18 Março 2021
É uma iminência mundial sobre o trauma. O psiquiatra Bessel van der Kolk estudou por mais de trinta anos como se desenvolvem as situações traumáticas nas diferentes etapas da vida, o que pode proteger e prevenir, e o que é possível fazer depois, desenvolvendo terapias inovadoras e efetivas. De fato, foi membro da primeira equipe que pesquisou como o trauma muda os processos cerebrais.
Nasceu em 1943, na Holanda, mas estudou medicina nos Estados Unidos, primeiro na Universidade de Chicago e depois em Harvard. Dirigiu o Hospital de Boston e, em 1999, iniciou a Rede Nacional de Estresse Traumático Infantil, que hoje possui 150 associados em todo o país.
Além disso, é autor de O corpo guarda as marcas: cérebro, mente e corpo na cura do trauma, best-seller do New York Times, traduzido para 35 idiomas.
Via Zoom, de sua casa em Boston, Van der Kolk fala sobre como o estresse da covid afetou a população, o que aconteceu após a gripe espanhola, em 1918, e quais reflexões individuais e políticas são importantes fazer em um mundo que começa, pouco a pouco, a ver o início do fim da pandemia.
Inicia dizendo que durante este tempo de fechamentos intermitentes, passou bem, pois vive com sua esposa, sua relação é muito fortificante, continuou com o seu trabalho e conseguiu se conectar com filhos e netos via Zoom, o que o encanta.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 12-03-2021. A tradução é do Cepat.
Deve fazer parte do pequeno grupo de pessoas que gostam do Zoom...
Não acredito. O Zoom é fantástico. Esta conversa não seria igual por telefone. São vozes e rostos, o que nos faz bem. Vejo meus netos, que vivem na Irlanda, e é magnífico. Sinto-me muito conectado com eles.
O que mais foi positivo desta experiência tão dura?
Vejo muitas pessoas que conseguiram estar bem, apesar de tudo, que foram criativas nesta situação. Vi muito mais pessoas (do que pensei) que conseguiram prosseguir, cuidando dos filhos, e pensei que isso seria mais difícil. E estou impressionado com a criatividade de muitas pessoas ao lidar com isto, e o bem que fizeram. Aqui, por exemplo, há pais que criaram “bolhas” para cuidar de seus filhos, juntando-se aos vizinhos e amigos. Compartilharam o cuidado das crianças, criando comunidades para cuidar.
E o que me preocupa é que as pessoas que sofreram traumas estão muito menos inclinadas a compartilhar em comunidade. Tendem a ter medo das outras pessoas e a não se valorizar tanto. E assim é mais difícil ir até o vizinho e oferecer que cuidem mutuamente das crianças, em relações de reciprocidade e confiança. É importante que se curem de seu trauma, mas é difícil compartilhar com outros, compartilhar e tornar a vida mais tolerável.
O que acontece com o cérebro, quando se sofre um trauma?
Quando você está traumatizado, seu cérebro de sobrevivência - que não está pensando, mas reagindo, é um cérebro animal, uma parte de você que tem a responsabilidade de escapar ou lutar – fica configurado para ver perigo o tempo todo. Então, estas pessoas tendem a se tornar hipersensíveis a feridas muito pequenas, porque todo o seu sistema está programado para ficar em alerta sobre ser ferido novamente. Isto torna as pessoas muito mais inclinadas a reagir de um modo autodestrutivo. Também a se expor a situações de perigo.
Ao estar alerta o tempo todo e ver perigos em todas as partes, buscam não sentir. E podem começar a tomar álcool ou drogas para fazer com que os sentimentos desapareçam. E então deixam de ver os perigos, porque o sistema está disparando alertas o tempo todo. Não sabem mais quando acreditar nos sinais de perigo.
O que ajuda nesse sentido?
Quanto mais trauma você tem, mais seu corpo se sente ameaçado o tempo todo. As pessoas que vêm da vivência de situações de abuso, tendem a se sentir mal consigo mesmas, a se culpar, então é mais difícil para elas estabelecer contato e se conectar com outras pessoas. E tudo ficará bem desde que possamos estar cercados de pessoas que nos fazem sentir confortáveis e seguros. Mas se isso não é possível, e uma mulher está só, as crianças precisam de muita atenção, o marido bebe... tudo isso se transforma em algo intratável, enorme. E podem ocorrer comportamentos muito desorganizados ou violentos.
Em relação às pessoas que estão sofrendo estresse pela pandemia, como você vê o impacto disto no futuro?
A covid cria condições pré-traumáticas. Ainda não é o trauma e, se tudo sai bem, as pessoas prosseguirão. Mas isto é importante: quando podemos ser abertos e flexíveis, podemos nos ajustar ao que acontece, mas quando estamos fechados, fica muito difícil. Todos temos nossa carga, todos temos níveis variáveis de impactos de trauma, mas para que se expressem são necessárias certas circunstâncias.
O que ajuda a evitar que se tornem um trauma?
Dizer a verdade do que aconteceu é um elemento. Se me pegar, poder dizer. E depois, poder fazer algo. Se você se sente assustada, irritada ou agoniada, é importante fazer algo que mude a situação, algo que faça a diferença, que tenha um propósito e para cada um será algo diferente, mas é importante se sentir um membro valorizado da espécie humana. Terceiro: ter alguém perto que possa te ajudar. Todos precisamos de outras pessoas ao redor para nos apoiar, para nos animar e validar.
A conexão humana é terrivelmente importante. Ainda não tenho a informação de quantas pessoas estiveram totalmente isoladas durante a pandemia, por meses. E me pergunto o que acontecerá com elas, que estão vivendo vidas virtuais.
A Organização Mundial da Saúde disse que a crise em saúde mental vai durar muitos anos. Concorda com essa avaliação?
Olha, somos muito ruins em prever o futuro [sorri].
Há situações semelhantes que sirvam nesse sentido?
Eu estudei a pandemia da gripe espanhola em 1918, a última pandemia. Minha família foi muito afetada por ela e, por isso, eu tinha muita curiosidade. E o que aconteceu depois dela é que, uma vez encerrada, as pessoas se esqueceram completamente da pandemia! Ninguém queria continuar falando disso. Isso não era o previsível, mas somos uma espécie complexa. É muito possível que a covid possa levar a revoluções sociais e a uma maior igualdade, mas pode levar ao fascismo. Não sabemos! E talvez as pessoas tenham aprendido muito, mas não sabemos o que acontecerá.
Muitas pessoas me falam que seremos mais conscientes da necessidade de estar conectados, mais em sintonia uns com os outros. Minha grande esperança é que depois disto, em cada colégio, em cada escola do mundo, as crianças aprendam quatro pontos: ler, escrever, matemáticas e autocontrole. O autocontrole é muito central neste tempo de covid. Como se manter calmo, como poder respeitar os ciclos de sono, manter o corpo sadio, sentir-se bem.
O que mais aprendeu da gripe espanhola e os comportamentos daqueles que sobreviveram?
Os sobreviventes ficaram muito traumatizados com aquela pandemia. Não se falava dela, o trauma ficou enterrado e se expressou, então, em sintomas físicos e em opressão doméstica. As pessoas estavam aterrorizadas. E penso que a gripe espanhola pode ter tido algo a ver, depois, com a chegada de Hitler ao poder.
Por quê?
Porque as pessoas se sentiam tão desoladas que esperavam que alguma pessoa poderosa pudesse resolver todos os seus problemas. O trauma prolongado torna as pessoas muito vulneráveis a se inclinar para soluções absolutas. Por exemplo, um conhecido meu escreveu um livro acerca de como, após grandes desastres naturais, as pessoas ficam muito mais inclinadas a se transformar em fanáticos religiosos. Se você está assustado, busca alguma pessoa poderosa para que te ajude, pois se sente muito indefeso.
Então, a depender de como Biden atue, será muito importante não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, ao demonstrar um exemplo de como alguém é capaz de manter o sentido de agência (a consciência sobre as próprias ações e consequências) vivo. A pergunta importante, aqui, é se a lição disto será estar mais no controle de nossas vidas, ou se as pessoas se sentirão mais desvalidas e buscarão uma solução extrema que as salve.
Justamente, o presidente Biden disse que é preciso fazer um processo de cura em seu país. Como os países podem curar feridas, não só da covid, mas do passado?
Eu penso em tais coisas o tempo todo. Para mim e para a maioria das pessoas que conheço, a presidência de Trump foi mais traumática do que a covid. E acredito que os chilenos podem compreender isto, pois vocês tiveram esses anos obscuros de ditadura terríveis. Isso é mais daninho que o vírus.
O sistema não ter mais justiça, nem previsibilidade, com pessoas podendo ser baleadas na rua, tudo isso é muito ruim, e penso que, até certo ponto, foi o que definiu alguns países, como o Chile. É parte do que vocês são, um país onde houve tortura, essa maldade que afetou tão profundamente as pessoas e de tantos modos. É que a maneira como vivemos todos juntos é muito importante para prevenir e evitar o trauma.
O que é relevante, em sua opinião?
Pergunto-me, por exemplo, até que ponto estamos criando sistemas escolares que são seguros. Até que ponto apoiamos as pessoas para que não estejam condenadas à pobreza. Ou se provemos serviços médicos e de saúde para todos. São temas muito importantes em termos de prevenir o trauma.
Até agora estou muito contente com o novo governo de Joe Biden. Acredito que o presidente está se concentrando realmente em curar, e fazer com que as pessoas se sintam seguras, a salvo, por exemplo, no econômico. Isto tem um enorme impacto nas relações familiares e nos níveis de violência que existem.
Quais formas de lideranças são necessárias para alcançar isso?
É uma pergunta gigante, mas começarei por aqui: para lidar com o trauma, para enfrentá-lo, o que serve é ser capaz de dizer a verdade e não ser punido por falar a sua realidade. Então, o primeiro tema político é que seja possível a liberdade de se expressar, o que está na essência da constituição americana, sua primeira emenda.
Segundo, e foi Franklin Delano Roosevelt quem disse, ser livres do medo, da pobreza e de sentir medo por sua saúde. Então, poder se expressar, poder ir a uma boa escola, desenvolver-se e ter saúde são realmente as fundações de uma sociedade sadia.
O que é intrigante para mim, e que não compreendo, é por que em algumas partes do mundo onde estão indo relativamente bem nestes termos, há movimentos simpatizantes a líderes totalitários na direção oposta. Não sei de onde vem isso, realmente.
As pessoas que viveram traumas, muitas vezes, ficam marginalizadas. Acredita que pelo fato de o mundo, em conjunto, estar vivendo condições pré-traumáticas, isso mudará?
Olha, o trauma está no meio de todos nós. Está por todos os lados. Uma em cada quatro mulheres foi sexualmente abusada ou assediada em sua infância. Uma em cada quatro crianças experimentou violência física. É verdade que se isso se torna sintomático, você fica marginalizado, mas a verdade é que o mundo está cheio de pessoas traumatizadas.
Após a pandemia, poderá haver mais compaixão e empatia?
Essa é a decisão de fundo, hoje, na sociedade estadunidense. Seremos uma sociedade mais compassiva ou mais egoísta? Pode acontecer uma coisa ou outra: está aberto. É interessante pensar nisto: depois da Primeira Guerra Mundial, basicamente (neste sentido), nada aconteceu. Mas depois da segunda, as social-democracias nasceram como produto dela.
Algo aconteceu aí. Churchill perdeu, os aristocratas foram tirados de seus cargos, apareceu a seguridade social, o seguro de saúde. Então, a Segunda Guerra Mundial fez com que as pessoas se tornassem conscientes de como as desigualdades as separam, deixando-as extremamente feridas. Aprenderemos a lição desta vez? Ninguém sabe ainda.
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“O trauma está no meio de todos nós”. Entrevista com Bessel van der Kolk - Instituto Humanitas Unisinos - IHU