as bonecas como todas as crianças fazem. Em sua mente, há apenas as violências a que tem assistido aqui. As agitações dentro do campo, a nossa fuga, as chamas, o gás lacrimogêneo. Nessa idade é importante cuidar dela, dar-lhe amor e levá-la a lugares lindos, mas aqui tudo isso é impossível.
Quando estava aprendendo a caminhar, não havia paredes nas quais ela pudesse se segurar para se manter de pé. Tudo o que tínhamos era um cobertor pendurado, então quando ela tentava se levantar, não conseguiu agarrá-la e caia.
Meu desejo é me sentir melhor psicologicamente, poder trabalhar, tanto meu marido como eu, e viver como pessoas normais. Não gosto que me digam para onde ir e onde não, a que horas posso entrar e sair. Gostaria de ter uma vida sem estresse, e uma casa onde a minha filha possa brincar, como qualquer outra pessoa”.
“Estou em Lesbos há um ano e meio. Se não tivesse havido uma guerra na Síria, eu nunca teria deixado meu país. Quando eu estava lá, fui trancado na prisão e espancado com tanta violência que agora tenho um coágulo de sangue na cabeça. Também fui exposto a bombardeios com armas químicas e pólvora.
Quando cheguei a Lesbos, tive um ataque cardíaco neste novo campo. Como pessoa doente, sinto que estou piorando a cada dia. Não há diferença entre o antigo campo de Moria e este novo. Os procedimentos e o sistema são os mesmos.
O Parlamento Europeu, a União Europeia, todos sabem o que se passa nesse campo da vergonha, mas não conseguem sentir o nosso sofrimento. O que quer que digamos, não fará nenhuma diferença.
Na noite em que o incêndio começou no campo Moria, ficamos apavorados. Não sabíamos para onde ir. Por duas semanas dormimos na rua. Parecia que estávamos sitiados novamente, como na Síria. Não havia água nem serviços higiênicos. Não é uma situação triste, mas vergonhosa. Vergonhosa para a Europa.
Na noite em que o incêndio começou, percebi que o conceito de humanidade não existe na Europa”.
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Lesbos: Um ano após o incêndio de Moria, a Europa continua a negar dignidade a migrantes e requerentes de asilo nas ilhas gregas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU