19 Janeiro 2021
"Mas se falei tanto sobre Nedo, sobre sermos ambos sobreviventes e sobre minha relação com ele, é porque esse livro é acima de tudo um grande ato de amor filial. O amor por um pai nem sempre fácil, habitado pelos seus fantasmas e pelos seus pesadelos – deveria dizer pelos nossos fantasmas e pelos nossos pesadelos - mas capaz de transmitir ao filho uma testemunho ou talvez um fermento que Emanuele descreve no final de sua narrativa", escreve Liliana Segre, senadora vitalícia italiana sobrevivente do Holocausto, em artigo publicado por Corriere della Sera, 18-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Il Profumo di mio padre
Quando, agora depois de trinta anos, decidi contar minha experiência como um jovem deportada para Auschwitz, muitas escolas de toda a Itália começaram a me convidar para ouvir meu testemunho. Em quase todos os lugares fui precedida por Nedo Fiano, o pai do autor, a quem, a partir do belíssimo título Il Profumo di mio padre, esse livro é dedicado (O perfume de meu pai, em tradução livre, a ser lançado amanhã por Piemme).
Nedo era alto, bonito, vigoroso, vulcânico, extrovertido: relatava com precisão os fatos, as situações, os personagens da tragédia pela qual havia passado, mas os personificava como um ator consumado, elevava a voz ou a reduzia a um sussurro, comovia-se e chorava por seu destino e pelo de toda sua família assassinada pelos nazistas. O oposto de mim, que não sei me comover e chorar em público e que nunca levanto a voz: duas testemunhas muito diferentes, talvez na mesma escola, era difícil imaginá-las. Mas para mim estava tudo bem assim, estava certo assim, porque éramos e somos dois indivíduos, não dois robôs escravos, como nossos torturadores gostariam de ter-nos transformado.
Cinco anos mais velho que eu, Nedo havia entrado no campo de concentração ainda jovem, quando eu era adolescente: ele sabia um pouco de alemão, eu nem sabia uma sílaba. Ele foi designado para o Kanada - o armazém onde as roupas, as malas e todos os bens tirados das vítimas eram separados - onde os sofrimentos, para quem trabalhava lá, eram um pouco menos terríveis e a possibilidade de sobrevivência um pouco maior, enquanto eu, escapada por puro acaso das seleções, trabalhava como operária-escrava na fábrica de munições da Union. Em suma, eram diversos não apenas os nossos temperamentos, mas também eram diferentes - e muito diferentes - as nossas experiências em Auschwitz-Birkenau.
Depois da Libertação, nossos papéis se inverteram em certo sentido: eu, mais afortunada, havia encontrado um certo conforto material para me receber e - não sem dificuldades e incompreensões - o que restava da minha família, meus avós maternos, os tios. Nedo, por outro lado, não havia encontrado ninguém. Depois do inferno, o deserto. Com a coragem de um leão, que sempre admirei e admiro até hoje, ele literalmente reconstruiu uma vida, uma família, uma educação (se formando como aluno trabalhador após os quarenta anos), uma carreira e uma posição econômica e social. Nedo, com as suas feridas incuráveis e comuns a todos nós sobreviventes, foi apesar de tudo a própria personificação do otimismo da vontade, de querer sobreviver apesar de todas as tragédias e adversidades. Seu fascínio por tudo que era moderno e pela America land of opportunity, que seu filho Emanuele descreve muito bem nesse livro, era o sinal visível de seu caráter indômito.
No livro de Emanuele Fiano – tanto dele como de seu pai me tornei amiga e admiradora de seu constante compromisso civil há muitos anos - são contados com gosto e talento de escritor muitos outros eventos familiares: a Florença de origem entre luxuosas vilas de parentes ricos e pensões mais modestas, a Milão do milagre econômico que une judeus e não judeus no progresso social e econômico em uma atmosfera de aberta solidariedade, o terno apego às tradições judaicas até mesmo por aqueles que, como Emanuele e eu mesma, não se considera crente. E, claro, há o Holocausto, descoberto de forma progressiva e dolorosa entre as coisas não ditas e frases soltas, o Holocausto incompreensível e sempre presente.
Mas se falei tanto sobre Nedo, sobre sermos ambos sobreviventes e sobre minha relação com ele, é porque esse livro é acima de tudo um grande ato de amor filial. O amor por um pai nem sempre fácil, habitado pelos seus fantasmas e pelos seus pesadelos – deveria dizer pelos nossos fantasmas e pelos nossos pesadelos - mas capaz de transmitir ao filho uma testemunho ou talvez um fermento que Emanuele assim descreve no final de sua narrativa: "’Nunca me abandone’, parece me dizer a voz interior ‘não permita-se esquecer de mim, esquecer seu pai e aquelas ruínas fumegantes que atravessou [...] nunca abandone a vontade de entrar nos meandros mais crus da alma humana, até onde toda moral foi perdida, saiba que é filho da força sobre-humana de quem não se deu por vencido, de quem continuou a ter esperança’”.
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Nedo, a força para recomeçar. Artigo de Liliana Segre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU