15 Agosto 2020
Ação começou com um trator destruindo a escola local, após agricultores salvarem livros e carteiras enquanto o batalhão de choque batia com os cassetetes nos escudos; decisão judicial atende a interesses de ‘barão do café’.
A reportagem é de Daniel Camargos e Ana Magalhães, publicada por Repórter Brasil, 13-08-2020.
Enquanto policiais do batalhão de choque batiam com os cassetetes em seus escudos, moradores sem-terra do acampamento Quilombo Campo Grande, na área rural de Campo do Meio (MG) salvavam, às pressas, livros, carteiras e quadros-negros da escola. Na manhã de hoje (13), a ação de reintegração de posse em andamento na área desde ontem começou justamente com um trator destruindo a escola Eduardo Galeano — a única do acampamento, onde vivem cerca de 450 famílias.
O território ocupado por integrantes do MST há 22 anos está dividido em dois terrenos. Para ambos, há pedidos judiciais de reintegração. A ameaça iminente de despejo afeta um deles, parte do território da falida Usina Ariadnópolis, onde estão 13 famílias, segundo o MST. Quatro delas já foram removidas pela Polícia Militar de Minas Gerais, que está executando uma ordem judicial.
O tamanho da área que está sendo alvo da ação da polícia é controversa. A primeira ordem judicial de reintegração de posse, referendada na 2ª instância, afirmava que ela tinha 26 hectares. No entanto, meses depois, um juiz da Vara Agrária ampliou para 52 hectares o total a ser reintegrado e determinou o despejo – o que aumentou o número das famílias atingidas de quatro para 13.
Para o MST, essa ampliação foi feita para pressionar as famílias não contempladas nesta ordem de reintegração de posse. “Essa decisão é uma grilagem oficial”, afirma o advogado do MST Guilherme Jaria. O movimento teme que a ampliação e a forma como foi feita deve pressionar pela reintegração do outro terreno, com área de mais de 4 mil hectares, onde mora a maioria das famílias.
O despejo, realizado em meio à pandemia do novo coronavírus, indignou os integrantes do movimento, entidades e políticos, que pressionam o governador Romeu Zema (Novo) para suspender a operação policial. “Já são mais de 100 mil mortes no país [por covid-19] e a polícia juntou 200 militares levando as pessoas do movimento a se reunirem para defenderem seu direito. Isso expôs ainda mais todos aos riscos. É uma ilegalidade absurda, um desrespeito à vida sem precedentes”, afirma Jaria, do MST.
Em novembro de 2018, a Repórter Brasil passou alguns dias no acampamento, quando os moradores temiam outro despejo — que terminou adiado
“Foi horrível. Meus filhos, assustados com os policiais, estavam chorando e tremendo”, conta Crislaine Cristina, mãe de Lara Gabrielly, de 5 anos, e de Bruno Gabryel, de 10. A família dela morava em uma casa no mesmo lote da escola e foi a primeira a ser despejada. Eles foram levados para um imóvel disponibilizado pela Prefeitura de Campo do Meio, na área urbana, que não tem portas entre os cômodos, está praticamente sem móveis e cujo chuveiro está queimado. A pequena Lara andava pela casa e não disfarçava o desconforto. Mas o pior, segundo a menina, é não ter mais todo o espaço que ela tinha para brincar no acampamento.
Despejada, Crislaine não tem clareza sobre quando tempo poderá ficar no imóvel da prefeitura e nem como fará para sobreviver durante a pandemia, pois a família se sustentava com a produção rural. “Todos falam que devemos ficar dentro de casa durante a pandemia, mas eu fiquei sem casa e com duas crianças”, lamenta.
O acampamento Quilombo Campo Grande foi criado em 1998, quando os trabalhadores da Usina Ariadnópolis, que falira dois anos antes, decidiram ocupar a área, pois afirmam não terem recebido as indenizações trabalhistas e passaram a viver do cultivo da terra. Desde que ocuparam a fazenda, já sofreram vários despejos — e vivem constantemente sob a ameaça de novas reintegrações de posse. Mas o movimento resistiu e hoje são 450 famílias acampadas na antiga área da usina. Cada família tem em média oito hectares de terra e a maioria não usa agrotóxicos e nem sementes transgênicas. Um orgulho dos acampados é o café orgânico Guaií.
A escola foi o primeiro alvo da ação; ontem ela foi desocupada, mas hoje terminou por ser destruída (Foto: Daniel Camargos/Repórter Brasil)
No final da tarde de quarta-feira, o governador Romeu Zema publicou no Twitter que a Secretaria de Desenvolvimento Social de Minas Gerais solicitou a suspensão do cumprimento da ordem judicial para reintegração de posse da área. O anúncio foi entendido como uma vitória pelo MST e ajudou a conter a tropa de policiais, que desejava avançar sobre as casas da área em disputa.
O anúncio chegou a ser comemorado pela principal liderança do MST, João Pedro Stédile, que publicou no Twitter: “Depois de mobilizar um batalhão inteiro, em tempos de pandemia, com seus cachorros e coquetéis judiciários, felizmente criaram juízo e suspenderam o despejo de Minas. Mais uma vez, nesta pandemia, foi a solidariedade e a humanidade quem venceu os genocidas!”
Contudo, menos de duas horas depois, o governador de Minas voltou a usar a rede social para explicar que o pedido da secretaria de governo havia sido feito na terça-feira (11) e que não foi aceito pela Justiça, reafirmando que os policiais cumpririam a ordem do juiz.
Moradores do acampamento protestam contra o despejo e contra o governador de Minas, Romeu Zema (Foto: Daniel Camargos/Repórter Brasil)
O novo anúncio aumentou o estado de alerta do MST, que quer impedir durante esta quinta-feira (13) o despejo das famílias da área que consideram controversa, no acampamento Irmã Dorothy (uma homenagem a missionária norte-americana assassinada em 2005, em Anapu, no Pará). Ao todo, são 11 acampamentos que formam o Quilombo Campo Grande.
Entre os que estão na iminência do despejo está Wellington Fagundes, que vive em uma casa com a esposa e os dois filhos, uma de 5 anos e um bebê de 10 meses. “Vieram policiais aqui e disseram que iam passar o trator em tudo e sacrificar meus animais”, afirma Fagundes. Ele e a esposa terminaram na semana passada de preparar cinco mil mudas de café para o plantio. “Quero com a terra dar para meus filhos o que eu não tive. Quero poder pagar uma faculdade para eles”, afirma.
O sem terra tem 42 anos e desde a infância trabalhou para fazendeiros do Sul de Minas. “Eu sofri demais. O pessoal fala que a escravidão acabou, mas quem trabalha nessas fazendas aqui da região é que sabe o que somos obrigados a fazer”, recorda.
‘Policiais disseram que iam passar o trator em tudo e sacrificar meus animais’, afirma Wellington Fagundes, com seu filho Pedro, de 11 meses (Foto: Daniel Camargos/Repórter Brasil)
A Usina Ariadnópolis teve seu auge na década de 1970, impulsionada pelo Proálcool (Programa Nacional do Álcool), do governo militar. Foi criada no início do século 20 pelo português Manoel Alves de Azevedo. Após a falência, em 1996, o empresário Jovane de Souza Moreira tenta reativar a usina. Para isso, fez um acordo com um dos maiores produtores de café do Brasil, João Faria.
O documento firmado prevê o arrendamento de parte dos 4 mil hectares da terra para o plantio de café, enquanto outra parcela seria destinada ao cultivo da cana-de-açúcar. O advogado da empresa, Diego Cruvinel, afirma que a futura produção na área gerará entre 100 e 150 empregos diretos.
João Faria plantou, em 2018, 18 milhões de pés de café, o que fez dele o maior produtor individual do grão do mundo. Porém, em 2019 a sua companhia Terra Forte entrou em recuperação judicial para evitar a falência com R$ 1,1 bilhão em dívidas.
A parceria entre Jovane e João Faria conseguiu suspender judicialmente um decreto do governo mineiro, que em 2014, havia autorizado a desapropriação da área da antiga usina para que ela fosse destinada à reforma agrária.
Enquanto Jovane e Faria vislumbram altas cifras, Cícero Mariano da Conceição Silva vive a ansiedade de perder a casa que vive há 10 anos com a família. Ele tem 1 mil pés de café plantados e uma plantação de bananeira na frente da casa que ele construiu com a esposa. “Eles estão avançando em cima de uma terra que não pertence a eles. É um injustiça. O único lugar que tenho é aqui. É minha casa e não tenho para onde ir”.
Cícero Mariano da Conceição, que cultiva café: ‘Não tenho para onde ir’ (Foto: Daniel Camargos/Repórter Brasil)
Para Jovane de Souza Moreira, o MST “faz um teatro”. Segundo ele, os acampados não viviam nas áreas alvo do despejo. “Não tinha gente lá. Eles não eram moradores. Foi um crime do MST colocar família lá”, respondeu ao ser questionado se seu lado religioso não se condoía ao promover um despejo em plena pandemia. Perguntado sobre a destruição da escola, ele respondeu que “doeu o coração”. “O MST está usando isso de forma cruel para manipular as pessoas”, afirmou.
Durante a ação de despejo, os policiais militares ficaram aquartelados na casa de Moreira, na sede da antiga usina. Um dos filhos de Jovane é pré-candidato a prefeito de Alfenas nas eleições deste ano.
O advogado da Usina Ariadnópolis, Cruvinel, afirma que foi tentado um acordo com os moradores da área. “Em audiência no ano passado, propusemos um acordo de produzir na área e empregar todos eles com carteira assinada. Eles poderiam, inclusive, ficar e produzir em uma área menor, e propusemos inclusive de comprar a produção deles, mas eles não aceitaram”, afirma.
Sobre o despejo acontecer em meio à pandemia, Cruvinel afirma que “uma invasão de terra é questão de segurança pública, um serviço essencial que não pode ser interrompido”. E complementa: “O risco que se coloca na pandemia com o despejo é o mesmo que eles já correm vivendo na área, já que eles não estão convivendo de forma isolada.” Cruvinel afirma ainda que não tomou conhecimento de um pedido de cancelamento que teria sido feito pelo governo do Estado e que foi feito um acordo na Justiça do Trabalho “e todas as dívidas trabalhistas [da usina] foram pagas”.
Procurada, a Prefeitura de Campo do Meio não se manifestou até a publicação deste texto.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Em meio à pandemia, sem-terra são despejados e têm escola destruída em MG - Instituto Humanitas Unisinos - IHU