09 Dezembro 2020
"Como observa a curadora, é precisamente 'meditando sobre as últimas palavras de Cristo agonizante que Gide encontra nelas a demonstração da divindade do próprio Cristo'. De fato, ele descobre ali a perfeita intersecção dialética entre 'o ser humano que fala" e a renúncia à humanidade na morte para fazer prevalecer Deus: 'aqui ele se torna verdadeiramente Deus' (15 de fevereiro de 1916)", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 06-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Buscar Deus. O escritor, movido pelas escolhas espirituais de amigos e interlocutores, tinha os olhos abertos para o divino, mas também para o abismo. Ele dedicou páginas cheias de citações ao tema. Certo dia Ermanno Olmi me perguntou sobre sujeitos religiosos que, a meu ver, fossem os mais "cenográficos": para mim era fácil referir-me àquele rutilante arco-íris de cenas que sustentam o enredo das Sagradas Escrituras, verdadeiro léxico simbólico da arte ocidental. Ele, no entanto, preferiu me opor o íngreme rochedo de Paulo que opunha uma cortina implacável de reflexões abstratas, tanto que foi envolvido no areópago dos filósofos não apenas de Atenas (Atos dos Apóstolos 17,16-34), mas também da própria modernidade.
De fato, Maritain pinçava de seu epistolário o tema do humanismo cristão, Heidegger reconhecia ali as sementes existenciais, Taubes a teologia política, Badiou extraia a ideia da universalidade, Marion a dialética entre fé e razão e até mesmo o nosso Vattimo a havia envolvido em seu pensamento fraco através da doutrina da kénosis, ou seja, o "esvaziamento" da divindade de Cristo na encarnação.
Além disso, Espinosa estava convencido de que "nemo Apostolorum magis philosophatus est quam Paulus" (e o latim um tanto macarrônico dispensa a tradução). No entanto, eu objetava ao amigo diretor, sua fulgurante conversão, narrada três vezes nos Atos dos Apóstolos, sempre foi um topos iconográfico extraordinário (Michelangelo ensina, com seu afresco na Capela Paulina do Vaticano). O discurso desviou-se assim para um tema que cativou primeiro os espírito e depois as penas de muitos, justamente aquele da "conversão" que tem o seu emblema no "caminho de Damasco" paulino: basta pensar em Strindberg com o seu drama Estrada para Damasco que, no entanto, não leva à cidade do renascimento, mas a um onírico labirinto espiralado sem uma terra firme na fulguração final.
Uma história de conversões - dizia a Olmi - seria um assunto que ganharia uma enciclopédia de exemplos literários e artísticos. Na verdade, todos podem acrescentar um exemplo a partir de qualquer encruzilhada da antiguidade, talvez com o lamento dantesco: "Constantino! Ah! que males derivaram, Não do batismo teu, mas da riqueza Que deste a um Papa e a quem outras se juntaram" (Inferno XIX, 115-117). E como não anexar as Confissões de Agostinho, autobiografia de uma conversão, mas também muito mais, com incessantes divagações na teologia, na filosofia, na exegese, na apologética, na invocação?
Nós agora, porém, vamos estreitar o horizonte, para chegar ao texto que gostaríamos de apresentar, focando na França, onde pode vir ao nosso encontro Paul Claudel que entra em Notre-Dame agnóstico e cético: envolto pela harmonia suprema do Gregoriano, sai da catedral crente e discípulo. A ênfase francesa já resplandecia de forma lapidar também no episódio de Chateaubriand que em seu Gênio do Cristianismo se entregava a apenas dois verbos declamados: J'ai pleuré et j'ai cru, lágrimas e fé se entrelaçam regenerando René em um lavacro batismal.
Chegamos, entretanto, a uma testemunha inesperada diante da qual fazemos uma pausa. A sua foi inicialmente uma "perversão", livrando-se do puritanismo da família huguenote que havia paralisado sua alma com seu rigorismo decalógico, como ele próprio confessara, a ponto de intitular um de seus principais romances O Imoralista, em cujo protagonista, o jovem cientista Michel, ele se espelhava. Todos entenderam que estamos falando de André Gide, um monumento da literatura francesa do século XX, Nobel em 1947. Se o romance citado é de 1902 quando ele tinha trinta e três anos, algo muito diferente se encontra vinte anos depois, em 1922 com o "caderno verde" de fragmentos intitulado Numquid et tu?, que é a história de uma conversão mal e mal tocada e logo esmorecida. Havia sido estimulada por uma coroa de escolhas espirituais feitas por amigos e interlocutores.
Pensamos, por exemplo, no dramaturgo Henri Ghéon que abraçou a fé sob as granadas durante as batalhas da Primeira Guerra Mundial, tanto que compôs então uma espécie de representação sagrada, O pobre no subsolo (1920). Análoga teria sido a experiência do crítico Jacques Rivière, em seu texto Nas pegadas de Deus (1925), ou a anterior do escritor Ernest Psichari descrita em sua Viagem do Centurião (1916), ou a posterior do romancista e italianista Dominique Fernandez. Porém, para Gide, o fator decisivo será sobretudo seu amigo Charles Du Bos, crítico e ensaísta, que o pressionará à publicação justamente do "caderno verde", assim como será relevante a correspondência com outro convertido, o citado Paul Claudel, e com o adamantino apologista da fé cristã François Mauriac. Numquid et tu? é o pico mais alto ''de ascensão de Gide aos céus do divino. Na realidade, a leitura dessas páginas, precisamente por causa de sua fragmentação, regista as oscilações do seu percurso de conversão e sobretudo a matriz que o sustenta.
Para recompor o mapa desse itinerário fluido, é preciosa a introdução (que é um verdadeiro ensaio publicado já em 1949) de Elvira Cassa Salvi. É ela, por exemplo, quem nos sugere que na verdade o olhar do escritor nem sempre está dirigido para o céu cristalino do divino: “Seus olhos se arregalaram conscientes sobre o abismo e, mesmo nas garras do terror, ele não pode se desvencilhar do fascínio irresistível que o atrai a ele”. Ele, da mesma forma que Paulo no c. 7 da Epístola aos Romanos, se sente puxado a ponto de se esfacelar entre o amor de Deus e o fascínio de Satanás. É significativa a sua invocação a Deus datada de 16 de junho de 1916: “Ah! Não deixe que o Maligno ocupe o vosso lugar no meu coração! Não vos deixeis destronar, Senhor! Se vos retirardes completamente, ele assume o lugar”. E ainda: “Meu Deus, vou até vós com todas as minhas chagas, que se tornaram feridas; com todos os meus pecados sob o peso dos quais minha alma está esmagada" (29 de outubro de 1916).
No dia do mistério do mal, atestado em todas as suas cores tenebrosas, entretanto associa-se - como foi dito - o zênite celestial que tem sua epifania suprema em Cristo. Essas são as páginas mais ardentes, a começar pelas dedicadas às palavras do Evangelho, que muitas vezes encaixam o próprio ditado do diário com citações iluminadoras. A esse respeito, a sua profissão de fé, colocada na abertura do caderno, é paradoxal: “Senhor, não porque tenham me dito que sois filho de Deus, ouço a vossa palavra; mas a vossa palavra é bela acima de qualquer palavra humana, e por isso reconheço que vós sois filho de Deus”.
André Gide, Numquid et tu?,
Org. Elvira Cassa Salvi, com texto francês e italiano,
La Vita Felice, Milano, pag. 156.
E logo a seguir continuava com uma anotação em estilo puramente evangélico e até paulino: “O Evangelho é um pequeno livro muito simples, que deve ser lido com toda a simplicidade. Não é uma questão de o explicar, mas de o admitir. Não precisa de comentários e todo esforço humano para esclarecê-lo, o escurece. Não é dirigido aos sábios; a ciência impede de compreender qualquer coisa nele. O acesso é conseguido com a pobreza de espírito”. Existem muitas outras notas sobre Cristo, que nem mesmo evitam o "escândalo" dos milagres e não excluem o desfecho final do Gólgota. Aliás, como observa a curadora, é precisamente “meditando sobre as últimas palavras de Cristo agonizante que Gide encontra nelas a demonstração da divindade do próprio Cristo”.
De fato, ele descobre ali a perfeita intersecção dialética entre “o ser humano que fala” e a renúncia à humanidade na morte para fazer prevalecer Deus: “aqui ele se torna verdadeiramente Deus” (15 de fevereiro de 1916). Tantas são as solicitações que despertam as linhas de Numquid et tu? e que são explicitados e explorados pela exegese de Elvira Cassa Salvi e que se destinam a surpreender os leitores de muitas outras páginas gidianas bem diferentes. No apêndice, uma menção merece o título latino, também evangélico, segundo a versão latina da Vulgata e que, precisamente com o seu questionamento, expressa a garra espiritual que dilacerou o coração e a mente do escritor.
Em um parágrafo do Evangelho de João (7,40-53), essa pergunta ressoa por duas vezes com uma pitada de sarcasmo. Em primeiro lugar, são os fariseus que, contra os guardas incapazes de prender Jesus por causa de sua palavra extraordinária, atiçam: Numquid et vos seducti estis?, "Talvez vós também fostes enganados?" (7,47). E quando é um importante membro do sinédrio como Nicodemos que se opõe em defesa de Jesus, eles replicam obstinadamente: Numquid et tu Galilaeus es?, "És tu também da Galileia?" (7,52). Aqui está a evidente fonte do título do "caderno verde".
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A conversão mal e mal tocada e logo esmorecida de André Gide. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU