09 Dezembro 2020
“Que os deuses amaldiçoem o primeiro homem que descobriu como marcar as horas e amaldiçoem também aquele que neste lugar ergueu um relógio de sol para cortar e despedaçar de modo tão infame meus dias em pequenos pedaços”. Estas palavras do comediante latino Plauto são coletadas pelo bioquímico Carlos López-Otín para ilustrar que nem todos os seres humanos aceitaram bem nossa capacidade de medir o tempo.
A entrevista é de Pura C. Roy, publicada por El Asombrario-Público, 08-12-2020. A tradução é do Cepat.
Em seu novo livro, “El sueño del tiempo”, publicado pela editora Paidós, López-Otín nos fala de relógios, de envelhecimento e de imortalidade. Explora estes conceitos mostrando a história do tempo e as últimas descobertas científicas. Também nos fala dos processos biológicos e de sua função na inexorável passagem do tempo para modular o envelhecimento e questiona alguns de nossos sonhos de imortalidade.
O mais importante para este cientista é abordar as doenças associadas à perda da noção de temporalidade e descrever as possibilidades que a ciência oferece para atenuar os efeitos do avanço do tempo. “A melhor forma de enfrentar estes desafios biológicos, assim como os bélicos, os ecológicos, os climáticos, os geológicos e até os cósmicos, é favorecer o desenvolvimento cultural da sociedade para evitar manipulações, inações e desinformações, e fomentar a geração de opiniões baseadas no conhecimento social e científico”. E afirma: “As viagens no tempo acontecem ao abrir um livro que você gosta ou ao ler um poema. Não precisamos dessas máquinas que aparecem nos livros de ficção científica”.
Em seu livro, não há apenas ciência, também música, livros e pintura. Escreveu em colaboração com o biólogo celular Guido Kroemer.
O tempo foi analisado a partir de pontos filosóficos, mas também biológicos. O que é para você este sonho do tempo ou seu fluxo?
O tempo do mundo, o cósmico, é o tempo da física interpretada pela filosofia. Ambas têm em comum dizer que o tempo é uma construção mental, e depois existe o tempo biológico, que é o que habita em nós e que podem nos dizer que não existe, mas nós percebemos que flui, que passa, que voa e que sempre avança.
O tempo se conquista ou só podemos medi-lo, como disse o físico Richard Feynman.
Inicialmente, a conquista do tempo foi medi-lo e significou um grande desafio. Precisamos de 500 anos ou mais para poder ganhar precisão e pontualidade. No início, era desnecessário ser muito precisos e os relógios que são descritos foram os do sol, ou melhor, da sombra, de água, do fogo, das flores, da areia, mas não existiam os minutos, nem os segundos.
A medida do tempo trouxe conceitos como ordem, pontualidade, precisão, e foram criados relógios mecânicos e os segundos foram medidos, assim passamos do império dos sentidos ao império dos segundos. Depois, foram criados os relógios atômicos e passamos a uma precisão absoluta, mas tivemos que pagar um preço, o de ser escravos do tempo. Em vez de conquistá-lo, fomos conquistados por ele.
A física e a biologia refletem sobre se é possível inverter a flecha do tempo. Se fosse assim, hipoteticamente, ao poder retroceder, poderíamos controlar o estado da matéria e em biologia controlar a longevidade e envelhecimento, por conseguinte, a imortalidade.
A velhice é fragilidade?
Na velhice, somos frágeis, mas é porque esgotamos nossa capacidade de vida. Antes se vivia em média 30 ou 40 anos, agora, estamos na média dos 80. Mas em vez de nos entreter em sonhos de imortalidade ou inverter o fluxo do tempo, devemos viver melhor o tempo de vida, desfrutá-lo, ganhá-lo, perdê-lo e sonhá-lo.
Sendo assim, na atualidade, quais seriam as patologias do tempo?
Muitas. As mais diretas são aquelas que afetam os genes e proteínas e, portanto, nossos relógios biológicos. Eu sempre digo que nós somos um relógio pensante e andante. Todos os seres vivos têm relógio, mesmo que não tenham cérebro, nem pulso para colocá-lo, e destes relógios aprendemos que nós temos um no cérebro chamado núcleo supraquiasmático, o fundamental, que tudo coordena.
Depois, temos outro relógio no cérebro, que é o da glândula pineal, onde antes se pensava que estava a alma e que hoje sabemos que é onde se sintetiza a melatonina que é o hormônio da obscuridade, sendo a que nos convida para dormir. E estes relógios são circadianos, marcam os ritmos e os ciclos diários.
Além destes, temos relógios periféricos construídos por genes e proteínas nos tecidos. Também temos relógios que nos permitem conhecer o número de vezes que uma célula se dividiu. Assim como o relógio epigenético, com o qual podemos prever a idade cronológica de um indivíduo com uma margem de erro de três anos. Este marcador pode ser de grande importância para certas doenças associadas ao tempo.
A vida é uma conversa entre todos estes relógios. Em cada um deles pode haver defeitos, pode haver danos moleculares que perturbam, entre outras coisas, os ritmos do sono, mas também ocasionam problemas emocionais, depressivos e até o aumento da suscetibilidade ao câncer.
Os danos relacionados a estes relógios podem nos levar a não conceber corretamente o tempo, como nas doenças neurovegetativas. Perdemos a memória do passado e já não viajamos ao futuro e, pouco a pouco, viajamos ao nada, onde o tempo já não existe. São as pessoas com Alzheimer. O câncer é outra doença do tempo. Estas não nos tornam viajantes, mas náufragos. São tantos os relógios que nos habitam que é assombroso que trabalhem em uníssono.
O envelhecimento tem recebido o interesse que merece, visto que é inerente à nossa espécie?
Durante muito tempo se acreditou que o estudo do envelhecimento era uma coisa muito pouco científica e havia muita pseudociência. Mesmo hoje, são vendidas coisas que curam todas as doenças, estamos cheios de poções milagrosas que são vendidas pela internet a preços exorbitantes, sem valor científico, nem médico. Mas há não muito tempo, surgiram alguns acontecimentos no terreno da medicina e da biologia que nos levam a repensar o tempo e o envelhecimento.
Um deles é saber que há organismos imortais, algumas medusas, que não envelhecem. Elas conseguem deter o fluxo do tempo. O outro, as descobertas de Shinya Yamanaka, Nobel de Medicina de 2012, sobre reprogramação celular. Com esta, em algumas células é possível retroceder no tempo e voltá-las a um estado embrionário. Poderiam ser utilizadas em neurônios. Isto abre passagem à regeneração dos tecidos, mas não à imortalidade, que não é tão fácil.
Poderemos retardar os relógios biológicos com remédios antienvelhecimento?
O envelhecimento não é tratado, porque não é uma doença, só podemos aspirar a uma longevidade o mais saudável possível. Nestes anos, descobriu-se que os processos do envelhecimento poderiam ser modulados com métodos como a autofagia – processo que permite eliminar elementos perigosos –, que proporciona um melhor rendimento das células e aumenta a reciclagem bioquímica. Há ferramentas que podem induzir estes processos. Provou-se in vitro e em animais, mas não há estudos suficientes em humanos.
O livro define vários elementos para um melhor envelhecimento. São os verdadeiros elixires: fugir da obesidade, eliminar a desnutrição, usar produtos mais naturais e frescos, fugindo dos ultraprocessados, evitar os açúcares adicionados, viver em maior harmonia com o ambiente, melhorar nossa microbiota ou sistema imune, exercício e, sobretudo, não perder de vista nossos ciclos circadianos.
Junto com isto é possível conceber novas moléculas para proteger os genomas, os telômeros, os epigenomas e as células progenitoras das mudanças relacionadas ao envelhecimento, ou para modificar a microbiota intestinal e a acomodar à que contém bactérias com propriedades pró-longevidade.
A vida é uma conversa com nossos relógios bem ajustados. Se esta coordenação se perde, seja por uma excessiva quantidade de viagens interoceânicas que os confunde, seja pelo estresse ou a poluição, se envelhece pior. É preciso aplicar bem estas normas que, como se sabe, não são feitas. Parece-me milagroso que nesta época vivamos tanto. A vida só faz sentido com a invenção da morte celular.
Continuamos fomentando sonhos de dominar o tempo?
A entropia rege o tempo do cosmos e da vida. Chega um momento em que não podemos controlar o aumento de entropia e envelhecemos. O envelhecimento é inexorável, conforme somos até agora. A entropia é a força natural da desordem e, portanto, do envelhecimento.
Podemos assistir ao filme Tenet e acreditar que uma máquina que reduz a entropia e permite viajar para o passado ou para o futuro irá solucionar o problema. Para mim, está possibilidade parece muito distante. Além disso, o filme, ainda que interessante, é mais de ação do que de ficção científica.
A mitologia grega criou três divindades para representar três tipos de tempo. Kronos, o tempo linear, o cronológico. Ninguém é mais jovem que o dia anterior e, ainda que possamos dissimular, as rugas internas não são corrigidas tão facilmente. O que devemos fazer? Admitir, aceitar, enquanto tivermos um suporte biológico e não formos máquinas. Mas há outros dois, Aión, que é o tempo cíclico, somos parte de um elo, estamos entre os nossos pais e nossos filhos, é preciso desfrutar, e o Kairós, que é o tempo da oportunidade e é este que nos obriga, todos os dias, a estarmos atentos ao que nos acontece.
Somos um relâmpago entre duas grandes obscuridades, esse raio de luz é o que precisamos aproveitar. Você será reconfortado pelo Kairós ao se tornar consciente do momento. A depressão e a tristeza são outras das doenças do tempo.
Oferece listas de livros, quadros e música que lhe interessam pelo tema do tempo ou o sonho do tempo.
Os quadros são inspiradores. Falo de Espirais, de Hundertwasser, porque é como um reflexo do começo do tempo cósmico. Os Relógios derretidos de [Salvador] Dalí nos falam da dilatação do tempo. O sol de Picasso, porque o sol nos dá a vida, aumenta a nossa adrenalina, aumenta a serotonina. Um monge japonês, Sengai Gibon, no século XIX, pintou “O universo” com um círculo, um triângulo e um quadrado, e assim plasmou a simplicidade do começo do tempo.
Relacionados à Física, há dois livros que poderia recomendar, um sobre Einstein, de José Manuel Sánchez Ron, e “A ordem do tempo”, de Carlo Rovelli, que nos permitem explorar o tempo cósmico. Para falar do tempo biológico, recomendo a mim mesmo, ainda que fique mal. “El sueño del tempo” pertence a uma trilogia. O primeiro se chamava “La vida en cuatro letras”, livro que explica de uma maneira simples quais são as chaves da vida.
Mas para saber também do tempo é preciso ir à poesia e à literatura. “Cem anos de solidão” explica muito bem o tempo cíclico. As viagens no tempo acontecem ao abrir um livro que você gosta ou ao ler um poema. Não precisamos dessas máquinas que aparecem nos livros de ficção científica.
Eu disponho de minha particular banda sonora, dou a lista ao final do livro, mas citarei canções como “Across the Universe”, de The Beatles, ou a Música das esferas, de Mike Oldfield.
Haverá, então, um terceiro livro?
Sim, mas eu também tenho meus ciclos. Isso, sim, posso dizer que estará centrado na vulnerabilidade.
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“Passamos do império dos sentidos ao império dos segundos”. Entrevista com Carlos López-Otín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU