06 Janeiro 2021
"Nove meses após a chegada da pandemia de SARS-CoV-2, várias vacinas já estão em processo de aprovação e algumas estão sendo aplicadas em certos países. A América Latina terá acesso oportuno a elas?".
A reportagem é publicada por Open Democracy, 24-12-2020.
A vacina contra a Covid-19 sendo desenvolvida pela Oxford-AstraZeneca já demonstrou eficácia em pacientes no Reino Unido e no Brasil. A da farmacêutica Pfizer, por sua vez, é a mais avançada de todas, já tendo obtido a autorização da Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos. O Reino Unido já está vacinando sua população.
Para os países da América Central, a questão é: haverá uma distribuição justa e segura da vacina?
A resposta varia de país para país, mas há dois elementos importantes: primeiro, como cada governo administra a aquisição da vacina e, segundo, se os sistemas de saúde estão preparados para garantir a distribuição universal da vacina e levá-la a lugares remotos. Neste caso, a cadeia de frio e a necessidade de duas dozes determinarão o avanço ou recuo da pandemia no continente.
Embora o desenvolvimento bem-sucedido de vacinas seja, sem dúvida, uma boa notícia, a situação deve ser avaliada por região para entender se sua chegada permitirá que a população em geral saia da crise de Covid-19 ou se, ao contrário, sua chegada aprofundará ainda mais os problemas de desigualdade em cada país.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) anunciou recentemente que os dez países mais vulneráveis da região terão acesso gratuito à vacina.
“Na nossa região, 27 países vão pagar pelas vacinas e dez países vão receber a vacina sem custo porque, segundo os critérios econômicos, os países mais pobres ou com menor população têm maior dificuldade de acesso. Esses são os critérios do Banco Mundial sendo usados pela GAVI Alliance, que lidera a iniciativa Covax ”, explicou Jarbas Barbosa, vice-diretor da OPAS.
A Covax busca ter 2 bilhões de vacinas para imunizar 20% da população em todos os países. Existem também outros doadores, como a Espanha e a União Europeia, e outros países já fizeram pagamentos adiantados para obter doses das vacinas assim que forem aprovadas e estiverem disponíveis. Existem dois acordos sobre isso: pagando US$1,6 por dose, as vacinas podem ser reservadas, mas sem a opção de escolher a vacina; pagando US$ 3,10 a dose, garante-se a escolha. Em seguida, vêm os países, como os da América Latina, de média ou baixa renda, que receberão as vacinas a preço subsidiado. Até agora, a Covax não arrecadou dinheiro suficiente para cobrir a concessão planejada.
Os países que se beneficiarão das vacinas gratuitas são: Bolívia, Dominica, El Salvador, Grenada, Guiana, Haiti, Honduras, Nicarágua, Santa Lúcia e São Vicente e Granadinas.
Com exceção da Bolívia e Guiana, os países da América do Sul não estarão cobertos – uma região que tem países com alguns dos maiores índices de casos, como o Brasil (3º), a Argentina (10º), a Colômbia (11º) e o México (13º).
Para Carolina Nanclares, da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), “há necessidade de transparência por parte das indústrias farmacêuticas em vários aspectos: primeiro, os estudos precisam ser divulgados para que sejam avaliadas por plataformas científicas independentes. Em segundo lugar, há uma falta de clareza sobre os custos de fabricação das vacinas; muitas foram desenvolvidos com financiamento público, de governos específicos, o que permitiria exigir que divulgassem esses custos para que o público pudesse determinar se o custo de cada vacina é justo ou não”.
Assim, a transparência com que são administradas as relações entre governos e empresas farmacêuticas também definirá como serão administrados os custos da vacina. Algo semelhante aconteceu com os preços do Remdesivir, medicamento que se mostrou eficaz no tratamento da Covid-10 apenas em alguns casos. Quando se anunciou que os resultados iniciais eram animadores e que a maior parte da produção já estava vendida, a União Europeia apressou-se em comprá-lo. Três semanas depois, descobriu-se que o impacto positivo era mínimo.
Nanclares afirma que "a MSF destaca que esse momento de pandemia e crise não é o certo para fazer negócios. Acreditamos que as vacinas devem ser um bem público”.
Seguindo essa linha, a Índia e África do Sul – com apoio de cerca de 100 países – propuseram uma isenção aos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas contra a Covid-19, proposta que foi debatida pelo Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 17 de dezembro. Surpreendentemente, países altamente afetados pelo vírus, como o Brasil, se opuseram à iniciativa, o que mostra que a ideologia política vence o bem comum.
Também foram criados mecanismos como o Covid-19 Technology Access Pool (C-TAP), lançado pela Costa Rica e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), uma plataforma que recompila direitos de propriedade intelectual, dados e o conhecimento por trás de suas inovações por meio de licenciamento aberto e não exclusivo.
Essas iniciativas, no entanto, não serão suficientes se os governos não tiverem um planejamento eficiente de vacinação.
Para Nanclares, é fundamental descentralizar as vacinas. Se for tratada como em outras epidemias, os países mais ricos ficarão com os primeiros lotes e os países com recursos limitados e com populações remotas e vulneráveis serão os últimos a ter seus habitantes imunizados contra o vírus. Além disso, haverá cidadãos que poderão ter acesso às vacinas de maneira particular, pagando um preço inacessível para a maioria, fato que só aprofunda a desigualdade e a cegueira diante do privilégio de ter uma renda garantida e acesso à saúde de qualidade nos países da América Latina e do Caribe.
Portanto, é fundamental que não só a disponibilidade da vacina seja garantida (como na Colômbia, onde o presidente anunciou no dia 10 de dezembro que a vacina será gratuita para todos os colombianos), mas também consolidar a logística de distribuição. Sem a imunização da grande maioria da população, incluindo os mais pobres, refugiados, imigrantes e aqueles que vivem em regiões remotas, a pandemia não será controlada.
O plano de distribuição em países em conflito ou com áreas geográficas complexas deve ser feito de forma meticulosa. Quanto mais distante estiver o receptor, mais difícil se torna garantir a cadeia de frio necessária para a entrega da vacina. Uma vacina normal precisa estar entre 2 e 8ºC durante todo o percurso, o que já é um desafio. Mas uma vacina como a Pfizer precisa permanecer abaixo de -80ºC, algo que apenas alguns países podem garantir. Se a vacina chegar a descongelar, ela vira um líquido inofensivo. Assim, os governos latino-americanos enfrentam um enorme desafio, já que a maioria não tem sido capaz de garantir serviços universais e de qualidade, como saúde e educação, em lugares distantes e desconectados em seus países.
A vacina vai chegar muito em breve. A questão é onde, como, para quem e a que preço.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ética, acesso e distribuição: o desafio das vacinas contra a Covid-19 na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU