14 Junho 2021
“Trata-se de um problema importante que não consegue encontrar espaço no debate público na Itália – ao contrário da França, Espanha, Alemanha, Polônia, Argentina, Chile e – nem é preciso dizer – no mundo anglo-saxão. Resta entender bem por qual razão...”
O professor Francesco Benigno me escreveu após a resenha do seu livro escrito com Vincenzo Lavenia, “Peccato o crimine, la chiesa di fronte alla pedofilia” [Pecado ou crime, a Igreja diante da pedofilia] (disponível em italiano aqui https://manifesto4ottobre.blog/2021/05/14/lolocausto-bianco-la-chiesa-di-fronte-alla-pedofilia/).
O comentário é de Antonio Greco, publicado em Manifesto 4 Ottobre, 09-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu li e reli a declaração pessoal [1] relativa à carta do dia 21 de maio do cardeal Reinhard Marx, padre católico há 42 anos, bispo há 25 e arcebispo da grande Diocese de Munique e Freising há quase 20 anos, com a qual ele explica por que pediu ao papa para ser removido do cargo de arcebispo da Diocese de Munique e para ser reduzido de cardeal ao estado de padre e episcopal.
A decisão vem de longe, é fruto de um “discernimento espiritual” e, uma anotação muito importante, “os eventos e debates das últimas semanas desempenharam apenas um papel secundário nesse contexto”.
A declaração se centra em torno de duas perguntas que acompanharam e atormentaram o purpurado nos últimos anos: “Eminência, a crise dos abusos sexuais dentro da Igreja mudou a sua fé?”. E a outra: `”A luz da apresentação do estudo chamado MHG [2], algum dos bispos assumiu a responsabilidade e apresentou a sua própria renúncia?”.
À primeira pergunta, o cardeal responde “sim”. À segunda, ele responde “não”. E é sobre essas respostas que ele motiva a declaração de renúncia.
O cardeal escreve: “A crise não diz respeito apenas à necessária melhoria da administração – embora isso também –, mas se trata ainda mais de uma forma renovada da Igreja e de um novo modo de viver e proclamar a fé hoje”.
O escândalo da pedofilia e dos abusos sexuais de menores por parte do clero católico é um terremoto para a Igreja Católica, que não dá sinais de acabar.
A esse respeito, a leitura das causas feita pelo cardeal é pontual: “A inspeção dos arquivos e as buscas sobre possíveis erros e falhas do passado, incluindo a questão das respectivas responsabilidades, são componentes inevitáveis do fato de lidar com o passado, mas não constituem toda a renovação. As inspeções e as opiniões dos especialistas até agora deixaram mais claro que também se trata de causas ‘sistêmicas’ e de riscos estruturais que devem ser abordados. Ambos os aspectos devem ser analisados em conjunto”.
“Estou preocupado com o fato de que ficou mais evidente ao longo do últimos meses uma tendência de excluir as causas e riscos sistêmicos ou, sejamos francos, as questões teológicas fundamentais e de reduzir o processo de lidar com o passado a uma simples melhoria dos processos administrativos.”
“Com a minha renúncia, também gostaria de deixar claro que estou disposto a assumir pessoalmente a responsabilidade, não apenas por quaisquer erros que eu possa ter cometido, mas também pela Igreja como instituição que eu ajudei a formar e a moldar ao longo das últimas décadas. Recentemente, foi dito: ‘Acertar as contas com o passado pode doer’. Essa decisão não é fácil para mim.”
Apesar do “forte apoio ao projeto do Caminho Sinodal [3]” e da “criação da fundação ‘Spes et Salus’, que se concentra nas preocupações e nas necessidades das vítimas de abuso sexual”, o cardeal conclui: “Eu acredito que o ‘ponto morto’ em que estamos neste momento pode se tornar um ‘ponto de virada’”.
O cardeal assume a tese de que o problema é principalmente estrutural e que, portanto, os abusos sexuais de menores por religiosos da Igreja Católica não são apenas comportamentos desviantes de indivíduos isolados, mas também é preciso levar em conta as características de risco e estruturais específicas da Igreja Católica, que dificultam ainda mais a prevenção do abuso sexual de menores.
Punir as pessoas culpadas, lamentar publicamente as suas ações, pagar uma indenização financeira às vítimas, estabelecer conceitos de prevenção são medidas necessárias, mas não suficientes.
Essas iniciativas são até capazes de cimentar as estruturas do poder clerical, pois visam apenas aos sintomas de um desenvolvimento anormal e, portanto, impedem a reflexão sobre o problema fundamental do poder clerical.
A tese do cardeal impõe que se amplie o horizonte e que a sua leitura não seja mais referida apenas à Igreja local que está na Alemanha, mas a toda a Igreja Católica, já que o fenômeno da pedofilia não está circunscrito a uma região, mas se estende a toda a Igreja Católica, às Igrejas locais individuais e até às dioceses individuais.
Como demonstra o texto já citado de Benigno-Lavenia, é preciso, na minha opinião, ir mais fundo na própria tese de Marx e compreender que a Igreja Católica reflete uma lacuna cultural ao enfrentar o drama desse “holocausto”, e é preciso tomar consciência de que a pedofilia dos padres é um caso clamoroso e muito significativo da dificuldade da Igreja Católica de se adaptar à mudança histórica para responder às duas fidelidades, ao Evangelho e ao ser humano.
Voltando à interrogação inicial, por que o debate na Itália sobre um tema tão vital para a própria vida da Igreja italiana não decola?
A minha hipótese de resposta se articula em três pontos:
- são os bispos italianos que fazem com que o debate não decole;
- a mudança estrutural da Igreja italiana “pode doer”;
- a secularização da sociedade italiana, em particular da meridional, é muito lenta.
São os bispos italianos que freiam o possível debate sobre o tema.
Segundo o Noi Siamo Chiesa, sobre o dramático escândalo da pedofilia, “as intervenções dos bispos se sucederam nesta ordem com declarações do tipo: a situação italiana é diferente porque o problema é bem menor do que em outros lugares, não estamos em condição de dispor de dados completos, não somos obrigados, com base na Concordata, a denunciar os fatos à autoridade civil, as vítimas são consideradas como elementos totalmente secundário à questão. Os abusos não conseguem obter a repercussão na mídia que mereceriam, os padres condenados às vezes são geridos em situações protegidas, não nasceu um movimento generalizado, mas fatos bem precisos surgiram em várias dioceses e são bem conhecidos”.
São precisamente os bispos que, embora com algumas exceções, impedem o nascimento de um movimento generalizado, de uma nova consciência sobre o problema. “Acalmar, truncar, padre muito reverendo, truncar, acalmar” (“Os noivos”, capítulo XIX). De bispos “zelotes”, menos pesquisadores inquietos e mais administradores, não se pode esperar mais. E não só sobre esse tema.
Basta pensar em como querem diluir o caminho sinodal, que lhes foi imposto pelo Papa Francisco.
Luigi Sandri escreveu: “Os temas tabus – como o celibato dos padres e o sacerdócio das mulheres – não estarão na ordem do dia do ‘Caminho Sinodal’ italiano, como ocorre, em vez disso, na iniciativa análoga na Alemanha com o ‘Synodaler Weg’. Isso foi afirmado pelo cardeal Gualtiero Bassetti. O presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI) deixou perplexos, assim, aqueles que pensavam que havia chegado o momento, também no nosso país, de enfrentar abertamente assuntos que, do outro lado dos Alpes, são profundamente sentidos tanto pelos simples fiéis quanto por muitos bispos. A propósito dos temas do evento, Bassetti especificou: ‘Os do celibato dos padres e do sacerdócio das mulheres não são os problemas fundamentais que neste momento dominam a Igreja e a humanidade... O caminho sinodal que a Igreja italiana está iniciando parte de condições muito diferentes das da Alemanha, que enfrentou alguns problemas muito particulares. Os problemas de fundo do nosso povo são bem diferentes: a solidão, a educação dos filhos, as dificuldades de quem não chega ao fim do mês por falta de trabalho, a imaturidade afetiva que leva as famílias a se desagregarem”.
De acordo com o purpurado, então, na Itália os “temas incômodos” não devem ser sequer abordados: concepção singular de um “Sínodo de baixo” que, de fato, não poderá sair dos trilhos predispostos pela CEI. Mas quem disse que os temas “alemães” são estranhos ao sentimento dos fiéis italianos?
“‘Acertar as contas com o passado pode doer.’ Essa decisão não é fácil para mim”, disse o cardeal Marx.
A sensação é de que as principais resistências dentro da comunidade eclesial nascem cada vez mais do temor de perder seguranças seculares, paradigmas certos e, não raramente, privilégios narcisistas cada vez menos em sintonia com a compreensão do Evangelho e o serviço integral ao ser humano integral.
E aqui se impõe a referência ao sistema econômico sobre o qual se sustenta a estrutura eclesiástica.
O clamor em torno da pedofilia dos eclesiásticos católicos faz muito mal muito aos sistemas econômicos sobre os quais se apoia a estrutura da Igreja.
A rica Igreja alemã se sustenta sobre um verdadeiro imposto sobre a religião, que se soma aos outros impostos que um cidadão alemão deve pagar. Portanto, quem decidiu pagar esse imposto, o Kirchensteuer, para a comunidade a que pertence tem, todos os meses, menos dinheiro no seu contracheque do que aquele que decidiu não pagá-lo.
O valor do imposto é de 8%-9% do imposto sobre a renda (depende da região). Assim, tanto a Igreja Católica quanto a Protestante recebem anualmente cerca de 6 bilhões de euros [37 bilhões de reais] [4], que são gastos com os salários dos padres e do pessoal administrativo (incluindo catequistas, organistas, maestros do coro...), construção ou restauração de igrejas, escolas e hospitais administrados por eles e para fins de caridade.
É uma lei que data de mais de 200 anos atrás (1803) e o cancelamento da filiação à Igreja Católica é igual à abjuração e significa renúncia aos sacramentos, aos funerais religiosos... etc.
Ao mesmo tempo, porém, esse sistema gera uma hemorragia de fiéis: desde 2000, mais de 2,2 milhões de alemães abandonaram oficialmente a fé católica. Os dados falam de cerca de 200.000 pessoas perdidas por ano pelas Igrejas Católica e Luterana nos últimos cinco anos. Em 2019, 272.771 alemães abandonaram a Igreja Católica.
O sistema alemão de financiamento à Igreja (que eu sintetizei em poucas palavras, mas na realidade é mais complexo) é muito criticado e discutido. Mas há uma constatação a ser feita: todos os meses, quando um leigo católico, engajado ou não na comunidade eclesial, vê menos dinheiro no seu contracheque e se encontra diante de escândalos de qualquer tipo por parte de eclesiásticos, ele sente o dever, quase instintivo, de se indignar, de se pronunciar, a ponto de rever o seu status de membro de uma religião, até mesmo com o abandono.
O sistema italiano do “oito por mil” [em que os contribuintes doam 0,8% de seu imposto de renda para uma religião ou para programas de assistência social do Estado italiano], por outro lado, é muito diferente do alemão. A diferença é evidente: na Itália, um fiel não é obrigado a pagar impostos à sua Igreja, e um não crente pode pagá-los se considerar que é bom fazê-lo, mas nem o fiel nem o não crente devem se declarar como tais perante o Estado, nem são obrigados a pagar o próprio imposto.
Quantificar com precisão o “custo” da Igreja Católica para o Estado italiano é uma operação quase impossível [5], e este não é o lugar para isso. Mas, se os cofres do Estado choram, a receita do “oito por mil” para a Igreja, em vez disso, cresceu cinco vezes em 20 anos, passando de 210 milhões [1,3 bilhão de reais] no início dos anos 1990 para 1,1 bilhão de euros [68 bilhões de reais] hoje. Pecunia non olet.
A Igreja italiana pega tudo de qualquer um, católico, ateu, pouco crente, não crente. E isso ocorre porque a lei de 1985 (após a renovação da Concordata de 1984), que instituiu esse sistema, não deixa claro para a massa de contribuintes como a Igreja italiana recebe um benefício quantitativo desproporcional de tal sistema [6]. Ignora-se que o próprio sistema também produz um dano muito relevante para a sua vida de comunidade de fiéis, pois separa claramente a contribuição da participação individual na vida da comunidade. Ao contribuinte, crente ou não, só é pedido que “assine”. Depois, ele pode muito bem se desinteressar e ser um estranho à vida eclesiástica. A vida e os problemas até graves, como o da pedofilia dos padres, não lhe interessam mais. São “assunto deles”.
Os dois sistemas de financiamento, o alemão e o italiano, estão longe do sonho do Papa Francisco expressado no início do seu pontificado (março de 2013): “Ah, como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres!”. E também estão longe de quem conserva, em tempos tão difíceis, um mínimo de consciência evangélica e de amor por uma comunidade que manteve viva essa mensagem ao longo dos séculos.
Mas os resultados dos dois sistemas de financiamento das duas Igrejas, pelos meios utilizados, iniciativas empreendidas, objetivos alcançados, em particular sobre o problema da pedofilia, não são comparáveis.
Há um terceiro motivo pelo qual o debate sobre a pedofilia eclesiástica não decola na Itália.
As muitas investigações sociológicas realizadas nesse período sobre o fenômeno religioso na Itália demonstram que a secularização (não o secularismo) avança, mas muito lentamente, sobretudo no Sul do país.
A Igreja italiana, em alguns aspectos, “arde”. Em outros aspectos, goza de uma boa saúde [7].
A Igreja italiana ainda está com saúde, especialmente econômica. Um pessoal abundante sustenta a estrutura e mantém o sistema em pé, defendendo-o e protegendo-o, a ponto de esconder as enfermidades e a velhice.
E ela é ajudada nisso por um apoio dos meios de comunicação, para os quais está escrito que “os católicos na TV chegam a 101%”.
Mas a secularização avança inexoravelmente e segue caminhos imprevistos, como a pandemia e a globalização.
Somente em alguns anos saberemos o que aconteceu, em termos quantitativos e qualitativos, na vida religiosa dos italianos em 2020-2021.
Por fim, a cúpula da Igreja italiana está convencida de que o fenômeno dramático da pedofilia eclesiástica é uma questão local que pertence apenas a outras Igrejas irmãs. Não se dão conta de que é insolúvel ou impossível resolver uma questão considerada como local em um mundo globalizado.
1. Disponível em clicando aqui, 04-06-2021.
2. O estudo intitula-se “Abuso sexual de menores por parte de sacerdotes, diáconos e membros de ordens religiosas católicas no setor de competência da Conferência Episcopal Alemã”. Após os escândalos sexuais que abalaram a Igreja na Alemanha, um projeto de pesquisa interdisciplinar foi confiado a pesquisadores das universidades de Mannheim, Heidelberg e Gießen (daí a sigla “MHG”). Liderado por Harald Dressing, um psiquiatra forense, o grupo de estudo trabalhou de 1º de julho de 2014 a 24 de setembro de 2018 com base nos dados fornecidos por 27 dioceses alemãs. O resultado foi registrado em um relatório de 350 páginas, que reúne os esforços de especialistas em criminologia, psicologia, sociologia e psiquiatria forense.
3. São quatro os “fóruns” previstos pelo Sínodo alemão: os poderes na Igreja, o status do padre (com a discussão da obrigação do celibato), o papel da mulher na Igreja, a moral sexual.
4. Em 2019, foram 6,67 bilhões de euros [41 bilhões de reais] em impostos pagos pelo Estado à Igreja alemã, segundo o jornal Handelsblatt, que fez uma investigação sobre as receitas anuais da Igreja Católica na Alemanha. Além do imposto sobre a religião, a radiografia dos cofres revela que a Igreja alemã possuiria investimentos financeiros equivalentes a 15 bilhões de euros [93 bilhões de reais] e um capital de 20 bilhões de euros [124 bilhões de reais] distribuídos entre imóveis e ações.
5. Dados certos: os montantes do imposto de renda dirigidos à Conferência Episcopal Italiana (oito por mil), os fundos para os salários dos professores de religião católica nas escolas, os salários dos capelães que desempenham funções para o Estado italiano, o financiamento para as escolas paritárias e para as universidades privadas que, em boa parte, giram em torno da Igreja. Um pacote de cerca de 2,5 a 3 bilhões de euros por ano, apenas para o Estado central.
6. Grande parte dos contribuintes (58%) não faz uma escolha, porque não quer financiar nenhuma confissão religiosa, mas, ao mesmo tempo, não tem nenhuma propensão a financiar um Estado no qual não confia. E, sobretudo, não sabe que, mesmo assim, o seu “oito por mil”, embora “não destinado” por ele, acabará nos cofres de alguma Igreja e, sobretudo, da Igreja Católica, à qual a grande maioria dos contribuintes destina a sua cota. Do total do “oito por mil”, 34% é destinado à Conferência Episcopal Italiana (CEI), mas se torna 81% graças ao mecanismo de atribuição dos não destinados (traduzido em euros, 400 milhões [2,5 bilhões de reais] se tornam 1 bilhão [6,2 bilhões de reais]).
7. Os primeiros casamentos dos cidadãos italianos celebrados com o rito civil passaram de 20,7% em 2004 para 31,3% em 2018; os nascidos vivos fora do casamento em relação ao total de nascidos vivos passaram de pouco mais de 10% em 2002 para 32% em 2018; a porcentagem dos “casais não casados” em relação ao total dos casais quase quintuplicou entre 2000 e 2018. A vida de casal dos italianos parece cada vez mais distante da tradição religiosa católica. A fratura diz respeito mais ao casamento e menos a outros aspectos da vida religiosa, como a catequese, a primeira comunhão, a crisma. Mas as estatísticas não podem nos dizer nada sobre a fé, nem sobre a prática da vida religiosa. As investigações sociológicas também apontam dados interessantes sobre o pessoal envolvido na estrutura eclesiástica: as religiosas diminuíram drasticamente, de 113.295 em 2000 para escassas 75 mil em 2018; os sacerdotes diocesanos caíram, nos últimos 20 anos, em 3.000 unidades, de 35 mil para 32 mil, mas a idade média do clero aumentou, e a quantidade de ordenações está diminuindo. No entanto, o número total de sacerdotes continua muito alto se comparado ao de outros países do mundo: na Itália, vivem e trabalham quase 12% do clero de todo o mundo!
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A renúncia do cardeal Marx lida a partir de uma conjuntura mais ampla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU