07 Mai 2021
Em live promovida pelo Pacto Brasil Sem Pobreza, dois representantes da ASA testemunham as mudanças estruturais em curso no Semiárido, interrompidas pela opção política em manter a fome.
A reportagem é de Adriana Amâncio, publicada por Articulação do Semiárido - ASA, 06-05-2021.
No mínimo um quarto de toda a população brasileira que passa fome no Brasil está no Semiárido. A estimativa é fruto de um cruzamento entre os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) e do Ministério da Integração Nacional. O cenário é a consolidação de um processo de desmantelamento das políticas públicas de convivência com o Semiárido, no atual governo, agravado pela pandemia da Covid-19. Esta foi uma das problemáticas apontadas pelo membro da coordenação Executiva da ASA Brasil, Naidison Batista, na segunda edição dos Diálogos contra Pobreza, conviver, produzir e viver bem no Semiárido, realizado, ontem (6) no canal Brasil Sem Pobreza, no Youtube.
A agricultora, assentada da Reforma Agrária, liderança sindical do Polo da Borborema, no estado da Paraíba, Roselita Victor, participou do evento, que teve mediação do jornalista especializado em Comunicação e Mobilização para o Desenvolvimento Social, Jacques Schwarzstein. Os diálogos são uma das iniciativas do Pacto Brasil Sem Pobreza, um movimento nacional sem vínculos partidários e religiosos, que tem como lema defender um Brasil pós pandemia sem pobreza absoluta.
Naidison destacou que a ASA centrou em uma política de cisterna para consumo humano e, em seguida, investiu esforços na cisterna de produção. Indo além, destacou que essas políticas foram casadas com outras ações, pensando que só o armazenamento de água não era suficiente para garantir a sobrevivência da população semiárida.
“Uma delas, é o PAA, o Programa de Aquisição de Alimentos, que foi totalmente desmantelado no atual governo. Outra foi o Programa Nacional de Alimentação Escolar [Pnae]. Porque ele é importante? Porque ele leva alimento a todas as crianças matriculadas nas escolas públicas. Hoje, tem uma disputa no Congresso: se a gente vai, através do Pnae, proporcionar uma alimentação saudável ou se o Pnae vai comprar 40% de leite, ou seja, é um lobby dos produtores de leite que estão querendo matar o Pnae. Hoje, essa política está sendo pouco a pouco desmantelada. E o resultado disso é a forma que volta ao Semiárido”, destaca o membro da Coordenação Executiva da ASA Brasil, Naidison Batista.
A agricultora assentada da Reforma Agrária, líder do Polo da Borborema - coletivo de 13 sindicatos rurais, mais de 150 associações comunitárias, uma associação de produtores/as agroecológicos, a EcoBorborema, e uma cooperativa de agricultores e agricultoras familiares - Roselita Victor, faz coro à análise de Naidison com o relato da sua experiência de convivência com o Semiárido.
Ela vive, há 15 anos, em uma área de assentamento. No local, ela planta cultura de sequeiro, frutas, e cria animais. A produção serve à alimentação de toda a família, que partilha da terra. No local, Roselita vive com o companheiro, Eusébio, e os seus três filhos. A área conta com duas cisternas, sendo uma de 16 mil litros, construída com recursos do Pronaf, e a outra construída com recursos do Incra. As duas tecnologias exercem um papel importante na sobrevivência das famílias durante os períodos de estiagem.
“Aqui, a gente tira muita coisa pra casa, né! A carne, os ovos, o leite, os animais, mas também as frutas. E … bom… eu digo que aqui é o meu lugar de vida, o lugar da minha inspiração. (...) Já fui das famílias que teve muitas privações. Minha mãe ficava dividindo tudo para que desse direitinho a semana inteira. Eu não me sinto mais uma família dessas. Por exemplo, esse ano, a gente tá alí com um estoque de polpa de frutas de cajú, que teve aqui uma safra boa nessa região. Eu me sinto uma camponesa, ativista, sindicalista, com um prazer enorme de viver aqui. Esse viver tem muito a ver com o olhar que a gente foi dando ao Semiárido brasileiro, a partir da ASA”, atesta Roselita Victor.
A abordagem de Naidison, seguida do testemunho de Roseli, que testifica a eficiência das políticas de convivência com o Semiárido, mas que, hoje, se encontram em fase de sucateamento, chamou a atenção do público presente na live. Um dos participantes, Dr Hylton Luz, questionou: “Naidison, a concepção do Semiárido é a saída! Considerando que os resultados relatados são poderosos, qual a razão de não estar assegurada como uma política permanente?”
Em resposta, Naidison ponderou que a questão reside em um projeto político que não tem o combate à pobreza como prioridade. “Pra mim, é um problema da concepção de desenvolvimento que está implementada nas linhas de desenvolvimento do atual governo. Os resultados são poderosos, são altamente eficazes, os custos são pequenos, mas a política do governo de não priorizar o pobre, de não priorizar a erradicação da fome, leva a que esses resultados sejam jogados no lixo”, pondera.
Ampliando esta análise, Naidison destacou alguns elementos que reforçam tal escolha política. Entre eles, a Emenda Constitucional nº 95, aprovada no ano de 2016, “um teto de gastos, que cortou verbas de saúde, educação, assistência social e recursos para os pobres”. Nestas áreas estavam inclusas, ponderou o coordenador, “políticas de assistência técnica, Programa de Um Milhão Cisternas e vários outros elementos”. “Há um interesse da oligarquia brasileira, nordestina e do Semiárido de manter a concentração da água. E a implementação de todos esses processos significa a autonomia política e cidadã das pessoas do Semiárido. Ora, se a gente promove a autonomia política das pessoas do Semiárido, nós perdemos os escravos, perdemos os subalternos, perdemos os que estão constantemente nos pedindo coisas e devendo coisas e valores”, observa.
No Semiárido brasileiro, segundo Naidison, a alternativa buscada pela ASA para garantir as políticas de convivência com o Semiárido é o lançamento de uma campanha de captação de recursos junto ao Consórcio de Governadores do Nordeste, baseada na importância de que a água compartilhada é essencial para o desenvolvimento do Semiárido. “O que a gente quer é que o Consórcio apoie uma campanha de captação de recursos que possa garantir a continuidade deste processo de convivência com o Semiárido. Nós não queremos o Semiárido dos pedintes. Nós queremos o Semiárido dos que são desrespeitados dos seus direitos e precisam ser respeitados. Mas também o Semiárido que possa contribuir com o desenvolvimento do seu país, que é o que mostramos aqui”, pondera Naidison.
Pelo mundo, a ASA deve iniciar a missão, atendendo a um convite da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) para trabalhar ações de Convivência com o Semiárido na região do Chaco, uma das principais regiões da América do Sul, que possui aproximadamente 1.280.000.000 km² e abrange parte dos territórios brasileiro, da Bolívia, Argentina e Paraguai, na África do Sul e no Corredor Seco, na América Central.
“Aí é um negócio muito doloroso, porque o orçamento aqui não tem recurso para as nossas ações, entre as quais, ações de sementes crioulas. Essas ações estão no centro de um convênio da ASA com estes países e organizações sociais de lá, para que dentro da nossa metodologia de que agricultor aprende com agricultor, nós tragamos gente de lá pra aprender conosco, e a gente leve as pessoas daqui pra lá pra aprender com eles. Porque não há outra estrada, não há esmolas que resolvam, não há cestas básicas que a gente distribua. A gente tem que mexer na estrutura injusta que produz a fome no Semiárido,” afirma Naidison.
Mediador dos Diálogos, o jornalista Jacques Schwarzstein destacou que o relato de Rose demonstra satisfação e alegria em viver na região. Em outro momento, foi exibida uma imagem de satélite que representava um trecho com menor presença de vegetação do Semiárido paraibano, localizado próximo à região do Brejo, onde mora Roselita. Fazendo menção às áreas menos verdes, nas quais a estiagem é mais severa, Jacques questionou se as tecnologias de convivência com o Semiárido desenvolvidas pela ASA têm eficiência nos períodos de estiagem severa. Em sua reflexão, Rose defendeu que quanto mais seco o Sertão, mais clara fica a importância das tecnologias de convivência com o Semiárido.
“Eu lembro que quando eu comecei a atuar aqui no Sindicato [Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio], na seca de 93, as famílias não tinham nem onde colocar água que vinha de um carro pipa. Porque o lugar que vinha para botar água era um barreiro, aberto, onde o jumento tomava banho, onde o sapo também estava lá. Não tinha nem higiene. Nem um lugar para guardar água e isso era desumano demais. Então, você imagina o que é você ter uma água numa cisterna. Uma água de qualidade, que você pode beber. E aí os índices de crianças que morriam com diarreia e com outros problemas de saúde eram muito grandes. Então, assim, a qualidade de vida das crianças, dos idosos, das mulheres, é uma mudança da qualidade de vida muito forte”, ressalta Roseli.
O Pacto Brasil Sem Pobreza lançou um manifesto que traz a seguinte questão: o novo normal não existe com pessoas em situação de pobreza extrema. Por essa razão, as pessoas que assinam o documento defendem que o combate à pobreza seja prioridade nos diversos orçamentos governamentais e especialmente nas plataformas políticas dos candidatos e candidatas às eleições de 2022. Para assinar e divulgar o documento, acesse: www.brasilsempobreza.org/#block-35280
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A fome no Semiárido reside em um projeto político que não tem o combate à pobreza como prioridade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU