29 Agosto 2020
Desde a histórica onda de calor e de incêndios florestais no Oeste dos Estados Unidos, passando pela enorme tempestade que atravessou o meio da nação, até o ritmo recorde da temporada de furacões deste ano, as condições extremas sem precedentes e simultâneas se assemelham ao clima caótico do futuro sobre o qual os cientistas vêm nos alertando há décadas – só que ele já está acontecendo agora.
A reportagem é de Jeff Berardelli, publicada em CBS News, 24-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Embora as catástrofes climáticas sejam normalmente espaçadas no tempo e na localização geográfica, neste momento os EUA estão enfrentando vários desastres. O Meio Oeste está se recuperando de uma tempestade devastadora que causou quase 4 bilhões de dólares em estragos a casas e plantações, já que quase 250 mil pessoas no Oeste estão sob ordens de evacuação ou avisos de incêndios que queimaram mais de 400 mil hectares, e, ao mesmo tempo, os residentes ao longo da Costa do Golfo estão se preparando para desmoronamentos consecutivos provocados por uma tempestade tropical e por um furacão.
“Este período atual de eventos naturais catastróficos nos Estados Unidos é essencialmente uma fotografia daquilo que os cientistas e os gestores de emergência temiam há muito tempo”, disse o meteorologista Steven Bowen, chefe do Catastrophe Insight da AON, uma empresa internacional de mitigação de risco.
Michael Mann, professor de Ciências Atmosféricas na Universidade Estadual da Pensilvânia, estava por acaso na Austrália em um período sabático no ano passado quando testemunhou os incêndios florestais devastadores lá – uma cena semelhante ao que está acontecendo na Califórnia agora. Durante anos, Mann soou o alarme sobre a aceleração das mudanças climáticas causadas pelo ser humano, mas até mesmo ele está um tanto surpreso com o ritmo.
“Em muitos aspectos, os impactos estão acontecendo de modo mais rápido e com uma maior gravidade do que prevíamos”, disse ele.
Na verdade, esses eventos não estão todos relacionados entre si, mas a única coisa que eles têm em comum é que as mudanças climáticas tornam cada um mais provável. A explicação simples é de que há mais energia no sistema, e essa energia é gasta na forma de calor, incêndios, ventos e chuvas mais extremos.
Pode ser tentador olhar para esses extremos como um “novo normal”, mas o Dr. Kevin Trenberth, cientista sênior do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, diz que, embora possa ser novo, não será normal.
“Há algum tempo falamos de um ‘novo normal’, mas a questão é que ele continua mudando. Ele não se detém em um novo Estado. Essa mudança é o que tanto perturba”, afirma.
Os incêndios que estão ocorrendo na Califórnia agora não têm nenhum paralelo nos tempos modernos. Com mais de 400 mil hectares queimados em apenas uma semana, a temporada já é histórica, com mais hectares queimados na semana passada do que o normal em um ano inteiro. Dois dos três maiores incêndios registrados no Estado estão ardendo ao mesmo tempo – os incêndios nos complexos LNU e SCU – com a probabilidade de que um deles ocupe o primeiro lugar em breve.
Na manhã de segunda-feira, o CalFire relatou que mais de 7.000 incêndios queimaram quase 600 mil hectares nesta temporada, sobrecarregando os recursos a ponto de ser necessário permitir que muitos dos incêndios menores continuem ardendo. O CalFire afirmou que, para combater esses incêndios com o máximo da sua capacidade, a agência precisaria de quase 10 vezes mais recursos de combate a incêndios do que os disponíveis.
Como acontece em qualquer desastre natural, a causa pode ser atribuída a vários eventos coincidentes. Neste caso, a faísca para a maioria desses incêndios foi uma série de raios, resultado da umidade atraída para a Califórnia a partir de dois sistemas tropicais em decomposição no Pacífico oriental, que queimaram arbustos secos.
Daniel Swain é um conhecido cientista do clima, especializado em estudar a ligação entre as mudanças climáticas e o clima no Oeste dos EUA, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Em uma postagem de blog, ele descreveu que até mesmo alguém como ele, bem versado em desastres climáticos, está chocado com a situação atual: “Estou essencialmente sem palavras para descrever o escopo do surto de incêndios provocados por raios que evoluiu rapidamente no norte da Califórnia – mesmo no contexto dos extraordinários incêndios dos últimos anos. É realmente surpreendente.”
Embora não seja raro que a umidade tropical invada a Califórnia, é raro e extremamente triste que isso tenha ocorrido durante uma das piores ondas de calor do Oeste dos EUA na história recente, sem falar de uma seca contínua de curto e longo prazo. Os pesquisadores acreditam que, em 2000, o Oeste dos EUA entrou em uma megasseca, uma das piores dos últimos 1.200 anos.
É por isso que os cientistas do clima costumam dizer que as mudanças climáticas reforçam a possibilidade de condições climáticas extremas. A causa dos incêndios não são as mudanças climáticas, mas muitos dos fatores que prepararam o terreno e tornaram as condições propícias para a ignição e a propagação do fogo são um resultado direto do aquecimento climático.
No dia 16 de agosto, o Vale da Morte atingiu a marca de 54,4ºC, a temperatura mais alta já medida com segurança na Terra. Foi apenas uma pequena parte de uma onda de calor monstruosa que quebrou centenas de recordes de calor em um período de duas semanas. A ligação entre as ondas de calor e as mudanças climáticas é direta, e múltiplos estudos têm mostrado que um clima mais quente está tornando as ondas de calor mais prováveis e mais intensas.
“Basicamente, há mais calor disponível: o equilíbrio energético da Terra está fora de controle”, diz Trenberth. Essa energia térmica extra, aprisionada na atmosfera pelo excesso de gases do efeito estufa provenientes da queima de combustíveis fósseis, deve ser usada de alguma forma.
Trenberth explica que, se o solo estivesse molhado, o calor seria usado primeiro para evaporar a água, mantendo a temperatura do ar moderada. Mas, quando o ar e o solo estão totalmente secos, como é típico da estação seca na Califórnia – especialmente em verões como este –, o excesso de energia térmica é gasto secando os arbustos e aquecendo e secando o ar.
Essa seca de longo prazo criou um “déficit de pressão de vapor” – ou, em termos mais simples, um déficit de umidade. De acordo com um estudo de 2019, essa é uma das principais razões para a intensificação das temporadas de incêndios de verão na Califórnia, atualmente em níveis recordes.
Um “derecho” é uma linha de tempestades particularmente violentas e duradouras, muitas vezes provocando ventos de mais de 120 km/h. Embora esses eventos climáticos sejam comuns durante o verão, o evento que ocorreu no dia 10 de agosto em Iowa e Illinois parecia de outro mundo.
A linha de tempestades abriu um caminho de quase 1.300 quilômetros de comprimento e mais de 64 quilômetros de largura ao longo de comunidades e campos de milho, danificando 43% da safra de milho e soja de Iowa e causando quase 4 bilhões de dólares em prejuízos. Estima-se que os ventos tenham chegado a 225 km/h, com ventos com força de furacão que duraram de 40 a 50 minutos.
À primeira vista, pode parecer que se trata apenas de um evento natural anormal, sem nenhuma conexão real com as mudanças climáticas, mas pode não ser assim. Embora não haja muitas pesquisas sobre a conexão entre as mudanças climáticas e os derechos, um recente artigo [disponível aqui, em inglês] encontrou alguns resultados alarmantes.
A equipe de pesquisa usou um modelo climático para simular sistemas convectivos de mesoescala (MCSs), um termo técnico para massas de tempestades, em um mundo em aquecimento. Esses MCSs são as estruturas que às vezes geram os derechos. Usando um cenário de altas emissões de gases do efeito estufa, o artigo concluiu: “No fim do século, o número de MCSs intensos está projetado para mais do que triplicar na América do Norte durante o verão, devido a condições ambientais mais favoráveis”.
A pesquisa também constatou que as taxas máximas de precipitação horária dos MCSs aumentarão em 15% a 40% no futuro, devido a uma atmosfera mais quente e carregada com mais umidade. “A fonte de umidade para os MCSs na região central dos EUA é predominantemente o Golfo do México, e as mudanças climáticas irão aumentar o transporte de umidade da corrente de jato de baixo nível do Golfo para o norte”, explica o autor principal, Dr. Andreas Prein, do National Center for Atmospheric Research.
“Ainda se sabe pouco como tudo isso se relaciona com as mudanças na frequência e na intensidade dos derechos”, admite Prein, mas agora que os modelos climáticos são capazes de modelar isso, ele planeja fazer disso uma prioridade nos estudos futuros.
Embora Mann não tenha comentado especificamente sobre os derechos, ele acha que os eventos extremos não são capturados adequadamente nos modelos climáticos atuais. “Eu tenho defendido que os modelos climáticos provavelmente estão subestimando o impacto na frequência e na severidade de vários tipos de eventos climáticos extremos de verão, devido às deficiências em sua capacidade de capturar algumas das dinâmicas relevantes das correntes de jato.”
De acordo com o artigo, “quase todo o aumento na área de incêndios florestais de verão durante 1972 e 2018 foi impulsionado pelo aumento no déficit de pressão de vapor”.
Ter dois sistemas tropicais como Marco e Laura no fim de agosto, o início do pico da temporada de furacões, não é anormal, mesmo que as tempestades estejam muito próximas uma da outra. Mas o que é anormal é o ritmo recorde da atual temporada de furacões. Até agora, a temporada do Atlântico registrou 14 tempestades, 10 dias à frente do ritmo recorde. São duas a mais do que a média de uma temporada inteira, que vai até o fim de novembro. Meteorologistas sazonais estão prevendo até 25 sistemas neste ano, que ficaria em segundo lugar atrás de 2005.
Embora existam muitos fatores que contribuem para a força de uma temporada de furacões, o mais óbvio é a água quente que alimenta o desenvolvimento de tempestades. Neste ano, quase toda a Bacia do Atlântico tropical está acima do normal. Isso faz parte de uma tendência de aquecimento de longo prazo, na qual as temperaturas da superfície do Atlântico aumentaram em cerca de 2º Fahrenheit desde 1900, e a medida do Conteúdo de Calor do Oceano atinge níveis recordes a cada ano.
As temperaturas mais altas do oceano não garantem mais tempestades, mas fazem a balança desequilibrar, dando às tempestades um impulso extra para se desenvolverem. Após anos de pesquisa, a ciência do clima ainda não tem certeza de como o aquecimento do clima afetará o número de sistemas no futuro, mas há consenso de que, em geral, os furacões ficarão mais fortes e de que os furacões mais fortes e destrutivos se tornarão mais frequentes. Como os grandes furacões – categoria 3 e superiores – são responsáveis por 85% dos danos, um clima mais quente provavelmente terá consequências econômicas e humanas devastadoras.
Nos círculos de pesquisa e entre os planejadores de emergência, o conceito de ameaças compostas se tornou um assunto muito popular. Há anos, os cientistas alertam que o aumento da população, a exposição e a vulnerabilidade, combinados com eventos extremos impulsionados pelas mudanças climáticas, sobrecarregariam os recursos e comprometeriam a resposta a emergências. Especialistas argumentam que agora estamos vendo isso se desdobrar em tempo real.
“Esses eventos igualmente profundos que estão ocorrendo em diferentes partes do país ao mesmo tempo – aquilo que chamamos de extremos compostos ou conectados – correm o risco de colocar uma pressão significativa sobre os recursos, os orçamentos e a cadeia de abastecimento”, disse Bowen.
Esse é um tema frequentemente esquecido nas discussões gerais sobre as mudanças climáticas. Pode parecer fácil descartar um aumento de alguns graus nas temperaturas globais como algo irrelevante. No entanto, quando uma cascata de eventos extremos, cada um deles agravado pelas mudanças climáticas provocadas pelo ser humano, se acumulam, isso expõe a fragilidade dos sistemas humanos interconectados.
“Acrescente a isso as complicações contínuas levantadas pela Covid-19, e você enfrentará desafios ainda maiores ao tentar colocar as comunidades de volta em pé”, disse Bowen.
Bowen escreveu recentemente um artigo [disponível aqui, em inglês] com outros cientistas proeminentes, tentando lidar com esse problema complicado. Ele diz que, por causa de fatores socioeconômicos, com a população se espalhando para regiões de maior risco e com uma aceleração das mudanças climáticas, eventos mais intensos “só vão exacerbar os impactos desses cenários compostos no futuro”.
Especialistas alertam que aquilo que estamos testemunhando no momento presente é uma janela para a vida cotidiana em um futuro não muito distante, se os humanos não reverterem o curso e reduzirem as emissões. É assim que as mudanças climáticas se tornam uma força verdadeiramente desestabilizadora.
É por isso que Bowen e seus colegas argumentam que é necessária muito mais urgência para identificar essas combinações inesperadas e os riscos que elas representam para a sociedade.
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Caos climático: calor extremo, incêndios e tempestades indicam que futuro assustador já chegou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU