23 Abril 2021
"As acusações de papismo e protestantização mostram como o evento ortodoxo afeta e cruza não apenas a história, mas o confronto ecumênico", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 19-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mais de dois anos após a concessão do tomos da autocefalia à Igreja Ortodoxa da Ucrânia (6 de janeiro de 2019), a divisão da ortodoxia entre eslavos e helênicos, entre Moscou e Constantinopla continua a crescer.
Os pequenos sinais de diálogo (o encontro em Amã em fevereiro de 2020 - e o que se espera este ano -, o compromisso nas relações entre ortodoxos pró-russos e pró-constantinopolitanos na França, o encontro nos EUA entre Elpidóforos e Hilarion, a carta às Igrejas irmãs dos poloneses) não decolaram. Os juízos mútuos tornam-se mais duros e novas situações os alimentam.
Se a Igreja autocéfala e o estado ucraniano convidam Bartolomeu para os 30 anos de independência do país (24 de agosto de 2021), o chanceler da Igreja pró-russa, o metropolita Antônio, o rejeitam "para preservar a estabilidade social e a paz", porque o patriarca ecumênico é - segundo ele - responsável pelas tensões, violência e ilegalidades promovidas na Ucrânia contra a Igreja pró-russa.
Se o bispo pró-helênico Job, do Conselho Ecumênico de Igrejas, levanta a hipótese de uma proposta renovada para unificar a data da Páscoa, Hilarion de Moscou responde que não se fala disso: “Não há nenhum interesse de nosso povo em uma mudança no calendário".
Se a Macedônia do Norte pede autocefalia a Bartolomeu, Sérvia e Rússia aumentam o tom do confronto e se a República Tcheca comemora 70 anos de autocefalia de parte da Igreja de Moscou, Bartolomeu adverte que o reconhecimento não é válido porque não provém do Fanar.
Tudo isso não esconde o sofrimento generalizado nas Igrejas Ortodoxas e a presença de muitas vozes sinceramente preocupadas com o cisma. Sinal disso é o silêncio de muitas Igrejas (romena, búlgara, albanesa, etc.), a neutralidade de outras confissões (a começar pela Igreja Católica) e a continuidade das relações mesmo em um contexto de esclerose progressiva do movimento ecumênico.
É útil relembrar alguns momentos do confronto. Acolhendo um grupo de deputados ucranianos no início de março, Bartolomeu confirma: “A concessão da autocefalia à Igreja Ortodoxa Ucraniana em 2019 foi, antes de tudo, a expressão de uma pastoral pela justiça e pela liberdade espirituais... Só o patriarca ecumênico tem o direito e a responsabilidade de acordar a autocefalia, em conformidade com a tradição e a práxis canônica da Igreja Ortodoxa”.
Na entrevista concedida a Avvenire (13 de fevereiro), ressalta: “Não há cisma na ortodoxia. Eu disse e o repito agora. Há uma visão diferente de parte da Igreja da Rússia sobre a questão ucraniana, que se manifestou na cessação da comunhão na Igreja mãe de Constantinopla e depois com as outras Igrejas autocéfalas harmonizadas com a decisão do patriarcado ecumênico de conceder a autocefalia à Igreja. da Ucrânia". Diferenças canônicas e não dogmáticas. Nada a ver com "conveniências políticas ou até mesmo geopolíticas".
Em 7 de janeiro, o patriarca de Moscou, Cirilo, disse “O Fanar (Constantinopla) não cometeu simplesmente um erro, mas cometeu um crime ... O patriarca Bartolomeu estava sob pressão de poderosas forças políticas de uma das superpotências mundiais ... A lógica era aquela de distanciar a Rússia, a Rússia ortodoxa dos seus irmãos e irmãs ortodoxos do Mediterrâneo e do Oriente Médio ... A intenção: a divisão entre a Igreja russa e os ortodoxos gregos”. “Não há dúvida de que o que aconteceu a seguir em Constantinopla é o testemunho do castigo divino. O Patriarca Bartolomeu reconheceu os cismáticos na Igreja de Santa Sofia em Kiev e perdeu a Catedral de Santa Sofia em Constantinopla, que se tornou uma mesquita ... O pecado foi grande demais”.
Mais cautelosas, mas semelhantes, são as palavras de Hilarion, presidente do departamento de relações eclesiásticas do patriarcado, pronunciado algumas semanas antes: “Isto é a vox populi. Como hierarcas da Igreja Russa, não concordamos com essas conclusões porque consideramos que o triste evento não interesse apenas à Igreja constantinopolitana, mas a todo o mundo ortodoxo”. A Igreja Ortodoxa "está se dividindo. O patriarca Bartolomeu está na origem da divisão”. “Nós rompemos a comunhão apenas com os primazes e hierarquias que entram em comunhão com os cismáticos e o fazemos porque os santos cânones nos impõem”.
As igrejas interessadas são: Constantinopla, Grécia, Antioquia e Chipre. O chanceler da Igreja ortodoxa ucraniana pró-russa, Metropolita Antônio, confirma: “É necessário falar da crise que se desenvolve na ortodoxia mundial não como um confronto entre o mundo grego e eslavo ou uma batalha por questões de administração eclesial. Tudo é mais complexo e mais grave. Está ocorrendo um grande cisma que atravessa cada vez mais as Igrejas locais. A essência da crise pode ser resumida na luta entre aqueles que querem alimentar sua própria visão de ortodoxia, que se acomoda e corresponde aos seus próprios interesses, e aqueles que permanecem fiéis ao depósito da fé ortodoxa”.
A "infame" acusação contra Constantinopla é aquela de "papismo", a pretensão de um poder semelhante ao exercido por Roma sobre as Igrejas do Ocidente. “O que está se espalhando pela mídia - Bartolomeu responde em 8 de março - sobre as pretensões papistas do patriarcado ecumênico é completamente falso ... Contribuir para a arbitragem e para a resolução das controvérsias que surgem entre as Igrejas ... é a nossa responsabilidade, o nosso legado. Não temos o direito de ignorá-lo. As especulações sobre outras intenções são fake news”.
Numa entrevista a 10 de fevereiro foi explícito: “O problema não diz respeito realmente à autocefalia ucraniana ou às ordenações consideradas inexistentes ou inválidas na hierarquia ucraniana, como dizem alguns. O objetivo é cancelar os direitos próprios à sede constantinopolita para passá-los a outras mãos. Vocês podem compreender como em minha posição, por um lado, não posso repassar sem questionar as responsabilidades que os meus antecessores me entregaram para a práxis eclesial e, por outro lado, permitir, porque está em jogo a minha responsabilidade, o colapso espiritual daqueles que flertam com uma Igreja Ortodoxa de tipo federalista, típica das Igrejas protestantes. Quem está agindo como papista? Aquele que se mantém fiel à tradição ou quem reivindica uma posição que nunca teve e que não terá?”. A alusão a Moscou é evidente.
Hilarion responde: “Quanto à mitologia que paira sobre a Igreja russa, as acusações de expansão da teoria da ‘terceira Roma’, citem para mim apenas um documento oficial de nossa Igreja onde se fale de Moscou como a ‘terceira Roma’. Ou mesmo uma resolução do sínodo, uma citação do patriarca ou uma intervenção minha. Não existe. É uma concepção que remonta a séculos anteriores e que pertence a um passado distante. Não tem mais nenhum interesse para nós, não queremos assumir a liderança na ortodoxia mundial. O lugar que ocupamos é suficiente para nós”.
O bispo Irineu de Baćka, da Igreja sérvia, grande apoiador de Moscou (o atual patriarca sérvio, Porfírio, é mais cauteloso), acrescenta: "Infelizmente, o problema do ‘neopapismo’ existe ... (a intervenção de Constantinopla na Ucrânia) não aboliu nem atenuou os cismas, mas, ao contrário, os aprofundou e prolongou. Os cismas existentes, foram transmitidos do contexto ucraniano a todo o mundo ortodoxo”.
Quisemos indevidamente conciliar primus inter pares (primeiro entre iguais) com primus sine paribus (primeiro sem iguais). Moscou silencia sobre os conflitos religiosos com a Igreja da Geórgia (Ossétia e Abkházia), com aquela Romena (minoria romena nos territórios ucranianos com presença predominante da Igreja pró-russa) e da Moldávia, para enfatizar as dificuldades das Igrejas que aceitaram a autocefalia ucraniana (Constantinopla, Chipre, Grécia e Antioquia).
Enquanto Elpidoforos, bispo dos EUA para os greco-bizantinos, compara a coragem de Bartolomeu a do patriarca Fócio "que presidiu com amor o primeiro trono da ortodoxia" à qual os eslavos sempre estarão devedores "por sua visão, coragem e tenacidade em compartilhar a grande luz de Cristo”, Hilarion acusa o patriarca ecumênico de servilismo aos EUA e o citado Irineu simplifica e ironiza sobre a revolução copernicana de Constantinopla que, após uma dezena de encontros com o embaixador estadunidense sobre a liberdade religiosa, M. Brownback, muda sua atitude e reconhece as estruturas cismáticas na Ucrânia.
Para o arcebispo Leônidas, vice-presidente do Departamento de Relações Exteriores do patriarcado de Moscou, a autocefalia ucraniana "é antes de tudo um projeto político que visa enfraquecer a Igreja Ortodoxa Russa, desmantelar a ortodoxia, fortalecer a divisão entre Rússia e Ucrânia". Bartolomeu é vítima do embate geopolítico entre os EUA e a Rússia.
Leitura quase idêntica à expressa pelo chanceler de Moscou, Sergej Lavrov, em entrevista coletiva no dia 18 de janeiro: “Washington não escondeu o desejo de semear a discórdia na Ucrânia ao criar uma suposta Igreja Ortodoxa Ucraniana”. Os estadunidenses teriam confiado a Bartolomeu, por meio do cisma ucraniano, a missão de “enterrar a influência da ortodoxia no mundo de hoje. Não vejo outra explicação para suas ações”.
O ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, inverte a leitura ao invocar a liberdade religiosa: "Vigiei que os Estados Unidos apoiassem o reconhecimento internacional da Igreja Ortodoxa Ucraniana, ajudando o Metropolita Epifânio a escapar da influência russa".
A situação eclesial na Ucrânia está mais tranquila do que há dois anos. A Igreja pró-russa continua sendo a mais importante: 53 dioceses, 12.374 paróquias, 255 mosteiros, 12.456 padres, 108 bispos (dados que também incluem a Crimeia).
A Igreja autocéfala tem 7.000 paróquias, 44 dioceses, 80 mosteiros, 4.500 padres, 60 bispos. Mas os levantamentos sociológicos dão a esta última 18% dos consensos e à primeira 13,6% (sem Donbass e Crimeia). Deve ser lembrado a presença significativa de católicos grego-ortodoxos que ultrapassam os quatro milhões de habitantes (além daqueles de rito latino).
Em uma pesquisa sobre a confiança de outubro de 2020, as figuras eclesiásticas são nesta ordem: Papa Francisco 45,4%, Epifânio (Igreja autocéfala) 44,3%, Bartolomeu 32,1%, Onúfrio (Igreja pró-Rússia) 31,9%, Shevchuk (grego-católicos) 29,3%, Cirilo de Moscou 15%.
O ressurgimento da guerra de Donbass (14.000 mortos) viu aumentar o perigo de um confronto OTAN-Rússia e é a emergência mais urgente e o problema social mais grave. Neste contexto, os conflitos eclesiais são, por um lado, evidenciados (o Donbass e as zonas fronteiriças orientais são maioritariamente de origem russa, assim como a Crimeia ocupada militarmente pela Rússia), por outro lado, relativizados pela necessidade urgente da paz. As questões eclesiais mais discutidas são as possíveis censuras de Constantinopla à Igreja pró-russa e a permanência de leis da presidência anterior (Porochenko).
Bartolomeu já disse que não reconhece mais Onúfrio como o metropolita de Kiev, ao que o sínodo da Igreja pró-russa respondeu afirmando a inexistência de um direito em mérito por parte de Constantinopla, visto que Kiev não está sob a jurisdição de Constantinopla. Uma provisão semelhante contra os bispos está em preparação. O metropolita Antônio a considera simplesmente "delirante". Epifânio pediu a Bartolomeu o reconhecimento como patriarcado, depois que a maioria das paróquias aderisse à Igreja autocéfala.
Ainda estão em vigor duas leis que preveem a modalidade da transição canônica para a Igreja autocéfala e a mudança do nome da Igreja pró-russa: de Igreja Ortodoxa Ucraniana para Igreja Russa na Ucrânia. Com um terremoto legal em termos de propriedades e reconhecimentos administrativos e legais. A Igreja autocéfala invocou seu respeito, enquanto a Igreja pró-russa apresentou ao presidente um milhão de assinaturas exigindo sua modificação. Haveria uma dezena de projetos de lei que afetariam os direitos da Igreja pró-russa. Hilarion lembrou ao presidente ucraniano Zelinski de seu direito-dever de apelar ao Tribunal para verificar a coerência constitucional das leis e supervisionar as administrações locais.
As acusações de papismo e protestantização mostram como o evento ortodoxo afeta e cruza não apenas a história, mas o confronto ecumênico. A reaproximação entre a Ortodoxia e o Catolicismo aconteceu com o concílio, o levantamento das excomunhões e o encontro entre Atenágoras e Paulo VI. O diálogo teológico foi iniciado na década de 1980 e a questão do primado (no primeiro milênio) foi iniciada em 2000.
Já no encontro em Belgrado (2006) e ainda mais em Ravenna (2007), a ortodoxia russa deixou de considerar a existência de um primado universal na Igreja no primeiro milênio, embora apresentada de forma muito diferente pelas duas tradições.
Vamos especificar. Em 2013 saiu de Moscou o documento de resposta ao de Ravenna, que invalida suas conclusões. O documento de Ravenna é inspirado no lado ortodoxo pela teologia do maior teólogo ortodoxo vivo, Ioannis Zizioulas. Está centrada na interpretação eucarística da eclesiologia. A Igreja só se realiza no sacramento, que se torna modelo também para as suas estruturas. Como na celebração o Cristo que se convoca está representado no ministro, o mesmo acontece no exercício das instituições eclesiais em todos os níveis, diocesano, territorial e universal. É também isso que a cristologia solicita: o mistério de Deus está misturado com a carne de Jesus, o que pressupõe que a sua representação não esteja ligada a instituições (mesmo o sínodo ou o concílio), mas a uma figura que tenha os traços da "personalidade representativa". Compreende-se como o patriarca ecumênico possa ser definido conjuntamente por ser primus inter pares e primus sine paribus.
O texto russo se opõe radicalmente a esse sistema. A autoridade do bispo nas dioceses é de ordem sacramental com base na tradição apostólica, a do primaz é de ordem primacial-eletiva, a universal é de acordo com os cânones da Igreja antiga: um primado de honra sem qualquer primazia.
A consequência é sacralizar os atuais equilíbrios e estruturas. Com essas conclusões somadas ao cisma ucraniano, é fácil prever um bloqueio ou uma séria desaceleração do movimento ecumênico, pelo menos no nível teológico.
O chefe do dicastério para o diálogo ecumênico, card. Kurt Koch, em artigo de 18 de janeiro (L'Osservatore romano) valoriza a posição do documento de Ravenna: “Por parte das Igrejas Ortodoxas, ao contrário, podemos esperar que, no diálogo ecumênico, venham a reconhecer que a primazia no nível universal não é apenas possível e teologicamente legítima, mas também necessária. As tensões intraortodoxas, que surgiram de forma particularmente evidente por ocasião do santo e grande Sínodo de Creta em 2016, deveriam fazer-nos compreender a necessidade de considerar um ministério de unidade também em nível universal da Igreja, que obviamente não deveria se limitar a uma simples primazia honorária, mas também incluir elementos jurídicos. Tal primado em nada contradiria a eclesiologia eucarística, mas seria compatível com ela, como frequentemente nos lembra o teólogo e metropolita Ioannis Zizioulas”.
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Ortodoxia: cisma e ecumenismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU