05 Março 2021
“Berta colocou a vida no centro de seu povo. Eles a tiraram por representar o que não se identifica com o poder, pois Berta era uma mulher e não um homem. Berta era indígena e não europeia. Berta era uma líder e não um líder. Tornou-se objeto de ódio para aqueles que não viam no rio qualquer valor que não fosse o econômico. Quiseram enterrá-la, mas não sabiam que éramos sementes. Berta se multiplicou e se tornou maior”, escreve Soledad Castillero, antropóloga social e pesquisadora da Universidade de Granada, Espanha, em artigo publicado por El Salto, 03-03-2021. A tradução é do Cepat.
“Quiseram enterrá-la, não sabiam que éramos sementes e Berta se multiplicou em nossos corações” (Laura Zuñiga Cáceres, Tandil, 2016)
Entre pausas, uma das filhas de Berta Cáceres dizia estas palavras em agradecimento ao apoio recebido de forma internacional por aqueles que velam pela preservação da memória de sua mãe. Não recordo exatamente se era o mês de outubro ou novembro, quando tive a oportunidade de assistir uma de suas palestras em Tandil, província de Buenos Aires, quando narrava como é ser filha de uma ativista ambiental, em um contexto como o hondurenho, e como se entrecruzam as categorias de gênero, etnia e classe no valor que se projeta para uma pessoa, a partir do Estado. Assim, a história de Berta é a história de seu povo, pois sua luta nada mais foi do que um projeto coletivo não ancorado no presente, mas em favor da preservação de uma cosmovisão sadia para as gerações futuras.
Berta Cáceres
(Foto: Reprodução/Arquivo pessoal)
Lencas é o modo como popularmente é conhecido um povo presente hoje em dia no sudeste de Honduras, bem como na parte Oriental do Equador, concretamente nos departamentos de Intibucá, La Paz, Lempira e o sul de Santa Bárbara, centro-sul de Francisco Morazán e Valle, onde fazem fronteira com os Lencas de El Salvador (Ortiz, 2012). Trata-se de um povo dedicado em grande parte à agricultura, com cultivos como o milho, o feijão e a abóbora.
Ao sul de Intinbucá, La Paz e Lempira, de seis a sete meses não chove, o que faz com que os agricultores e as agricultoras tenham que se deslocar para outras regiões para participar das colheitas. Existem somente duas estações, uma seca e uma de chuvas, sendo a estação de chuvas a que compreende de maio a outubro e a seca ocupa todos os outros meses. Embora tenham sido os espanhóis que designaram estas estações como verão e inverno, seguem, hoje em dia, usando esta designação. Para um povo ligado à agricultura, a água é um recurso essencial. Daí a necessidade de auto-organização quando recursos naturais próprios são atacados.
Hoje, a organização dos povos originários como atores políticos está na vanguarda das lutas sociais na América Latina. Como data chave podemos posicionar o I Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México, em 1940. Poderíamos falar de um ponto de inflexão, onde se apresenta o caráter emancipador dos povos, sendo no citado congresso o momento em que se começa a falar de uma questão de estado. Mesmo assim, as ideias que são estabelecidas estão longe dos interesses dos povos originários, que aí ainda não podem mostrar sua voz como tal.
Durante este congresso, é oferecida a possibilidade de “integração”, de “assimilação”, para que assim possam fazer parte da sociedade nacional (Stavenhagen, 2000). Esta ideia deixava à margem os valores e as ideias das culturas próprias de cada sociedade, exceto salvaguardar aspectos que gerassem dinheiro com atividades turísticas ou de comércio, como o artesanato.
Estima-se que existem cerca de 522 povos originários na América Latina, um número mais do que considerável para que se queira ignorá-los. Centrando-nos em Honduras e como exemplo de organização, está constituído o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH). O conselho nasce em março de 1993, com os seguintes objetivos: a defesa do meio ambiente, o resgate da cultura Lenca e a melhora nas condições de vida dos povos e comunidades indígenas em relação às reivindicações de natureza política, social, cultural e econômica.
Mapa de Honduras
(Foto: Google Maps)
Define-se como uma organização social e política sem fins lucrativos, indigenista e pluralista, ampla, solidária e unitária da zona sul-ocidental de Honduras, com incidência nacional. Incumbe-se de ser um espaço gerador de debates e análises constante da conjuntura regional e nacional, que impulsiona ações e propostas de maneira permanente.
Desde sua formação, uma das ações mais imediatas que realizou, em primeiro de maio de 1993, foi a marcha dos trabalhadores em protesto pelos altos custos da cesta básica, reivindicando a defesa da mata e a cultura, e pela recuperação de ruas e canalizações da cidade. Naquela ocasião, as demandas eram de aspectos basicamente urbanos, mas muitas das pessoas que compareceram à marcha eram das zonas rurais.
Naquele mesmo ano, quando se organizava a Semana da Soberania, constatou-se que a organização caminhava para uma direção diferente das demandas do sujeito social principal, o indígena, razão pela qual entraram em um período crítico: “Estávamos sofrendo as dores de dar à luz nossa própria identidade. Nós queríamos chegar às comunidades e as comunidades queriam encontrar espaços para canalizar suas demandas...” (COPINH, 2008).
Isto mudou o rumo da organização, passando a ser uma instância política aglutinadora não tanto das organizações populares tradicionais, mas de comunidades. Em 1995, o COPINH consolida sua tendência de ser um movimento social com clara orientação indígena, fomentando e canalizando sua participação, suas reivindicações, para melhorar suas condições de vida, estabelecer vínculos de solidariedade com outras etnias e ligar o regional ao nacional. Sua relação com o Estado e as elites tem sido de tensão, confronto e de denúncia permanente.
Nossa protagonista, Berta Cáceres, era a coordenadora geral deste conselho. Berta Isabel Cáceres Flores (04 de março de 1973 - 03 de março de 2016) foi uma ativista ambiental, líder do povo Lenca, coordenadora do COPINH e ganhadora do Prêmio Goldman 2015. Berta foi assassinada no dia 03 de março de 2016, há cinco anos, por praticar o que na teoria as convenções e as legislações refletem. Decidiu organizar seu povo e empreender uma campanha que pressionou com êxito a maior construtora de barragens do país a retirar o projeto Agua Zarca: “Nós nos consideramos guardiões da natureza, da terra e sobretudo dos rios” (Cáceres, BBC, 2015).
Seu assassinato é um exemplo do crime constante contra as pessoas defensoras dos direitos humanos, da ecologia, do meio ambiente, da terra e da vida que lhes pertence. Pessoas que exemplificam o compromisso diante de uma violência institucional do Estado. Honduras é considerado um dos países mais perigosos para as pessoas que defendem estes direitos, que são contra as políticas neoliberais. É que quase 30% da superfície do país foi destinada a concessões mineiras que precisam de grandes quantidades de energia elétrica e de água.
O caso de Berta Cáceres é antecedido por muitos outros, de pessoas assassinadas por motivos iguais, pela organização e a luta. Moisés Durón Sánchez, William Jacobo Rodríguez, Maycol Rodríguez e Tomás García são exemplos de mortes que se somam por se opor à barragem Agua Zarca. Estamos diante de um problema global-local. Globalizam os capitais econômicos, mas não os humanos. São conferidos direitos às multinacionais que, por sua vez, restringem os direitos das populações indígenas. Decidem por eles, mas sem eles.
Na teoria, existe um grupo de organizações que velam e estabelecem no âmbito jurídico leis que deveriam impedir estes acontecimentos. Um exemplo disso é a Organização Internacional do Trabalho – OIT. Fundada em 1919 como uma agência das Nações Unidas, esta organização está presente nos países e trata de diversas questões, sendo o seu eixo central a promoção do emprego e a proteção das pessoas. A Convenção 169 corresponde aos povos indígenas e tribais, criada em 1989. Tal convenção trata questões diretas sobre as terras em seus artigos números 14, 15, 16 e 17. Sendo assim, aponta:
Art. 14: Dever-se-á reconhecer aos povos interessados o direito de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Os governos deverão garantir a proteção efetiva de seus direitos de propriedade e posse.
Art. 15: Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes em suas terras deverão ser especialmente protegidos.
Art. 16: Os povos interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.
Art. 17: Deverão ser respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra entre os membros dos povos interessados estabelecidas por esses povos.
No entanto, todas as questões que ficam fixadas e registradas em um organismo institucional de caráter internacional, entram em conflito com a aprovação de projetos como o de Agua Zarca.
Aprovado durante os anos 2010-2013, se estabelece sobre um terreno que é propriedade coletiva das comunidades e, portanto, está sujeito às decisões dos conjuntos indígenas. Em 2009, aprova-se a Lei Geral de Águas que confere concessões sobre os recursos hídricos e, além disso, aprova-se o decreto 233 que revoga todos os decretos anteriores que proibiam projetos hidrelétricos em áreas protegidas. O território do povo Lenca de Honduras é um dos mais afetados, diante da construção de 17 barragens em seu território.
O projeto de Agua Zarca almejava que o rio passasse a ser propriedade privada para a construção da hidrelétrica, mediante a concessão por 20 anos do rio Gualcarque, rio sagrado para o povo. Não se trata apenas do valor simbólico que o rio possa ter, mas também estamos falando da privação da água que é o modo de sustento para consumo, irrigação e vida em geral. Para o povo Lenca, este rio representa o espaço onde vivem os espíritos das crianças.
Contribuíram para este projeto diferentes auxílios: o Banco Interamericano de Integração Econômica (BCIE) concedeu à empresa de capital hondurenho Desarrollos Energéticos S. A de C.V (DESA) um empréstimo de 24,4 milhões de dólares. Por sua parte, a DESA subcontratou a empresa chinesa Sinohydro, que foi acusada pelas comunidades locais de invadir suas terras sem a consulta prévia. E a Voith Hydro Holding GmbH & Co. KG, de capital alemão, foi contratada para a construção das turbinas (Web: Environmental Justice Atlas).
O povo Lenca se encontrou sob pressão, em 2011, por parte de diferentes autoridades governamentais que ingressavam no território para tentar fazer com que a comunidade aceitasse a implantação da hidrelétrica. Esta ação foi rejeitada categoricamente, com a alegação de que se estava violando a Convenção 169 da OIT, que foi assinada por Honduras em 1995. Mesmo assim, o projeto começou a ser efetivado e, em 2013, começaram as obras.
Desde o início, o povo Lenca foi proibido de utilizar suas águas, e no dia primeiro de abril do mesmo ano, começa uma mobilização, provocando o fechamento da estrada que levava ao projeto. Como represália, presenciamos os assassinatos dos líderes dos movimentos que conseguem deter este tipo de projeto. Neste caso, a organização e luta do povo conseguiu deter o projeto. A empresa Sinohydro rescinde o contrato um ano depois e se retira diante do aumento do conflito.
Sem dúvida, trata-se de um caso simbólico que serve de ponte para o conhecimento e a extrapolação das situações em outros territórios. São frequentes as tentativas de monopolização de recursos do Sul para benefícios do Norte. E em paralelo, ações que acontecem para resistir. As experiências de defesa do território estão presentes em pontos de toda a geografia global.
Se voltarmos aos anos 1970 e 1980, encontramos o movimento Chipko no Himalaia, que foi liderado por mulheres em ações pacíficas e simbólicas como abraçar árvores contra o corte expansivo e os danos das indústrias madeireiras. Ou o Green Belt no Quênia, que surge em 1977, com a professora Wangari Maathai, e é conhecido como o Movimento Cinturão Verde. Suas práticas se centram na proteção do meio ambiente e no desenvolvimento comunitário.
Estes exercícios reforçam a comunidade quando enfrentam a supressão dos direitos legítimos e coletivos das pessoas que habitam estes territórios, atacando assim a identidade social e cultural camponesa, o habitat, o ambiente e, no caso do povo Lenca, um recurso e um bem primordial como é a água. Nos últimos tempos, a água se tornou o recurso que faz com que alguns teóricos passem a alertar sobre uma “terceira guerra”, pois cada vez a água é mais escassa, consequência da maior monopolização do recurso.
Berta e em consequência sua comunidade, sofreram uma vulnerabilidade destes direitos: o direito à vida, o direito à livre determinação, o direito à identidade, o direito ao recurso água, o direito à não discriminação e, em definitivo, o direito a viver de forma digna e pacífica. Decidiu organizar seu povo e empreender uma campanha que pressionou com êxito a maior construtora de barragens do país a retirar o projeto. Foram meses de luta onde todo o povo se mobilizava para proteger o rio, assentando-se no mesmo espaço do rio e enfrentando uma maquinaria. Sucessivas mobilizações pacíficas e ações diretas geraram uma união de luta que não era a esperada. O poder não esperava que um povo indígena pudesse derrubar um projeto hidrelétrico em que intervinham empresas de diferentes partes do mundo, multinacionais e poderes hegemônicos.
A retórica de Berta foi uma ação essencial. O discurso e a ação de Berta Cáceres e seu povo se basearam em priorizar a defesa da vida em harmonia com a terra, os rios e as matas, entendendo que são o que dão sentido e subsistência ao povo. A luta do povo Lenca e os interesses de Berta são dirigidos à preservação do futuro da comunidade, pois não se luta apenas para melhorar o presente, mas também pelo futuro.
Berta colocou a vida no centro de seu povo. Eles a tiraram por representar o que não se identifica com o poder, pois Berta era uma mulher e não um homem. Berta era indígena e não europeia. Berta era uma líder e não um líder. Tornou-se objeto de ódio para aqueles que não viam no rio qualquer valor que não fosse o econômico. Quiseram enterrá-la, mas não sabiam que éramos sementes. Berta se multiplicou e se tornou maior.
Venceremos...
Ortiz Cortez, Adgusto. Ubicación territorial de Los Lencas [en línea]. 09 de maio de 2012. Disponível aqui.
Stavenhagen, R. Las organizaciones indígenas: Actores emergentes en América Latina. Disponível aqui.
Unesco (s.f.) Programa Hidrológico Internacional (PHI) para América Latina y el Caribe: Proyecto “Cultura del Agua”. Disponível aqui.
Martins, Alejandra. Honduras: matan a Berta Cáceres, la activista que le torció la mano al Banco Mundial y a China. BBC: Disponível aqui.
Observatorio de Multinacionales en América Latina (OMAL). Casi 300 activistas del Medio Ambiente han sido asesinados en dos años. Lamarea.com.
Organización Internacional del Trabajo. Convenio sobre pueblos indígenas y tribales, 1989 (Número 169). Disponível aqui.
Copinh (2008). Qué es Copinh: Consejo Cívico de Organizaciones Populares e Indígenas de Honduras COPINH: Disponível aqui.
Environmental Justice Atlas (s.f.) Proyecto Hidroeléctrico Agua Zarca, Honduras: Disponível aqui.
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Mulher, latina, indígena e líder. Berta, a cinco anos de sua semente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU