16 Novembro 2020
Primeiro a água. Depois o ar. Agora os corpos. Não há lugar físico ou espiritual que tenha permanecido ileso do contato com o mundo “externo”. E não admira que os povos da Amazônia equatoriana olhem com raiva e desespero para esta última invasão que põe em risco a sua sobrevivência: o coronavírus.
A reportagem é de Emiliano Guanella, publicada por La Repubblica, 14-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Fomos os primeiros a registrar um contágio”, conta Justino Piaguaje, presidente da nação indígena dos Siekopai, uma população dividida entre o Equador e o Peru. A comunidade equatoriana conta com 700 pessoas que vivem principalmente na província de Sucumbíos, no norte do país.
“Não tínhamos nem informações nem testes para saber se algum doente tinha Covid-19. Então, para tratar alguns sintomas, usamos plantas da floresta. No fim, conseguimos receber alguns kits para fazer os testes graças aos voluntários, mas, enquanto isso, perdemos quatro idosos.”
A resposta do governo, que se encontrou gerindo uma emergência sem precedentes, demorou a chegar e se mostrou inadequada. Vítima de ferozes cortes tanto em 2018 quanto em 2019, o sistema de saúde equatoriano mostrou toda a sua fragilidade e não soube combater uma das mais altas taxas de contágio do mundo.
“Vimos – testemunha William Lucizzante, representante do povo Cofan (uma etnia de cerca de 1.300 pessoas dividida entre o Equador e a Colômbia) – que quem ia ao hospital muitas vezes não voltava, e por isso preferimos não ir. Fomos abandonados, isolados, e agora não confiamos nas instituições.”
O governo não conseguiu preencher a distância entre a cidade e a floresta. Inicialmente, algumas províncias amazônicas foram completamente ignoradas pelos mapeamentos oficiais dos casos. Uma contagem, elaborada depois (com todos os limites de uma coleta de dados com base voluntária) pela Conaie, a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, revelou, então, uma presença massiva de casos: no dia 14 de outubro, eram cerca de 3.130 positivos e de 103 mortos.
Há quem veja essa exclusão como uma tentativa de salvaguardar as atividades mineradoras concentradas precisamente nos territórios das comunidades indígenas amazônicas. “Quando foi declarado o estado de emergência no Equador, a indústria petrolífera não parou – sublinha Lucitato –, e, apesar dos casos presentes na província de Sucumbíos, o governo fez de conta que nada estava acontecendo, porque temia que, se as pessoas soubessem, parariam de trabalhar.”
Mas, com a continuidade da extração, continuou também o fluxo de trabalhadores que chegavam de outras províncias para a floresta, aumentando assim a possibilidade de levar consigo o vírus.
A batalha entre os povos da Amazônia equatoriana e a indústria petrolífera se arrasta há décadas e, desde os anos 1990, traduziu-se em um dos processos ambientais mais importantes e complexos da história mundial. Os indígenas das províncias de Sucumbíos e Orellanna acusaram a multinacional petrolífera estadunidense Chevron-Texaco de ter envenenado as águas de rios e os aquíferos com vazamentos contínuos de petróleo e, portanto, ela seria a responsável pelo desastre ecológico conhecido como “Chernobyl da Amazônia”.
Hoje, a situação não mudou, apesar de as fábricas terem sido adquiridas pela companhia nacional Petroecuador. Só na Amazônia equatoriana, estão presentes dezenas de macheros, torres que queimam o gás natural extraído junto com o petróleo. Além do gas flaring, o ecossistema também é ameaçado pelas infraestruturas obsoletas.
“No dia 7 de abril, o rompimento de um oleoduto causou o vazamento de cerca de quase 60 mil litros de petróleo que foram derramados no rio Coca: águas necessárias para a subsistência de algumas comunidades indígenas em isolamento”, denuncia Valentina Vipera, coordenadora dos projetos Focsiv no Equador.
O extrativismo, a agricultura intensiva e a pobreza põem em risco a sobrevivência dessas populações indígenas. Mas o coronavírus representa uma ameaça ainda mais radical, porque ataca os fundamentos das comunidades: a memória.
“Os nossos conhecimentos não estão escritos – continua Lucizzante –, estão conservados na memória dos idosos. Então, quando eles morrem, perdemos uma parte desse saber. Como membro do povo Cofan, temo que esta pandemia possa nos apagar para sempre.”
“Eles nos chamam de países do terceiro mundo – conclui o presidente dos Siekopai, Justino Piaguaje –, mas somos nós que pagamos as consequências das ações irresponsáveis dos países ricos. Para nós, a Amazônia é uma casa comum, uma grande árvore que dá vida, que dá conhecimento. É um mistério que protege a nossa população, mas nós estamos lutando para salvar a Amazônia de todos, para que o mundo continuar respirando.”
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“A Amazônia é o fôlego do mundo: não lutamos apenas pela nossa sobrevivência” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU