Pesquisador da “plataformização” lista princípios dos “trabalhos decentes” e projeta futuro da área

Foto: Pacopac | Wikimedia Commons

06 Agosto 2021

 

"Há 20 anos falava-se no fim do trabalho. Hoje é no futuro do trabalho", diz o professor da Unisinos Rafael Grohmann em entrevista a GZH.

 

A entrevista é de Fábio Prikladnicki, publicada por GZH, 05-08-2021. A entrevista nos foi enviada pelo entrevistado.

 

De aplicativos de mobilidade às redes sociais, o avanço da tecnologia provocou transformações na vida em sociedade. Um aspecto do fenômeno são as relações de trabalho de quem depende dessas plataformas para ganhar seu sustento. São motoristas e entregadores e também profissionais de diferentes áreas, de professor a Papai Noel, em busca de oportunidades. Pesquisar essas mudanças – a chamada “plataformização do trabalho” – é a tarefa de Rafael Grohmann, 33 anos, organizador do recentemente lançado livro Os Laboratórios do Trabalho Digital: Entrevistas (Boitempo, 248 páginas, R$ 57). Professor do Mestrado e do Doutorado em Comunicação da Unisinos, Grohmann está à frente do Laboratório de Pesquisa DigiLabour e coordena no Brasil o projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford. Ele concedeu a seguinte entrevista a GZH por videoconferência.

 

Eis a entrevista.

 

O que é a plataformização do trabalho?

 

É a crescente dependência de plataformas digitais para se conseguir ou realizar alguma atividade de trabalho. Prefiro essa expressão a “uberização” porque vai muito além da Uber. As pessoas tendem a imaginar um só tipo de plataforma, mas temos uma dependência gigante de plataformas, com diferentes perfis de trabalhadores. Hoje há quase uma radicalização de fenômenos que já vinham ocorrendo, como flexibilização do trabalho, financeirização, extração de dados como forma de capital etc.

 

Alguns veem os trabalhos de motoristas e entregadores – a parte mais conhecida do fenômeno – como alternativa ao desemprego. Outros apontam uma precarização do emprego. Qual é a sua visão?

 

Há as duas coisas. Precisamos enfrentar certas contradições. A tecnologia vem num contexto econômico mundial de extremo desemprego e desindustrialização, e isso é mais impactante no Brasil e em outros países do chamado Sul Global. Não é à toa que na Europa isso se chama gig economy, algo como “economia de bicos”. Na economia brasileira, a classe trabalhadora sempre viveu o gig como forma permanente de vida. O que há de novo é a subordinação desse gig às plataformas digitais e às empresas que as controlam.

 

É precarização e ao mesmo tempo alternativa (ao desemprego). Sob um aspecto, é uma questão das pessoas não terem escolhas. Publicamos um relatório sobre fazendas de cliques, que são as pessoas que passam o dia clicando em conteúdos do Instagram por R$ 0,006 (para gerar engajamento artificial para conteúdos). Os relatos que temos desses trabalhadores são do tipo: “Para mim, é melhor fazer isso do que catar latinha”. É difícil pensar nisso como alternativa em um sentido forte, mas é o que minha colega Ludmila Abílio chama de “gestão da sobrevivência”.

 

Quando se diz que a tecnologia vai gerar oportunidades, geralmente se pensa em trabalhos de alta remuneração, e não Nesse contexto sobre o qual estamos falando. Esse é o lado menos reluzente da tecnologia?

 

Há 20 anos, falava-se no fim do trabalho. Hoje se fala é no futuro do trabalho. Esse debate, em geral, é focado em duas questões. A primeira é se os robôs vão nos substituir – nossas pesquisas mostram que isso não vai ocorrer. Vamos ser tão espremidos por microtarefas que não vai ser uma substituição total. Precisa-se de pessoas para treinar robôs. As plataformas de entrega têm falado em colocar drones para entregar comida, mas o que temos visto em países que já adotaram isso é que elas precisam de supervisores de drones. Não vai ser uma substituição direta.

 

A segunda questão desse debate é focada nas qualificações. Numa sociedade como a brasileira, marcada por profundas desigualdades de classe, raça e gênero, é redutor pensar apenas se as pessoas têm ou não as habilidades para certo tipo de trabalho, como se fosse uma questão de escolha. Temos que reposicionar esse debate. Não acho que se trata só de treinar para um mercado de trabalho competitivo. Pode funcionar assim na Alemanha ou nos EUA, que protagonizam essas discussões que a gente importa e repete à exaustão. A plataformização não é inevitável, é um momento histórico.

 

Em que momento desse debate o Brasil está?

 

A plataformização do trabalho envolve uma primeira dimensão, que é a do trabalho para plataformas, como ocorre com os entregadores, mas também tem outra: quando estamos trabalhando com outras coisas, mas precisamos de uma plataforma para realizar uma tarefa. O trabalho de influenciadores e criadores de conteúdo depende de lógicas e mecanismos de plataformas. A pandemia deixou mais claro esse lado menos reluzente da plataformização. Um tempo atrás, nas minhas pesquisas sobre o trabalho dos jornalistas, via muitos dizendo: “Não sou um trabalhador, sou um intelectual”. Ou um publicitário dizendo: “Sou um criativo”. Não se colocava, antes, essa condição de ser um trabalhador e depender disso para viver. Hoje vemos até youtuber dizendo: “Dependo dos mecanismos da plataforma para poder monetizar meu vídeo”. Não é como em uma fábrica, mas é uma relação de trabalho.

 

 

Quando uma pessoa posta algo em uma rede social por mera diversão, você considera que ela está realizando um trabalho não remunerado para uma plataforma?

 

Eu já achei isso, hoje não acho mais. Teve todo um debate sobre o quanto os usuários das redes sociais são ou não explorados. É uma atividade do trabalho que em inglês é chamado de work, mas não é o que eles chamam de labor, que é uma força de trabalho explorada. Nossa atividade gratuita nas redes sociais gera dados, e os dados são mercadoria para o sistema, mas não o nosso trabalho. Não estamos sendo obrigados a fazer aquilo. No entanto, não deixa de ser uma atividade importante para esse ciclo. É diferente de você pagar alguém para ficar no Kwai ou no TikTok. As plataformas chinesas estão nessa disputa de pagar para a pessoa ver vídeos. Aí é outro tipo de relação.

 

Há um monitoramento das condições de trabalho nas plataformas?

 

Coordeno no Brasil o projeto Fairwork, que envolve 20 países e que, junto com a Organização Internacional do Trabalho, tem pensado em princípios de trabalho decente para plataformas digitais. Isso, para nós, é como se fosse uma carta-base para pressionar jurídica, midiática e politicamente as plataformas. Temos avaliado as plataformas em vários países. Lançamos relatórios sobre Equador e Chile. Vamos lançar um sobre o Brasil em outubro.

 

O que o projeto considera ser um trabalho decente?

 

Entrevistamos tanto trabalhadores quanto as plataformas e avaliamos documentos. Ou seja, não é uma pesquisa de como é o perfil do trabalhador, até porque já sabemos que há diferentes perfis, seja de motorista, entregador, diarista, Papai Noel, o que for. São cinco princípios (de trabalho decente). O primeiro critério é o pagamento: que no mínimo as plataformas paguem o salário mínimo nacional. O segundo critério são as condições de trabalho, ou seja, se há saúde, segurança e proteção de dados aos trabalhadores. Se a plataforma oferece uma rede de segurança. Terceiro: contratos decentes. A despeito de como a plataforma classifica essa relação com os trabalhadores, verificamos se os contratos são acessíveis, transparentes, se não têm mudanças de última hora que revertam ganhos ou direitos já conquistados.

 

No caso da gestão, que é o quarto critério, verifica-se, por exemplo, se o trabalhador consegue apelar quando é bloqueado, se consegue falar com algum representante humano da plataforma, até se a plataforma combate desigualdade e discriminações de gênero, raça e classe. E o quinto critério, que é representação, é se a plataforma reconhece a negociação coletiva com os trabalhadores, com associações, sindicatos, se apoia uma governança democrática com a voz do trabalhador inserida nos processos. Não é só uma questão de avaliar o que acontece, mas também de apontar princípios que achamos que rumam a uma economia digital mais justa. Por isso, esses princípios têm um quê normativo. Para onde queremos caminhar amanhã?

 

Como tem sido a recepção dos proprietários das plataformas ao trabalho do Fairwork?

 

O início do projeto foi marcado, em vários países, por questionamentos (dos proprietários das plataformas) do tipo: quem são eles (do Fairwork)? O que estão fazendo? Não quero falar com eles. Depois que foram vendo a seriedade do projeto, as plataformas têm se aberto mais. Quando começamos a pesquisa na América LatinaEquador, Chile e agora Brasil –, os diretores das matrizes de empresas que já haviam passado pelo Fairwork na Europa ou na África disseram (para suas filiais): “Falem com o pessoal do Fairwork”.

 

Sim, estamos preocupados em defender os trabalhadores, mas de maneira que represente todas as partes interessadas, o que no inglês se costuma chamar de stakeholders. Isso é importante para que a gente consiga avançar rumo a esses princípios de trabalho decente. É importante falar que temos aberto para que organizações que não estão sendo avaliadas hoje possam se voluntariar para receber um selo de trabalho decente em plataformas, caso cumpram os critérios. Também queremos que esses princípios sejam aplicados a plataformas emergentes locais, cooperativas, coletivos, plataformas de outros tipos, que já possam nascer sob a égide do trabalho decente. Pode servir de inspiração para outros negócios a surgirem, localmente no Rio Grande do Sul, por exemplo.

 

Uma das alternativas para trabalho decente apontadas pelas suas pesquisas são as cooperativas, ou seja, plataformas de propriedade dos trabalhadores. Poderia comentar exemplos de cooperativas bem-sucedidas?

 

Um primeiro ponto é que não acho que as plataformas controladas por trabalhadores vão substituir as grandes plataformas. Já há uma briga de estrelas entre as grandes. Não acho que as cooperativas vão competir nos mesmos circuitos, seja na entrega, no streaming ou em qualquer área. As plataformas de cooperativas podem construir circuitos alternativos de produção e consumo. Já temos no Brasil exemplos de coletivos de entregadores. O Rio Grande do Sul é a terra do cooperativismo no Brasil. O Estado tem potencial para fomentar o cooperativismo de plataforma. Por enquanto, essas iniciativas são mais experimentos do que fórmulas prontas.

 

Em São Paulo, há um coletivo de mulheres entregadoras, o Señoritas Courier. O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) criou um assistente virtual, o Contrate Quem Luta, que conecta militantes que prestam serviços. Em Porto Alegre temos uma série de cooperativas de entregadores. Uma das mais antigas do Brasil é a Pedal Express.

 

Gostaria de falar das fazendas de cliques, que são as plataformas em que as pessoas são pagas para dar likes e impulsionar conteúdos. Além da baixa remuneração de quem trabalha nisso, há a questão da manipulação do que se vê nas redes sociais. O que isso diz sobre o engajamento que vemos nos conteúdos?

 

Temos que desconfiar de métricas. Muitos influenciadores pagam por cliques. Isso também mostra, no momento em que se fala de desinformação, que talvez a gente não tenha um gabinete do ódio, mas, como tenho falado, um chão de fábrica do ódio. Porque as pessoas também são pagas para descurtir, não apenas para curtir. Tenho um colega nas Filipinas, o Jonathan Ong, que identificou o que ele chama de “trolls pagos”, para espalhar desinformação no sudeste asiático, com apoio de agências de publicidade e de comunicação.

 

Isso traz desafios para as eleições presidenciais de 2022 no Brasil. Em 2020, achamos um candidato à prefeitura de uma grande cidade brasileira que pagou para as pessoas clicarem em um conteúdo. Esse é um debate que parece ser sobre as condições de trabalho (dos trabalhadores das fazendas de cliques), mas também está vinculado a elementos ainda invisíveis relacionados ao papel de influenciadores e à desinformação no que diz respeito àquilo que consumimos nas mídias sociais.

 

 

Que tipos de profissionais vocês já encontraram comprando cliques?

 

Influenciadores e criadores de conteúdo. Também há muitos profissionais autônomos, até da área da saúde, que querem bombar seus perfis. E, em menor número, mas não deixa de ser anedótico, apresentadores de TV, jogadores de futebol, políticos, candidatos a cargos eletivos. Isso mostra como essa economia de likes opera.

 

Que cenário você projeta para as eleições de 2022 sob esse aspecto? Acredita que pode haver mais desinformação do que em 2018?

 

Por um lado, sim, ainda mais dado o contexto das próximas eleições, com um presidente que, se não ganhar, vai dizer que foi fraude. Por outro lado, me parece que tanto no Brasil quanto fora as pessoas estão mais atentas às redes de ódio. Além dos debates sobre desinformação que já têm sido colocados, é necessário que se debata o papel de pessoas sendo pagas para espalhar desinformação. Devo lembrar que espalhar boato não é uma prática nova, mas as técnicas atuais para isso, envolvendo o trabalho de uma série de pessoas, têm de ser pensadas com cuidado com relação às eleições de 2022. E espero que nas campanhas apareçam planos de governo que enfrentem a plataformização do trabalho, da questão dos entregadores até o papel das fazendas de cliques.

 

Com você comentou antes, há algum tempo havia uma utopia de que, no futuro, as pessoas trabalhariam menos ou nem mesmo trabalhariam, mas o que se vê hoje no contexto da plataformização são jornadas mais extensas do que oito horas diárias. As expectativas eram altas ou algo deu errado no percurso?

 

Acho que as expectativas eram altas. Mas a gente vivia em um momento em que, no próprio Brasil, tinha luta por software livre, tinha imaginários em torno de uma internet alternativa, que foi sendo cada vez mais cooptada pelos grandes monopólios e oligopólios tecnológicos. Hoje, não sabemos o que é viver sem Google, Apple, Microsoft, Amazon. Há algo de que não falamos ainda, mas que envolve toda essa lógica de coach, LinkedIn, gramática de startups e inovação, e que vai sendo apresentado como a grande solução para todas as coisas.

 

Certa vez, dei uma palestra em Poços de Caldas (MG) criticando essa gramática de disrupção, todas essas frases feitas, e um cara levantou a mão para perguntar: “Mas como faço para criar uma startup inovadora aqui em Poços de Caldas?”. Isso está tão enraizado na nossa vida a ponto de acharmos que temos de criar um novo aplicativo para revolucionar o mundo. Não acho que um aplicativo em si vai resolver nossa vida. Mesmo nas plataformas de cooperativas, o aplicativo tem que ser o término ou uma parte do processo. Isso é para dizer que o que estamos vivendo não é inevitável e que é possível batalhar por outros futuros. Nos debates sobre o futuro do trabalho, são as mesmas pessoas que falam sempre. Precisamos nos reapropriar do futuro que queremos ter. Uma sociedade que seja menos dependente de conglomerados tecnológicos de fora, que realmente tenha o mínimo de soberania nacional digital e tecnológica. Esse é o nosso grande desafio.

 

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