"O século XXI inaugurou uma nova fase na virada do catolicismo para uma identidade global que não é mais dominada pelas suas raízes europeias, ocidentais e coloniais. Isso requer uma abordagem global a todos os capítulos complicados e trágicos da história da Igreja".
O artigo é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 06-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O mundo está em chamas. E tem-se a impressão de que a Igreja Católica também está em chamas. Às vezes, a Igreja está em chamas de uma forma bastante literal.
Veja-se o Canadá, por exemplo, onde sepulturas não identificadas foram encontradas recentemente em locais onde funcionavam ex-internatos para crianças indígenas. Muitas delas eram instituições administradas pela Igreja, e isso criou mais uma onda de raiva.
Pelo menos seis edifícios da Igreja em terras das Primeiras Nações no oeste do Canadá foram gravemente danificados ou completamente destruídos por incêndios criminosos.
A corresponsabilidade da Igreja Católica pelas características coloniais e anti-indígenas desses internatos é uma questão que também está sendo levantada nos Estados Unidos.
Um grupo de indígenas que sobreviveu aos abusos nas escolas do Canadá irá a Roma em dezembro próximo para um encontro que eles solicitaram com o Papa Francisco. Deve-se presumir que os sobreviventes de internatos administrados pela Igreja Católica em outros países também buscarão um encontro com o papa.
Sim, o mundo está em chamas, e parece que a Igreja Católica também está em chamas.
Mas, às vezes, é “apenas” a reputação da Igreja que está em chamas.
Na Itália, onde o Parlamento está debatendo um projeto de lei anti-homofobia, o Vaticano fez uma rara intervenção diplomática para alertar as autoridades estatais de que a legislação proposta infringiria a liberdade da Igreja de expressar a sua opinião sobre questões como o casamento e o gênero. Ela fez isso no âmbito da Concordata da Santa Sé assinada em 1929 (e atualizada em 1984) com a República Italiana.
Olhando para as reações, parece que, mesmo nesta época de inércia política e social, a tradição italiana da “laicità” (laicidade) e da soberania do Parlamento em relação à Igreja está viva, afinal.
Mas também é um lembrete de que a reputação pessoal do Papa Francisco não pode fornecer um crédito ilimitado à Igreja institucional.
Além disso, há outra percepção muito diferente sobre a Igreja Católica e o Vaticano.
Há o caso do presidente Volodymyr Zelenskyy, da Ucrânia, que, no dia 30 de junho, convidou o papa para visitar o seu país, apelando à “autoridade moral” da Igreja Católica.
E houve a cúpula do dia 1º de julho das lideranças cristãs do Líbano que se reuniram com Francisco no Vaticano para um dia de oração e de reflexão “para implorar o dom da paz e da estabilidade” naquela conturbada nação do Oriente Médio.
No dia seguinte, Francisco teve uma reunião privada com o primeiro-ministro do Iraque. Ela ocorreu quatro meses após a histórica viagem papal àquele país, como parte dos esforços da Santa Sé para promover a paz na região.
Finalmente, há o novo cardeal-prefeito da Congregação para o Clero, o arcebispo sul-coreano Lazzaro You Heung-sik. Sua nomeação alimentou a esperança de uma viagem papal à Coreia do Norte em outro esforço de levar a paz à península.
Então, de que Igreja Católica se trata?
A Igreja que deve se desculpar por ter participado do colonialismo, como na América do Norte? Ou a Igreja que é a voz da libertação dos sistemas coloniais e opressores, antigos e novos, em lugares como a Europa oriental, o Oriente Médio e o Leste Asiático?
Certamente é uma questão de histórias diferentes em diferentes áreas do mundo.
Nestes últimos séculos, o papel da Igreja durante a conquista e o assentamento por parte dos cristãos europeus brancos na América do Norte foi diferente do papel das minorias católicas nas áreas “a leste de Suez”, para usar a expressão de Rudyard Kipling que a tradição colonial militar e política britânica adotou.
Mas também é uma questão de opções políticas e narrativas culturais diferentes.
Por um lado, há o ponto de vista de que o catolicismo pertence ao “Ocidente global” e, portanto, deve se desculpar pela sua participação exclusivamente pecaminosa no projeto colonialista da supremacia branca.
Essa visão tende a dominar no Ocidente global, especialmente na anglosfera como os Estados Unidos, o Canadá e (de maneiras significativamente diferentes) a Austrália.
A secularização ainda está em andamento nesses lugares, e uma cristandade constitucionalmente (ou social e culturalmente) estabelecida está chegando ao fim, o que está cobrando um preço da autoridade da mais global e política das tradições cristãs, a Igreja Católica.
Por outro lado, está a narrativa “católica global”, segundo a qual a Igreja é a melhor intérprete da crise da civilização no último século: as transições do colonialismo para a globalização e para a atual disrupção da globalização.
Essa é a narrativa que domina entre aqueles que leem o catolicismo como a voz de resistência contra as formas neocoloniais de opressão ou contra os sistemas majoritários que relegam os católicos a cidadãos de segunda categoria ou a alvos de perseguição.
Não é apenas uma visão romântica de uma Igreja anticolonial heroica que redime os maus feitos da Igreja colonial. É uma consciência daquilo que está por vir. O fim do “século americano” não significa necessariamente o fim dos sistemas de dominação de um país sobre o outro.
Como vimos nos debates desde 2016 em torno do Brexit, a visão de mundo política e militar “a leste de Suez” ainda não morreu e pode estar retornando, pelo menos como uma aspiração.
Essas duas narrativas frequentemente coexistem na mente de muitos hoje, sejam eles católicos ou não. E elas se misturam de maneiras diferentes na visão individual sobre o catolicismo.
Mas, como tipos ideais, essas duas narrativas representam duas ideias históricas e teológicas diferentes sobre o catolicismo na atual disrupção da globalização.
Por um lado, há algo como uma opção preferencial progressista por identificar a Igreja com o Ocidente e os seus pecados.
Esse é o outro lado da moeda dos neoconservadores, que dizem que a Igreja Católica deve sobreviver para servir de pilar da civilização ocidental – contra os perigos da secularização, do Islã, da anarquia etc.
Por outro lado, está a narrativa daqueles que pensam que a virada global do catolicismo (principal exemplo: as viagens do Papa Francisco a países majoritariamente não europeus) já libertou a Igreja do peso dos pecados do Ocidente.
Isso se traduz na tendência de preservar um certo status quo teológico e institucional: o modelo tradicional de governo da Igreja, de liderança clerical etc. que não precisa ser inculturado e atualizado.
Esse choque de narrativas é um sintoma do conflito político em torno do papel da Igreja Católica no mundo de hoje. É uma questão de conveniência política nacional e internacionalmente.
Por exemplo, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, fizeram pedidos significativamente diferentes ao Vaticano e à Igreja Católica (e é interessante ver a percepção do papel da Igreja na história canadense pela comunidade ucraniana muito importante nesse país da América do Norte).
Mas também é o sintoma de uma crise histórica e teológica. Não há dúvida de que a Igreja Católica foi (e em alguns casos ainda é) um participante voluntário do projeto colonial das potências ocidentais e de que deve haver um processo de conversão e de expiação.
No entanto, também é ideológico afirmar que existe uma propensão cristã e católica particular e excepcional em relação à discriminação, ao racismo e ao sexismo.
O cristianismo e a supremacia branca têm cooperado de uma maneira particular, mas há uma história mais longa e global de racismo, na qual o racismo cristão e católico deve ser situado.
O século XXI inaugurou uma nova fase na virada do catolicismo para uma identidade global que não é mais dominada pelas suas raízes europeias, ocidentais e coloniais. Isso requer uma abordagem global a todos os capítulos complicados e trágicos da história da Igreja.
Mas, em oposição a essa abordagem, há ainda uma interpretação do “Ocidente global” aos pecados da Igreja. Isso dá voz a uma indignação moral justificada, mas também reflete uma preocupação intracatólica e paroquial – mesmo quando vem de vozes progressistas da Igreja e da política.
Algumas das explicações para a crise dos abusos na Igreja Católica – tanto no lado progressista quanto no lado conservador do espectro – expressam inconscientemente preocupações notavelmente eclesiocêntricas.
Mais do que por uma vontade de compreender o fenômeno, elas são frequentemente ditadas por razões de política da Igreja ou de estratégia da guerra cultural.
Por exemplo, não há dúvida de que uma teologia inadequada da sexualidade é uma das causas para um despertar tragicamente tardio da Igreja institucional ao abuso sexual de crianças.
Mas é importante lembrar que foi somente em novembro de 1989 que a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a “Convenção sobre os Direitos da Criança”, que mencionou o compromisso dos Estados membros a proteger as crianças contra qualquer exploração ou violência sexual.
Isso significa que um enfoque nas responsabilidades da Igreja de uma forma que isole a sua história da história das mentalidades e das instituições não católicas pode levar a graves erros de perspectiva interpretativos e pode não servir necessariamente à causa das vítimas.
Compreender a história e os pecados da Igreja vai além do horror compreensível que cada pessoa sente diante do abuso, esteja ele relacionado a sexo, raça ou classe.
A história vai além da denúncia ou da justificação, condenação ou absolvição. Ela busca compreender certos processos históricos.
Estudar o passado a partir de uma perspectiva global significa aprender a história de outros impérios, de outros sistemas cruéis de trabalho forçado, de outros tipos de discriminação racial e social.
Devemos fazer isso sem a contínua moralização que é típica de grande parte dos estudos ocidentais de hoje (inclusive dentro da Igreja). Caso contrário, permaneceremos presos a uma perspectiva estreita do “Ocidente global”.