21 Outubro 2020
"O papa argentino levantou a questão de que tipo de sociedade os homens e mulheres do século XXI querem viver depois da pandemia", afirma Marco Politi.
A entrevista é de Cecilia Sandroni, publicada por Affari Italiani, 19-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
(Reprodução da capa do livro)
O que é a peste para Francisco?
O que é a peste do coronavírus para nós, deveríamos nos perguntar primeiro. Já causou mais de um milhão de mortes e mais de 39 milhões de infectados. Mas a Organização Mundial da Saúde estima que existam centenas de milhões de infectados não registrados. A pandemia é um maremoto que invadiu nossas vidas e a segunda onda destas semanas é ainda mais violenta que a primeira, deixando-nos perdidos e angustiados. Francisco, que também exorta a seguir todas as medidas de segurança e de proteção das autoridades, compreendeu que esse drama não pode ficar um assunto exclusivamente reservado a políticos e cientistas.
Na tempestade da primavera, com a extraordinária cerimônia na Praça São Pedro tão deserta quanto nossas cidades, Francisco "apreendeu" os medos, as angústias, a pergunta de sentido de seus contemporâneos. Ele rejeitou a ideia de que a pandemia fosse produzida pela ira divina ou um "juízo de Deus". Ele rejeitou a tentação egoísta do salve-se quem puder. Destacando o “nós”, lembrou que estamos todos no mesmo barco, que não podemos salvar-nos sozinhos. E que este é o momento em que homens e mulheres, acometidos pela doença, devem se perguntar: o que é supérfluo? O que é necessário? O que podemos e devemos fazer? E, sobretudo, partindo do valor da vida humana, o papa argentino questionou em que tipo de sociedade os homens e mulheres do século XXI desejam viver e que tipo de comunidade desejam reconstruir depois da catástrofe da pandemia.
O título do livro também fala de renascimento. O que você quer dizer?
É uma imagem de Francisco. Aliás, em uma mensagem a uma revista espanhola, ele fala em "ressurgir". É um conceito sutil. Não se ressurge com o velho corpo... Francisco quer dizer que depois desta grande crise nada pode ser como antes. Podemos estar em pior situação (e muitos indicadores já estão empurrando nessa direção) ou podemos trabalhar por um modelo melhor de sociedade e desenvolvimento. É uma questão de escolher se trabalhar para uma sociedade inclusiva, que não “descarte” as pessoas e não deixe ninguém à margem.
Não é uma moralidade indulgente abstrata. Ter um serviço nacional de saúde eficiente é um fato concreto. Ter um sistema baseado em seguros - muito caro por sinal - como nos Estados Unidos significa deixar milhões de pessoas no caminho. Isso também é um fato concreto. Superar a precariedade sistemática que mantém jovens e menos jovens no limite, impedindo-os de planejar uma vida serena a dois e para os filhos, é igualmente concreto. Combater a escravidão do trabalho e sexual, enfrentar o problema histórico da migração, combater a degradação natural que comporta – dados nas mãos - uma degradação social inevitável… Todas essas são questões concretas.
O convite reiterado ontem (domingo, 18-10-2020) por Francisco no Angelus para pagar impostos também é concreto. Traduzido: não somos bons samaritanos se enganamos a comunidade, se aproveitamos os cuidados hospitalares às custas dos nossos concidadãos que pagam impostos. Aqueles que desejam um estado de bem-estar têm o dever de contribuir.
O egoísmo individual não faz uma sociedade crescer. O egoísmo nacionalista dos soberanistas não aumenta a paz, a cooperação, o desenvolvimento harmonioso a nível internacional. É por isso que o papa ironicamente diz que "o pior desta crise é desperdiçá-la" para deixar que se retorne às desigualdades, às injustiças e aos desastres ambientais de antes.
O que o Papa Francisco representa para você? O que você aprendeu com este pontificado?
Um Papa não é um santo. Pode atingir marcos ou cometer erros e a imprensa tem o dever de apontar uns e outros. No plano histórico, a secularização, que comporta a crise das formas eclesiásticas tradicionais, prossegue de forma imparável. Mas a qualidade e a grandeza de um papado podem ser vistas em sua capacidade de interagir com o mundo. Como o Papa Wojtyla (para citar uma personalidade que muitos ainda se lembram), Francisco fala com seus contemporâneos, aliás, consegue alcançar os corações e mentes de milhões de homens e mulheres além das divisões confessionais: cristãos e seguidores de outras religiões, crentes e ateus ou agnósticos.
Porque ele não fala como um monarca, mas como um discípulo de Cristo, ele prega os valores do Evangelho que se cruzam com os princípios modernos proclamados pela Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Acima de tudo, traz de volta ao centro das atenções a pergunta: quais são os seus valores orientadores? Porque, na realidade, quem vive sem princípios éticos está, em última instância, sujeito às prioridades ditadas por outras forças econômicas, midiáticas e políticas, esteja consciente ou não.
Aprendi com todos os pontificados, fazendo a profissão de vaticanista, aprendi também com minha experiência na União Soviética onde fui correspondente por seis anos, da perestroika de Gorbachev ao nascimento da nova Rússia de Boris Yelstin. Aprendi que você nunca deve perder o olhar crítico e manter a coragem de expressar a própria opinião com clareza.
O que é um papa hoje no século XXI?
O líder de uma comunidade organizada de um bilhão e trezentos milhões de mulheres e homens espalhados pelos cinco continentes. Uma comunidade que faz um caminho difícil de transição sob o impacto da cultura contemporânea que não tolera a ideia de “rebanho” e exalta o sujeito.
Francisco está empenhado em desmonarquizar a Igreja, tornando-a mais comunitária. Ele prega um cristianismo que significa principalmente o testemunho ativo das Boas Novas, em vez da mera participação nos ritos ou um simples rótulo identitário. Ele tirou da mesa a obsessão eclesiástica pelas questões sexuais.
Ele limpou o banco do Vaticano. Com suas reformas, permitiu que o atual grande escândalo financeiro na Cúria fosse denunciado em primeiro lugar pelas autoridades de supervisão do Vaticano. Enquanto no passado eram os rumores midiáticos que traziam à luz o turvo.
Ele colocou sobre a mesa (ainda que não resolvido) o tema das mulheres diáconas e de um clero também casado. Ele é o primeiro papa que expulsou dois cardeais do colégio cardinalício por abusos. E outro por desfalque. Francisco é o protagonista dinâmico da longa marcha da Igreja no novo milênio.
Ter se tornado avô mudou sua percepção de filho e, em sentido mais amplo, de "filho de Deus"?
Tornei-me avô pela terceira vez neste verão e, como todo mundo, sofro com a nova onda de pandemia que nos obriga a ficar longe de filhos, netos, entes queridos e amigos. O distanciamento dos membros da família é uma grande dor. Mas também é uma oportunidade para refletir sobre o fato de que todos têm o direito de viver em uma família serena.
O lockdown me deixou ainda mais atento ao tipo de sociedade em que vivemos. Que não ajuda os jovens, não ajuda as mães que trabalham, não ajuda os jovens casais que querem ter filhos. Por isso, torna-se vital que bilhões de pessoas atuem, para que se possa viver em uma economia social de mercado, não aceitando a falsa narrativa ("todos podem chegar ao topo") de quem promove uma economia financeira de rapina.
O conceito de redistribuição das riquezas é essencial para poder viver em uma sociedade humana. Na fúria da pandemia, Francisco voltou-se para o mundo para nos lembrar que estamos todos no mesmo barco. Não é um mundo bonito aquele em que muitas pessoas se afogam e uma minoria vai em frente em seu pequeno barquinho.
Francisco sempre enfatiza que Deus é o pai de todos - e assim passo à segunda parte da pergunta - e isso liberta a imagem de Deus dos laços confessionais. Madre Teresa de Calcutá costumava dizer que “Deus não é católico”. Eu sou de cultura laica, portanto, o ícone de “filhos de Deus” não me fala diretamente. Mas um papa que fala de um Deus que é pai de todos, se posicionando contra todo fundamentalismo e soberanismo religioso e político, é um papa que promove a fraternidade entre homens e mulheres no planeta - e isso me diz respeito.
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“Francisco - A Peste, O Renascimento”. Entrevista com o autor Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU