12 Novembro 2020
Para a pesquisadora Flávia Falcão, língua e alfabetização são alguns dos entraves para uma maior participação indígena.
A entrevista é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 10-11-2020.
“Não se pode dissociar o exercício dos direitos políticos pelos povos indígenas brasileiros da fruição dos demais direitos fundamentais (…) Destaca-se que a importância de se ampliarem as ações de direito ao voto, de conscientização do indígena para a sua relevância social e de engajamento de novas lideranças indígenas nas disputas eleitorais, para que o Estado e a sociedade brasileira tratem o indígena com a igualdade que sempre lhe foi devida”, aponta a mestra em direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, Flávia Miranda Falcão, em sua dissertação sobre o exercício dos direitos políticos pelos povos indígenas no Brasil.
Pesquisadora em multiculturalismo e interculturalismo e servidora do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS), Flávia conversou com o Brasil de Fato RS sobre a participação indígena nas eleições municipais de 2020.
Assim como outros grupos sociais, a participação indígena nas eleições deu um salto em 2020. Em todo o país são 2.215 candidatos autodeclarados indígenas, um aumento de 88,51%, em relação às eleições de 2016, que tiveram 1.175 candidaturas. No Rio Grande do Sul são 125 candidaturas, duas a prefeito, três a vice e 120 à vereança, ou seja, 0,38% das candidaturas totais. Dos 497 municípios, 39 contam com indígenas concorrendo.
As candidaturas de mulheres indígenas para prefeituras e câmaras de vereadores também deu um salto de 49% em relação a 2016. Contudo, ainda assim elas seguem representando apenas 32% do total de candidatos indígenas, como aponta o levantamento do Elas no Congresso, plataforma d’AzMina de monitoramento legislativo dos direitos das mulheres.
O partido com maior número de candidaturas indígenas no país é o PT, com 263, seguido do MDB e do PP, com 152 cada. No Rio Grande do Sul, o partido com mais candidaturas indígenas é o PP, com 23, seguido do PT, com 22, e MDB, com 17.
Em entrevista ao site Nonada, Flávia destacou que o aumento do número de candidatos é uma excelente notícia. Demonstra o fortalecimento da articulação política dos povos indígenas e a conscientização de que ninguém, além dos próprios indígenas, pode falar, legislar e executar por eles. Nesta entrevista ao BdFRS, ela defende que a democracia só se legitima pela presença de todas as etnias e grupos sociais que constituem a sociedade brasileira no poder. “É necessário abandonar essa visão de ‘pacificação’ forçada e entender que o Brasil é multicultural e é só pela presença justa de todos os grupos que o diálogo intercultural tem chances de acontecer no Legislativo e no Executivo.”
Flávia Miranda Falcão é mestra em direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público
e servidora do TRE-RS. (Foto: Arquivo Pessoal)
Em nível nacional, temos visto nos últimos anos um incremento da participação indígena na disputa por espaços de poder. O RS, por exemplo, é o quinto estado com mais candidaturas indígenas no país, com 125 pedidos deferidos. Contudo, não chega a 1% do pleito e em relação a participação das mulheres é menor ainda, sendo 51 candidatas. Como tu avalias a participação e que fatores tem contribuído para esse aumento?
Vou responder essa pergunta em duas partes: primeiro, sobre o total de candidatos indígenas, depois sobre a proporção de mulheres indígenas candidatas.
Pode ser que 125 candidatos pareça pouco, mas esse número corresponde a 0,35% do total de candidatos registrados em todos os municípios do Rio Grande do Sul, aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador, nestas Eleições de 2020. Essa proporção é um pouco superior aos 0,3% da população autodeclarada indígena no Estado, segundo o Censo de 2010 do IBGE. Em números absolutos, significa que 32.989 pessoas, no RS, declararam-se indígenas naquele ano.
É justo se olharmos friamente para os números atuais, mas não é nada justo se buscarmos as razões de a população indígena do Rio Grande do Sul ser tão baixa atualmente.
Estima-se que a população Guarani, a mais numerosa que habitava o sul do continente americano no século XVI, chegou a um número entre 1,5 milhão e 2 milhões de habitantes. Eles espalhavam-se pelo território que hoje corresponde ao sudeste e leste do Paraguai, nordeste da Argentina, nordeste, centro, sudeste e leste do Rio Grande do Sul, oeste e leste de Santa Catarina e do Paraná e sul do Mato Grosso. Com a chegada dos espanhóis nesse trecho de terra – não vamos esquecer que estava sob a zona de influência espanhola, conforme o Tratado de Tordesilhas – houve sensível diminuição da população Guarani, tendo em vista o emprego da mão-de-obra indígena sob as regras do “repartimiento” e da “encomienda”.
O “repartimiento”, também conhecido como “mita” ou “cuatéquil”, era a modalidade utilizada para o trabalho duro, insalubre e perigoso nas minas de metais preciosos, por um período determinado, pelo qual era pago um salário baixo e, ao final, cada indígena receberia a sua parte… só que poucos sobreviviam. Posteriormente, empregou-se a “encomienda”, um instituto que criava a obrigação aos índios de prestar serviços e pagar tributos aos espanhóis em troca de educação cristã e proteção. Se os nativos não aceitassem esses termos, ocorriam guerras, mortandades e escravização, tudo sob o pretexto da “Guerra Justa”.
A partir de 1609, as Reduções Jesuíticas foram instaladas no Paraguai e, a partir de 1626, no Rio Grande do Sul, com a fundação da Redução de São Nicolau, pelo padre Roque Gonzalez. Como é notório, o Rio Grande do Sul abrigou os Sete Povos das Missões, correspondentes à Província Jesuítica do Tape, que chegou a abrigar 29 mil guaranis. Em que pese os jesuítas tenham tentado proteger os guaranis da ameaça de escravidão pura e simples que os brasileiros, vindos da capitania de São Vicente, acabavam impondo pelos sequestros e ameaças, a função da ordem era cristianizar esses guaranis e torná-los súditos da Coroa Espanhola.
A cristianização veio com a imposição de um modo de vida diferente, com noções de moral e culpa que eram desconhecidas pelos guaranis. A experiência durou até 1750, ano em que foi assinado o tratado de Madrid, pelo qual os Sete Povos passaram ao domínio português e os portugueses entregaram a Colônia do Sacramento, no atual Uruguai, à Espanha. Os guaranis e vários sacerdotes resistiram à saída, resultando na Guerra Guaranítica, travada entre os indígenas e exércitos das colônias de Portugal e Espanha.
Essa guerra durou de 1753 a 1756 e deixou um saldo de 1511 mortes entre os guaranis e quatro mortes entre os europeus. Ao final, os jesuítas em território brasileiro foram expulsos para Portugal e morreram na prisão, e os jesuítas em território da América espanhola foram exilados em países como Itália, Alemanha e outros. Milhares de guaranis migraram para o lado espanhol ou espalharam-se, ao final do conflito, temendo a escravidão sempre ameaçada pelos vicentinos.
A história dos conflitos com os kaingang, outra das principais etnias indígenas atuais no Rio Grande do Sul, tem a ver com a construção das estradas de ferro e a expansão das fazendas de café no interior de São Paulo. Estamos falando no período entre 1800 e 1930, encerrado com a quebra da bolsa de 1929 e a queda do preço do café no exterior. A interiorização do não indígena pelo país provocou conflitos, expulsões e mortes dos kaingangs que ocupavam aquelas terras.
O mesmo ocorreu nos estados da Região Sul, com a chegada de imigrantes alemães, eslavos e italianos que, inadvertidamente, foram instalados sobre terras pertencentes aos kaingangs. Houve muitos episódios de sequestros, ataques a vilas de imigrantes e, de outra parte, formação de milícias por parte dos imigrantes para exterminar os indígenas.
As notícias de insegurança dos imigrantes chegaram à Europa e governos europeus pressionaram o Império brasileiro a solucionar o problema, então foram criadas as aldeias indígenas. As principais, no Rio Grande do Sul, foram criadas entre 1848 e 1850: a aldeia de Nonohay, para abrigar os índios do cacique Nonohay; o aldeamento da Guarita, onde se concentraram os índios do cacique Fongue; e o aldeamento do Campo do Meio, para os afiliados ao cacique Braga.
Ressalte-se que todos esses caciques cooperaram com o Império brasileiro e levaram consigo quem concordou com a transferência, o que é bastante curioso para o indígena, cuja vida física e espiritual é baseada na terra em que habita. Não se pode descartar a possibilidade de pressões sobre esses caciques ou de aliciamento, prática adotada com frequência pelo Estado brasileiro ao longo da história, que deslegitimava a autoridade do cacique perante o seu grupo e causava desagregação. Após esse período, houve a criação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, com a clara intenção de integrar o indígena à sociedade nacional capacitando-o para o trabalho.
Em 1963, com a instauração da CPI do Congresso Nacional que culminou no Relatório Figueiredo, foi compilado um documento com denúncias de tratamento análogo à escravidão, genocídio, insegurança alimentar, dentre outros abusos perpetrados pelos funcionários do serviço contra os indígenas. O SPI foi extinto e, em 1967, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A FUNAI seguia os parâmetros do Estatuto do Índio, que previa as três categorias de indígenas – integrados, em vias de integração e isolados – em clara demonstração de seguimento da política de assimilação forçada do índio.
Mas em 1982 foi eleito o Cacique Xavante Mário Juruna como deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro, mesmo partido pelo qual elegeram-se o governador e o vice-governador do RJ Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, ex-servidor do Serviço de Proteção ao Índio e grande estudioso dos povos indígenas brasileiros. Encontraram-se, a liderança indígena com potencial para a política não indígena e o etnólogo político. E deu certo, pois a eleição de Juruna trouxe à tona a questão indígena, propiciou a atuação de grupos de defesa dos interesses indígenas na Constituinte de 1987-1988 e a inclusão dos artigos 231 e 232 na Constituição Federal de 1988.
Assim inaugurou-se um novo paradigma jurídico, que deve pautar as relações entre o Estado brasileiro e o indígena: o da preservação da cultura, modo de vida, terras, línguas e costumes indígenas. Sabe-se que muitos desses direitos não foram concretizados, mas a previsão de direitos multiculturais na Constituição Federal Brasileira de 1988 foi pioneira na América do Sul e influenciou na criação de Estados pluriculturais, que oficializaram idiomas indígenas, por exemplo, e Estados plurinacionais, que reconheceram povos indígenas como nações originárias ou nacionalidades com autodeterminação.
A proporção de mulheres pode ser reflexo da integração que esses indígenas sofreram, pois o indígena candidato em 2020 certamente adotou valores e costumes da sociedade envolvente. É certo que, se o brasileiro de hoje não é o mesmo português do século XVI, o indígena de hoje – exceto o que vive isolado, cujos costumes não são conhecidos – não é o mesmo guarani do século XVI.
Além disso, a historiadora Thais Colaço narra que a mulher guarani, originalmente, tinha plena liberdade sexual até o casamento. A partir do casamento, devia fidelidade matrimonial ao marido, mas não havia essa obrigação por parte do marido. Então, para os guaranis, só havia adultério feminino, em demonstração de que já havia um tratamento distinto entre homens e mulheres mesmo antes da influência colonial. A autora descreve esse ponto no livro “Incapacidade Indígena: tutela religiosa e violação do direito guarani nas missões jesuíticas”, na página 53.
Dessa forma, fica difícil identificar uma só razão para que as mulheres indígenas sejam candidatas em número menor, mas é provável que seja um conjunto de fatores.
Qual a importância das candidaturas indígenas e que significado elas têm para o aspecto da democracia?
As candidaturas indígenas são fundamentais! Se parte da população brasileira é indígena, os indígenas devem ocupar os espaços de decisão e ação. É só pela presença de todas as etnias e grupos sociais que constituem a sociedade brasileira no poder, que a democracia se legitima. Gilberto Freyre defendia que a população brasileira já havia se mestiçado, que não havia mais diferenças étnicas e culturais, que éramos um só povo, mas Darcy Ribeiro desmentiu totalmente essa tese.
Para Darcy, o brasileiro discrimina pelas diferenças de raças, pelas diferenças de tom de pele e por classes sociais. Então é necessário abandonar essa visão de “pacificação” forçada e entender que o Brasil é multicultural e só pela presença justa de todos os grupos que o diálogo intercultural tem chances de acontecer no Legislativo e no Executivo.
Quais são os principais desafios e entraves e que mecanismos precisam ser adotados para que democratize a participação?
A barreira da língua e da alfabetização em português são bastante importantes quando falamos em candidaturas indígenas. O Brasil tem mais de 300 povos indígenas e mais de 200 idiomas, mas só o português é oficial. Pelo artigo 14 da Constituição Federal, é condição de elegibilidade a alfabetização em língua portuguesa.
É surpreendente que Juruna tenha sido eleito em 1982 como deputado federal, pois ele nunca havia tido contato com um não indígena até os 17 anos. Só pôde alistar-se como eleitor após alfabetizar-se em língua portuguesa, como exigia o artigo 147, §3º, “a” da EC n. 1, de 17 de outubro de 1969, que substituiu a Constituição de 1967 e estava em vigor à época das Eleições de 1982.
Situação bem diferente foi a da atual deputada federal Joênia Wapichana, uma mulher indígena que, ao candidatar-se, já tinha um mestrado em Direito pela Universidade do Arizona, nos EUA. Também pode-se falar em financiamento de candidaturas indígenas, o que torna as eleições municipais muito mais acessíveis.
Percebemos que existem muitos candidatos indígenas no RS ligados a partidos de direita, entre eles o PP, que tem tradição ruralista. Sabemos que as pessoas são diversas, mas soa meio estranho ver essa situação. Qual sua opinião sobre isso?
Tudo depende da presença de órgãos partidários em cada município. Vejamos Iraí, município que tem um vereador indígena filiado ao PP e tem somente dois partidos de esquerda que constituíram órgãos no município, o PT e o PDT. Por outro lado, Iraí tem órgãos municipais de partidos como o PP, o MDB, o PSD, o Republicanos e outros.
A presença de partidos nos municípios também é um indicativo das prioridades daquele local. Maurice Duverger explica que os partidos de massas, que pregam a extensão de direitos à maior parte da população, têm origem urbana. Isso faz sentido se lembrarmos que a criação da Justiça Eleitoral e a extensão do voto às mulheres só ocorreram graças ao Código Eleitoral de 1932, período de intensa urbanização da população brasileira.
A realidade partidária nos municípios com economia essencialmente agrícola e pastoril reflete as prioridades locais e o candidato, seja de qual etnia for, precisa falar ao eleitor local.
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Para pesquisadora, população indígena deve ocupar espaços de decisão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU