31 Outubro 2020
A ressurreição constitui o fulcro polarizador em torno do qual foi se criando progressivamente a tradição oral e depois escrita por parte da comunidade dos discípulos de Jesus, que mais tarde confluiu nos quatro relatos dos Evangelhos. Desse modo, a memória coletiva se tornou também memória cultural, um quadro sintético dentro do qual é possível encontrar os pontos de referência e os critérios de avaliação que guiam a vida dos crentes em Cristo Jesus.
O comentário é de Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 21-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A ressurreição se coloca como ápice e vértice da história de Jesus – além da história das palavras e das ações salvíficas de Deus no povo de Israel – e ponto prospectivo de força e de vida para o futuro das comunidades cristãs. Cada evangelista recupera e reelabora a tradição que, remontando da ressurreição à paixão, até a vida de Jesus a partir do batismo no Jordão (Marcos) e a infância (Mateus-Lucas), chega à pré-existência do logos divino (João). Olhando para a frente, a ressurreição torna-se o critério de leitura da origem da história dos discípulos, da Igreja do período contemporâneo a ela e do futuro, além da história de toda a humanidade (Atos dos Apóstolos).
Na sua obra, cada evangelista escreve em função das necessidades da própria Igreja de referência, recuperando e reelaborando as tradições sobre Jesus mais adequadas para responder às necessidades dos seus destinatários.
Massimo De Santis, professor da Gregoriana, doutor em Teologia Bíblica, divide sua obra em duas partes, mais um epílogo. Fecham o volume a bibliografia (pp. 193-202), o índice das fontes (pp. 203-218) e dos nomes (pp. 219-221).
Na primeira parte (cap. I-IV, pp. 17-128), o autor expõe brevemente a teologia – não a exegese – dos relatos evangélicos, expondo as peculiaridades teológicas de cada evangelista.
Na segunda parte (pp. 129-182), ele faz um percurso para trás: das tradições, ele retrocede ao evento da ressurreição de Jesus.
Tentemos fazer transparecer a riqueza do texto de De Santis com alguns breves exemplos da sua reflexão, às vezes relatando por extenso o seu denso pensamento.
Mc 16,1-8 sublinha o fato de que o Crucificado ressuscitou. As mulheres que se aproximam do sepulcro manifestam incongruências tais que o leitor entende que o evangelista quer dizer que o fato da ressurreição as antecipa, as supera e as desloca. O jovem de vestes brancas – que pode ser o Cristo ressuscitado (parece ser essa opinião de De Santis) – mostra o cumprimento das palavras de Jesus sobre o fato e o encontro na Galileia. As palavras performativas de Jesus implementam o poder do Ressuscitado, que não está mais ali, mas ressuscitou, embora permanecendo como o Crucificado para sempre.
Marcos evita narrar aparições pascais, que, no seu ambiente romano, podiam ser confundidas com a crença comum sobre aa almas que vagam ao redor dos túmulos.
O fim abrupto do Evangelho convida a reler todo o relato anterior à luz da Páscoa e a se tornar efetivo proclamadores da “boa notícia” por meio da própria conversão das deformações anteriores da imagem divina, das expectativas messiânicas e das ilusões do imaginário religioso, para acolher o verdadeiro mistério de Deus no caminho novo e surpreendente inaugurado por Jesus e que deve ser prolongado.
Desse modo, supera-se o fracasso das mulheres. “O medo e a deserção das mulheres evidenciam de modo flagrante o contraste entre a ‘fidelidade’ de Jesus e a ‘infidelidade dos discípulos’” (p. 27), além de remeter, em contraste, à profissão de fé do centurião .
O leitor é convidado a reconhecer a proclamação da ressurreição de Jesus nas performances do Jesus terreno (p. 32). No projeto narrativo (nível da escritura) de Mc 1,1, narra-se a história de Jesus (genitivo subjetivo), enquanto, no programa discursivo, proclama-se a boa notícia de Jesus (Mc 1,1 genitivo objetivo). Em todas as partes do Evangelho, os dispositivos textuais remetem à necessidade de descobrir a identidade profunda de Jesus, a sua verdade invisível, a dimensão do “mistério”, do “segredo”.
A comunidade romana de Marcos “procura viver uma comunhão de vida com Jesus a serviço dos irmãos (cf. Mc 10,45)” (p. 34), mas não deve presumir que não está ameaçada por deserções (cf. a figura de Pedro). Somente Jesus é fiel e não abandona os seus, sequer a comunidade perseguida de Roma que viu Pedro ser morto, em um contexto de “ciúme” (Carta de Clemente aos Coríntios 5,2-4). É só Deus quem conduz a história da salvação. Os homens são sempre infiéis e necessitados de conversão. A fé na ressurreição deve ser mantida, sob o perigo de cair na falta de esperança, na resignação, “ou na impaciência de ver já agora o Reino de Deus, ou a busca de meios mundanos considerados mais eficazes do que o caminho percorrido por Jesus” (p. 34).
Mt 28,1-20 sublinha, por sua vez, o dado teológico de que o Ressuscitado é o “Deus conosco”. O relato se articula em uma dupla revelação às mulheres por meio de uma angelofania e de uma cristofania. Depois do relato da custódia do sepulcro, narra-se a cristofania aos Onze e o envio missionário.
Segundo De Santis, é melhor falar de encontros pascais, e não de aparições, pois estas últimas podem deixar inalterado o destinatário da percepção visual e auditiva, enquanto o encontro envolve uma relação interpessoal que leva à mudança do interlocutor (ao longo da obra, o autor nem sempre parece ser coerente com essa escolha terminológica). O poder do Ressuscitado fundamenta a força da sua palavra acerca do mandato missionário.
No trecho, há uma forte concentração cristológica, com consequências eclesiológicas e éticas precisas. “A Igreja é a ‘escola’ permanente de Jesus; os discípulos depois do batismo devem continuar frequentando a comunidade cristã, para escutar a palavra do Filho de Deus, escrita no ‘texto’ evangélico de Mateus, que já se torna indispensável para o seguimento de Jesus” (pp. 56-57).
“A novidade ética decisiva proposta por Mateus tem o seu pressuposto na participação dos discípulos, mediante o batismo, na vida do Deus trinitário que os torna ‘irmãos’ do Ressuscitado” (p. 57). Pertence-se à família de Jesus não por razões étnicas, sociológicas, ministeriais ou de veleidade formais, mas por “fazer a vontade do Pai” de modo muito concreto. O discípulo deve pôr em prática, com as palavras e com a vida, o ensinamento de Jesus, recriando a perfeição da doação de si, em um amor ilimitado, no desapego ao dinheiro.
A justiça superior exigida por Jesus é a prática do amor concreto e sem limites a Deus e aos irmãos, que só Jesus realizou com a sua vida, a sua morte salvífica (cf. Mt 26,28) e a sua ressurreição, que escancara o horizonte salvífico a todos os povos. Jesus ressuscitado permanecerá para sempre, de modo contínuo, na sua Igreja (cf. Mt 1,23; 28,20).
No Evangelho de Mateus, Jesus revela ser o Ressuscitado que permanece para sempre como o crucificado Filho de Deus (cf. Mt 28,5), o Emanuel vivo e operante até o fim da história.
“Do relato de Mt 28,1-20 emerge uma figura de Jesus como salvador de porte universal, onicompreensivo e paradigmático” (p. 60). Com a salvação universal alcançada com a morte e a ressurreição, Jesus resolve o conflito com Israel, com uma reconciliação sancionada pelo batismo.
Dada a sensibilidade particular de Mateus pelo mundo judaico, é delicado o parágrafo da página 60 sobre Israel, não isento – na minha opinião – de algumas expressões suscetíveis a mais discussões. Relatamo-lo na íntegra.
“Israel não está excluído da participação no novo povo de Deus. Os seus líderes foram ferrenhos opositores de Jesus até a sua condenação à morte. Com a sua constante oposição, eles permitiram que o Israel histórico perdesse o seu papel de povo eleito por Deus (Mt 15,13-14; 21,37.43; 22,7; 27,20-26); no seu plano providencial, porém, Deus estende a salvação à humanidade inteira, por meio da morte do seu Filho, prenúncio do perdão dos pecados (Mt 26,28): essa palavra de salvação será anunciada pelos discípulos a todos os povos.”
Os discípulos reconciliados pelo Ressuscitado receberam o status de “irmãos”. “Com a ressurreição, tem início uma ‘nova era’, o tempo da Igreja, o novo povo de Deus, que continuará a sua marcha com o Senhor até a parusia” (pp. 60-61).
A ressurreição constitui o coração pulsante da obra de Lucas. De Santis examina a riqueza teológica de Lc 24 e At 1-5.
Lucas é o único evangelista que uniu a história de Jesus com a das origens do movimento cristão, instituindo uma linha de continuidade entre a memória histórica de Jesus e a dos seus discípulos. “Jesus é a figura central da história da salvação, eixo da continuidade entre a história que Deus construiu com Israel e a que continua a construir com o povo santo, a comunidade cristã da qual os gentios já fazem parte até mesmo preponderante” (p. 63).
A ressurreição de Jesus é narrada na conclusão do Evangelho e também no início dos Atos por meio da representação das aparições – o autor dissera que preferia o termo “encontros” – e do ensinamento do Ressuscitado, da ascensão ao céu de Jesus e assim por diante até o Pentecostes e os sumários da vida da primeira comunidade cristã (At 2,42-48; 4,32-37; 5,12-16).
No Evangelho e nos Atos, a ressurreição recebe em Lucas um espaço narrativo muito amplo e segmentado em etapas sucessivas: o túmulo vazio e o anúncio, o encontro com os discípulos de Emaús – assim se diz no índice da p. 224; na p. 64, o autor fala de “aparição” –, o encontro com os discípulos reunidos, a ascensão ao céu, o Pentecostes e os efeitos da ressurreição sobre a comunidade e a história.
A ressurreição de Jesus narrada em Lucas tem uma matriz claramente teológica: “O evento, de fato, brota da iniciativa do Deus de Jesus, que dá vida onde o Filho havia sido morto na cruz” (pp. 95-96). Lucas condensa todos os eventos pascais em Jerusalém, na medida em que quer evidenciar que “a ressurreição é o ápice da história da salvação, conduzida por Deus através do seu povo Israel, do qual a cidade é metonímia” (p. 96).
Jesus cumpre as profecias do Antigo Testamento e, portanto, também a esperança de Israel. Lucas se refere constantemente às Escrituras de Israel para evidenciar que Deus conduz a história da salvação.
A ressurreição é o vetor principal da cristologia. Em Lucas, Jesus é o exegeta único. O Ressuscitado implementa a leitura cristológica das Escrituras. A ressurreição leva a termo o processo de compreensão da figura de Jesus de Nazaré: “Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vocês crucificaram” (At 2,36).
Além disso, a ressurreição de Jesus tem um valor soteriológico, na medida em que o encontro com o Cristo ressuscitado produz o perdão dos pecados, experiência de salvação. O perdão experimentado torna-se, graças ao Espírito Santo, a força para se tornar autênticas testemunhas do Ressuscitado.
“As três espinhas dorsais temáticas principais do relato da ressurreição, a ativação da memória, a conversão e o perdão dos pecados e, por fim, o testemunho dos discípulos, convergem na ação missionária da Igreja narrada ao longo de todo o livro dos Atos. De fato, o testemunho apostólico é a atualização, o memorial da ressurreição no tempo presente” (p. 96).
Finalmente, a ressurreição de Jesus tem um porte eclesiológico: as aparições aos indivíduos e aos pequenos grupos convergem para a aparição a toda a comunidade, representada pelos Onze, pelo restante dos discípulos e pelas mulheres.
Em conclusão, o autor nota que, “para Lucas, o evento da ressurreição, historicamente único, irrepetível, chocante, tem um valor performativo contínuo e constante na sua proclamação: do Cristo ressuscitado provém a salvação divina que permeia o tecido da história humana e vincula o presente da comunidade cristã de Lucas com o passado de Israel e com o futuro da Igreja universal” (p. 97).
Os capítulos conclusivos do Evangelho de João (Jo 20-21) narram o encontro dos discípulos com o Ressuscitado e as suas consequências eclesiais. Em João, encontramos não um relato unitários, mas dois relatos. O primeiro (Jo 20) centra-se na relação entre o Ressuscitado e a fé dos discípulos. O discipulado é posto diante do túmulo vazio (20,1-10); segue-se a isso a série de encontros entre o Ressuscitado e Maria de Magdala (vv. 11-18), os discípulos reunidos (vv. 19-23) e finalmente Tomé (vv. 24-29).
O segundo relato (Jo 21) tem como tema teológico a presença do Ressuscitado na comunidade eclesial. Ela se expressa por meio do relato da refeição no lago de Tiberíades (Jo 21,1-14) e o esclarecimento sobre as respectivas funções de Pedro e do Discípulo Amado no âmbito eclesial (vv. 15-24).
Na segunda parte do livro, De Santis realiza um percurso para trás que parte das tradições para voltar ao evento da ressurreição de Jesus (cap. V-VI, pp. 129-182).
Em um primeiro momento, ele verifica a consistência das tradições eclesiais anteriores à redação dos relatos evangélicos (cap. V, pp. 129-142).
O autor se concentra primeiro na tradição acerca do túmulo vazio e nos relatos dos encontros pascais de Cristo ressuscitado com os seus discípulos.
Os elementos comuns desses últimos são o fato “visual”, a ausência de um reconhecimento imediato, o mandato missionário. O elemento da refeição comum de Lucas e João também é retomado pelo final longo ou espúrio de Marcos e por Inácio de Antioquia. O primeiro encontro pascal, enfim, ocorre “no primeiro dia da semana”, que coincide com a tradição do “terceiro dia” (1Cor 15,4), o atual domingo, dia sem fim da ressurreição do Senhor.
Os elementos divergentes são, acima de tudo, o lugar dos encontros: Galileia (Mateus, Marcos, João) e Jerusalém (Lucas). Ambos se fundamentam em fatos anteriores bem conhecidos pelos evangelistas: a visão do Ressuscitado por parte das mulheres junto ao túmulo no domingo de manhã e a presença de alguns discípulos nas proximidades da Cidade Santa (Pedro e os dois de Emaús).
Para De Santis, “não parece que uma das duas tradições seja necessariamente posterior à outra (...) mesmo a jerosolimitana é, portanto, uma tradição não menos antiga do que a galilaica” (p. 135).
O tipo da tradição galilaica (Mt 28,16-20) parece responder aos relatos de vocação e missão do Antigo Testamento, enquanto a estrutura dos encontros pascais do tipo jerosolimitano apresenta uma configuração tripartida: aparição, reconhecimento e envio em missão. No Novo Testamento, os dois esquemas convivem na sua complementaridade.
“A coexistência sincrônica dos dois modelos parece necessária, pois a tradição galilaica marca o fim da história por obra do Filho do homem, figura apocalíptica do Senhor exaltado; a jerosolimitana, por sua vez, prospecta o Cristo ressuscitado operante atualmente na história dos leitores” (p. 137).
Alguns encontros do Ressuscitado foram relatados muitas vezes dentro das várias comunidades e, assim, adquiriram um marco narrativo mais amplo. São três os temas centrais, que qualificam uma espécie de subgênero literário: o reconhecimento do Ressuscitado, a atenção à corporeidade e à refeição, o perdão dos pecados e o envio missionário dos discípulos.
Em um segundo momento da segunda parte, De Santis volta das tradições à historicidade do evento que está na sua base (cap. VI, pp. 143-182).
A historicidade da ressurreição foi frequentemente negada no passado, pois ela pertence à realidade meta-histórica, que claramente não é avaliável com os critérios historiográficos usuais. Isso continua sendo verdade. Ela é um evento liminar que se coloca no limiar entre história e meta-história, mas deixa para trás evidências históricas e mistérios insondáveis para os critérios humanos. O olhar sobre o mistério é possível a partir da avaliação dos efeitos que surgiram do encontro dos discípulos com Cristo ressuscitado.
“A ressurreição, de fato, deixa uma ‘marca’ na história humana que levanta sérias interrogações e leva a buscar a sua origem”, afirma o autor na Introdução ao seu estudo (pp. 7-16, aqui p. 11).
Na sua pesquisa, De Santis se detém sobre dois pontos: o túmulo vazio e os relatos de encontro (pp. 143-147).
Ele estuda primeiro os indícios de historicidade presentes na tradição do túmulo vazio. A fé na ressurreição nasce dos encontros pascais. O elemento do túmulo vazio recupera um fenômeno ambíguo, exposto a diversas conjecturas possíveis. Não havia necessidade de inventar a cena das mulheres no sepulcro pela manhã para certificar a mensagem de que Cristo havia ressuscitado.
Outro elemento de historicidade é a presença de parentes, e principalmente de mulheres, junto ao túmulo de um falecido. É uma característica de todas as civilizações antigas do Mediterrâneo. A descoberta dele por parte das mulheres, testemunhas menos confiáveis do que os homens, é índice de historicidade.
A menção do túmulo vazio não está presente em 1Cor 15. De fato, ela não faz sentido, em um período posterior à formulação de confissões de fé, como a de 1Cor 5,3-8. Nela, sublinha-se que “só as aparições a personalidades masculinas autorizadas, ou a grupos eclesiais inteiros, garantem a fé na ressurreição de Jesus” (p. 145).
Deve-se lembrar que o anúncio da ressurreição física inclui necessariamente a existência de um sepulcro vazio. As suspeitas de roubo do corpo indicam implicitamente a existência de um túmulo vazio. Junto ao sepulcro, não houve nenhum testemunho de culto ou de uma forma de veneração, como ocorria normalmente no mundo judaico. Se os discípulos tivessem roubado o corpo de Jesus, eles o teriam colocado em um espaço honroso e bem cuidado, que certamente se tornaria lugar de veneração.
São vários os indícios de historicidade presentes na narração dos encontros do Ressuscitado com os discípulos. Os encontros com mulheres foram os primeiros, mas os seus relatos foram redimensionados posteriormente. As convergências e as divergências nos relatos dos encontros pascais e na fórmula de 1Cor 15 testemunham em favor “de que o encontro entre o Ressuscitado e os Onze/Doze realmente ocorreu” (p. 147). Inúmeras pessoas atestam ter encontrado o Ressuscitado. Os encontros com os Doze (cf. 1Cor 15, 5) fundamentam a fé da Igreja.
É eficaz a síntese final de De Santis sobre esse ponto. Relatamo-la na íntegra:
“Depois dos encontros, os seus discípulos não alimentaram mais dúvidas sobre a identificação entre o Jesus crucificado e o Ressuscitado; eles consideraram a ressurreição dos mortos um evento real. Os encontros, de fato, não são comparáveis a visões interiores ou experiências místicas ou pietistas, mas sim a experiências objetivas de tipo real. Além disso, tais experiências ocorreram por iniciativa exclusiva do Ressuscitado, para além de qualquer expectativa possível dos discípulos. A manifestação do Ressuscitado implementou a fé dos discípulos, que, portanto, é um dom exógeno” (pp. 147-148).
O núcleo da ressurreição é transcendente, meta-histórico, mas também assume contornos, certamente nuançados, mas verificáveis historicamente.
“Somente um evento excepcional como a experiência de um encontro com Jesus post-mortem vivido pelos discípulos consegue explicar uma série de fenômenos históricos derivados dele e de natureza correlata: o impulso missionário do novo discipulado, a originalidade e a imprevisibilidade do encontro, a descontinuidade com a concepção da ressurreição do judaísmo, a incompatibilidade com as concepções post-mortem greco-romanas, a difusão do cristianismo e a fé do novo movimento em um Deus trinitário” (pp. 149-150).
De Santis analisa cada um desses seis efeitos históricos que remontam a uma causa a ser hipotetizada com certeza.
Por fim, o autor aborda o problema da adoção do registro linguístico. A comunidade cristã faz a escolha de uma categoria conceitual que depois se desdobra em uma pluralidade de modalidades expressivas do fenômeno.
A categoria escolhida se deve ao fato de que “a experiência do contato com o Ressuscitado era irredutível a qualquer outra categoria do post-mortem até então elaborada”. De Santis menciona como inadequadas a categoria conceitual da translação ou arrebatamento ao céu e a da imortalidade da alma. Escolhe-se a categoria judaica da ressurreição, mas colocando o acontecimento do encontro com Jesus no meio da história humana, e não no fim dos tempos.
As modalidades expressivas da nova realidade de Jesus existente em uma dimensão totalmente atípica, em uma forma de vida junto de Deus incorruptível e eterna, foram situadas no campo metafórico, usual na experiência religiosa, “empregando lexemas pertencentes aos núcleos temáticos, próprios do uso linguístico hebraico e helenístico, do ‘despertar-reerguimento’, da ‘vida’ e da ‘exaltação’, para poder expressar a performance poderosa de Deus ocorrida em Jesus” (p. 172).
Na comunidade primitiva, houve o esforço constante de interpretação teológica do evento da ressurreição de Jesus, junto com a incansável busca das categorias mais idôneas aos destinatários da mensagem.
No Epílogo (pp. 183-192), De Santis finalmente reflete sobre o fato de que “o evento pascal, a morte e a ressurreição de Jesus, é o vértice da revelação teológica, cristológica e antropológica” (p. 181).
A ressurreição de Jesus foi vista como a revelação cristológica definitiva. Jesus foi feito por Deus “Senhor e Cristo”. Jesus como Messias é o pleno cumprimento das categorias messiânicas presentes no Antigo Testamento e, elevado à direita de Deus, na qualidade de Senhor, pode dar o Espírito Santo à sua Igreja com plenitude de poder.
A ressurreição é também uma revelação teológica definitiva. De fato, Deus é o protagonista do evento da ressurreição de Jesus, sujeito implícito dos verbos passivos (passivum divinum) disseminados nos textos.
“O Deus de Jesus Cristo se revela como aquele que desde sempre é salvador: na sua infinita bondade e poder (cf. Ef 1,19), ele ordenou a criação do mundo e da história humana até a ressurreição de Jesus dos mortos, início do eschaton, o tempo novo e definitivo da salvação; por meio da ressurreição do Filho encarnado, Deus realiza as promessas de redenção e de justiça feitas a Israel e, portanto, cumpre a esperança de Israel” (p. 187).
Por fim, a ressurreição de Jesus é uma revelação antropológica. Ao manifestar a identidade divina de Jesus e o amor misericordioso de Deus, a ressurreição modificou o status antropológico e cósmico.
As cartas aos Colossenses e aos Efésios desenvolvem o porte cósmico da ressurreição de Jesus, enquanto os Evangelhos acenam às consequências antropológicas dela. O encontro com o Ressuscitado “transforma a existência dos discípulos, que experimentam o perdão divino e, graças a este, estão prontos para iniciar a missão de evangelização” (p. 187).
O livro de De Santis constitui um ótimo trabalho de reflexão abrangente sobre os dados teológicos principais emergentes da narrativa pascal contida nos Evangelhos, deixando aberto o espaço para novas discussões.
Ele integra com felicidade os resultados da análise exegética expostos em obras que tratam do mesmo tema. O ditado é extremamente consequente, bem informado, supervisionado, mas acessível a estudantes de teologia e a pessoas com uma bagagem mínima de conhecimento dos textos bíblicos.
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O Ressuscitado: uma análise teológica dos Evangelhos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU