07 Abril 2021
“A corrida entre os países para obter mais e mais vacinas para si, as compras dos países ricos para terem mais vacinas até do que a sua população, não são uma reminiscência de uma perspectiva que devemos deixar para trás? Será que temos que recuperar uma consciência mais global e duradoura, mais fraterna, com novos modelos de governança global em matéria de solidariedade e saúde?”, escrevem Cristina Fornaguera, Flávio Comim e Llorenç Puig.
Cristina Fornaguera é professora do Grup d’Enginyeria de Materials (Gemat).
Flávio Comim e Llorenç Puig são professores da Cátedra de Ética e pensamento cristão no IQS School of Management da Universitat Ramon Llull, Barcelona.
O artigo é publicado por El Periodico, 30-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis o artigo.
Todos nós somos tristes testemunhas do tremendo impacto da covid na economia, na vida das pessoas, das empresas, na grande tensão que vivem os trabalhadores da saúde. É evidente a urgência de resolver tudo isto, e a altíssima prioridade que deve ser dada aos esforços para conseguir isso quanto antes.
Felizmente, foi possível desenvolver vacinas eficazes em um tempo extraordinariamente rápido: um processo que pode durar décadas foi feito em 12 meses. Uma grande conquista! Agora a urgência é que a vacina possa ser aplicada de forma rápida, universal e equitativa.
Qual é o gargalo da garrafa que impede a rápida produção e distribuição de vacinas? Inicialmente, parecia ser a estrutura organizativa e logística nos diversos países, mas estamos vendo que o limite é posto pela produção dessas vacinas. Exemplo disso são os atrasos no envio dos insumos das vacinas quando o sistema já está preparado para vacinações massivas.
O interesse deveria ser máximo para que não fiquem grandes grupos da população, ou países inteiros, sem se vacinar. Calcula-se que 85 países não terão sua população vacinada até 2023 (!). E já sabemos que quanto mais demorar para o vírus desaparecer, mais probabilidades há de que apareçam novas mutações que possam gerar novas cepas ou variantes, mais prejudicada sairá a economia, e maior será o enorme custo humano que provoca a doença.
Então, na realidade, o que dificulta a produção massiva das vacinas?
A primeira razão é a falta de investimentos decididos e ágeis para que a produção garanta uma imunidade universal e que chegue a todos os cantos do planeta. De fato, não é chocante esta falta de investimento decidido, coordenado e rápido, quando a Câmara de Comércio Internacional (CCI) fala de um custo de “1,24 a 7,6 trilhões de euros” por não fazer as vacinas chegarem aos mais pobres?
Por isso parece necessário que haja esforços generosos das instâncias públicas em seus diferentes níveis, e das farmacêuticas que, como serviço à sociedade, depois do esforço no desenvolvimento das vacinas, estão chamadas a facilitar as licenças de produção e a aumentar sua produção a preços o mais ajustado possível.
Em segundo lugar, a origem desta falta de decisão coordenada e em consenso talvez seja uma falta de olhar global, que veja a humanidade como um todo, e a falta de um olhar consciente não somente da responsabilidade de salvar vidas e modos de subsistência, mas também de que todos estamos conectados com todos.
Mas atenção: não esqueçamos que o simples aumento de produção de vacinas não garantirá por si sua distribuição equitativa e universal para que chegue aos países mais pobres. Em 21 de março, enquanto 21% dos norte-americanos estavam vacinados, na América do Sul e África eram apenas 3,78% e 0,46% de suas populações, respectivamente.
É necessário um compromisso ético e humanitário para redobrar o esforço de distribuição universal. A corrida entre os países para obter mais e mais vacinas para si, as compras dos países ricos para terem mais vacinas até do que a sua população, não são uma reminiscência de uma perspectiva que devemos deixar para trás? Será que temos que recuperar uma consciência mais global e duradoura, mais fraterna, com novos modelos de governança global em matéria de solidariedade e saúde?
Por fim, queremos lembrar que a situação em que vivemos também evidenciou o que há de melhor em muitas pessoas: trabalhadores da saúde, pessoas que cuidam dos doentes e idosos, que trabalham em pesquisa tecnológica e científica, que colaboraram com uma preciosa transparência, e também as pessoas responsáveis pelas principais decisões que foram tomadas e que seguem as linhas que comentamos, como a iniciativa Covax para o desenvolvimento mundial equitativo de vacinas contra a covid-19.
Talvez essas pessoas nos lembrem que é hora de resgatar o valor do cuidado, do olhar amplo e, ao mesmo tempo, centrado nas pessoas, e das decisões valentes e dignas. Oxalá que a covid nos ajude a aprender algo que nos ajude no futuro, porque seu preço tem sido elevadíssimo.
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Ética e vacinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU