14 Julho 2021
Vickie White Nelson, 49 anos, tem raízes profundas no sul de Maryland, nos Estados Unidos. Seu ancestral, Regis Gough – o tataravô da sua mãe – foi escravizado em uma fazenda de propriedade dos jesuítas e está listado entre os 272 da Universidade de Georgetown, um grupo de pessoas escravizadas que os jesuítas venderam para as fazendas da Louisiana em 1838. Mas, por alguma misteriosa razão, Gough escapou de ser enviado para o oeste do país.
A reportagem é de Renée Roden, publicada em Religion News Service, 13-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Ele deveria conquistar sua liberdade depois de 12 anos, mas não o fez”, disse Nelson.
Nelson se voluntariou, junto com vários outros descendentes do GU272, em uma escavação arqueológica na antiga plantação onde Gough foi escravizado. St. Inigoes, no Condado de St. Mary, ao sul de Maryland, fica perto de duas outras plantações, Newtown e Bohemia. Os historiadores acreditam que os trabalhadores escravizados se moviam entre essas plantações com fluidez.
Nelson observou escavações na plantação de Newtown antes, disse ela, mas esta em St. Inigoes era diferente.
“Eu gostei desta escavação”, disse Nelson, que passou três horas uma manhã remexendo e vasculhando a terra em busca de artefatos. “Eles realmente nos deixaram participar.”
Foi uma experiência comovente, disse ela.
“Eu pude refazer os passos dos meus ancestrais, ver algo que eles viram, tocar em algo que eles podem ter tocado”, disse Nelson.
A escavação de duas semanas, que começou no dia 28 de junho em St. Inigoes, está sendo liderada por dois professores de Antropologia, Laura Masur, da Universidade Católica dos Estados Unidos, em Washington, e Steve Lenik, do St. Mary’s College, em Maryland. Masur disse que seu objetivo com a escavação era encontrar uma antiga capela no local e, se possível, a antiga senzala. Mas as casas onde os trabalhadores escravizados viviam, disse Masur, são difíceis de encontrar.
“Frequentemente, os locais considerados menos importantes são aqueles que também não estão tão bem preservados”, disse Masur.
Embora a arqueologia pública muitas vezes abra espaço para membros da comunidade, o envolvimento comunitário é mais raro em empreendimentos acadêmicos como o de Masur. Mas Masur queria que os descendentes e os membros da comunidade do sul de Maryland se envolvessem na escavação. Ela disse que cerca de uma dezena de descendentes apareceram no local durante o tempo em que ela esteve em St. Inigoes.
“Vir aqui é profundamente significativo para muitas pessoas”, disse Masur. “Elas podem fazer disto o que quiserem, em vez de eu lhes dizer como deveriam pensar e sentir a esse respeito.”
De fato, a presença e o envolvimento delas dão forma ao modo como Masur conduz a sua própria pesquisa. “Isso me faz refletir mais sobre as minhas próprias perguntas de pesquisa: as minhas perguntas são úteis, interessantes e respeitosas em relação a esta comunidade?”, questionou Masur.
Angela Wilson, 62 anos, é outra descendente voluntária na escavação. Ela ouviu sobre a escavação de St. Inigoes quando Masur postou sobre isso em um grupo no Facebook para os descendentes do GU272 que vivem no sul de Maryland. Esta é sua primeira escavação. Ela passou várias manhãs escavando a terra. Em seu primeiro dia, ela encontrou um pedaço de tijolo. Ele pode ter feito parte de uma capela, disse ela, acrescentando que essas escavações arqueológicas trazem muitas emoções.
“Na minha primeira visita a uma plantação, eu fiquei com raiva”, disse ela. Mas Wilson e seu primo voltaram à plantação para fazer pesquisas, para aprender sobre os seus ancestrais e a sua história.
“Você passa por muitas emoções visitando uma plantação, refazendo os mesmos passos que os seus ancestrais. Pode ser assustador, assim como estimulante”, disse Wilson.
Há muito tempo, a sua família está profundamente enraizada no Condado de St. Mary e Charles. Wilson viveu no sul de Maryland durante toda a sua vida, exceto quando serviu na Força Aérea por uma década. Muitos dos sobrenomes da sua árvore genealógica aparecem na lista dos GU272.
“Tenho certeza de que, em algum momento, eu farei uma conexão da minha árvore genealógica com essa lista”, disse Wilson.
Wilson, católica desde criança, acredita que os jesuítas deveriam unir as suas desculpas com ressarcimentos. “Alguns deveriam obter ressarcimentos. Se for possível identificar quem são os descendentes diretos, eles deveriam obter ressarcimentos”, disse Wilson.
A família de Nelson era católica e agora é metodista. Ela quer que a ordem dos jesuítas compartilhe as informações de que os descendentes precisam para juntar as peças da sua própria história. “Eles deveriam nos deixar ter acesso aos registros para aprender sobre os nossos ancestrais”, disse Nelson, “para que possamos ver com quem estamos realmente conectados.”
Nelson tem dificuldade em entender como as lideranças religiosas puderam tratar outros seres humanos tão mal.
“Eu não conseguia acreditar que um padre poderia escravizar alguém”, disse ela. “Se eles fizeram isso, eu gostaria de imaginar que os escravos seriam mais bem tratados. Mas eles não estavam em uma situação melhor do que se tivessem apenas um antigo senhor de escravos normal.”
Masur disse que tem sido difícil fazer com que a comunidade jesuíta se interesse e se envolva no trabalho de recontar essa parte do seu passado.
“Particularmente em relação a uma geração mais velha de jesuítas, é uma história que já está escrita para eles. É uma narrativa estrita, e eles não querem pensar em mudar essa narrativa.”
Mas há um jesuíta, Ken Homan, que tem trabalhado com Masur e a equipe na escavação nas últimas duas semanas. Ele ainda está em formação e ainda não fez os votos finais na ordem dos jesuítas.
Ele não é padre, mas um irmão – um membro da ordem dos jesuítas que faz os votos, mas não é ordenado. Homan disse que os irmãos jesuítas frequentemente se envolvem em trabalhos manuais. Homan soube que os irmãos estavam mais envolvidos com as operações do dia a dia das plantações – e provavelmente eram responsáveis pelo abuso dos trabalhadores escravizados.
“Os irmãos estavam encarregados pela punição, em parte porque não se queria espoliar as mãos dos padres”, disse Homan.
Lidar com as feridas que a sua ordem causou, leva Homan a trabalhar pela justiça no presente. “Isso me dá um impulso para perguntar: ‘Como posso fomentar a justiça?’, de modo que, quando outras pessoas tomam contato com a Igreja, eu busco fazer com que elas se sintam parte dela”, disse Homan.
Masur vê a presença de Homan como um potencial para uma colaboração mais profunda com a ordem. “Trabalhar com Ken é um ponto de partida”, disse Masur. Ela espera que outros jesuítas participem do trabalho arqueológico no futuro.
Masur e Lenik têm outra escavação planejada na antiga plantação de Bohemia. Mas Masur disse que eles recém-começaram a escavar a superfície de St. Inigoes. “Há muito a ser feito. Eu poderia passar 10 anos escavando neste sítio”, disse ela.
“Se houvesse uma doação de um milhão de dólares”, disse Lenik, “isso faria muita diferença.”
Wilson acredita que os ressarcimentos para os descendentes dos GU272 são necessários, sem dúvida. Mas, para ela, a experiência de ter acesso à história é uma chance de voltar a algo profundamente humano, uma chance de ver as condições em que seus ancestrais viveram e trabalharam – e os feitos incomparáveis que realizaram.
“O que eles realmente fizeram foi construir os Estados Unidos”, disse Wilson. Ver onde eles trabalharam traz a ela uma sensação de enraizamento e de conexão. “Dá uma sensação de paz que você nem sabia que estava faltando. Não se trata apenas de uma questão de negros ou brancos – tem a ver com você.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
EUA: descendentes de escravos participam de escavação em antiga fazenda jesuíta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU