A REPAM pede ação unitária para evitar uma tragédia humanitária e ambiental na Amazônia

Foto: Insituto Socioambiental | Prefeitura de Manaus

18 Mai 2020

Uma tragédia humanitária e ambiental é o grande perigo que a Amazônia enfrenta, um território de 33 milhões de habitantes, incluindo 3 milhões de indígenas de 400 povos diferentes, além de 120 povos em isolamento voluntário ou contato inicial. Para dizer a verdade, a região está ameaçada há anos, uma situação que se acelerou nas últimas semanas, o que pode levar a um colapso estrutural.

 

A reportagem é de Luis Miguel Modino.

 

Quem denuncia essa situação é a Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, que em 18 de maio divulgou um comunicado pedindo ação urgente e unificada. A situação está se tornando mais grave a cada dia, porque, apesar da evidente subnotificação do número de casos e mortes, na Pan-Amazônia, como a REPAM coleta todos os dias de dados oficiais, já existem mais de 70.000 infectados e 4.000 mortos, aumentando a cada dia mais nas regiões do interior, onde a população mais vulnerável vive e possui um sistema de saúde muito precário. Entre os povos indígenas, de quase 40 povos diferentes, existem cerca de 550 infectados e aproximadamente 120 mortos, com uma taxa de mortalidade que em alguns países chega a 28%.

 

A REPAM chama a participar dessa ação, “os povos indígenas da Amazônia, a sociedade civil da Pan-Amazônia e do mundo, a Igreja Católica e todas as denominações religiosas relacionadas ao cuidado da Criação, governos, instituições internacionais de direitos humanos, comunidade científica, artistas e todas as pessoas de boa vontade, para unir esforços em defesa da "Amazônia querida, com todo seu esplendor, drama e mistério" (QA 1), uma proposta que leva mais forte nestes dias em que estamos comemorando a Semana Laudato Si.

 

O documento, assinado pelos cardeais Claudio Hummes e Pedro Barreto, presidente e vice-presidente da REPAM, juntamente com seu secretário executivo, Mauricio López, alerta sobre a devastação que paira sobre a Amazônia como resultado da "pandemia de Covid-19 que atinge os mais vulneráveis e o aumento descontrolado da violência nos territórios”, denunciando que “a dor e o grito dos povos e da terra se fundem no mesmo clamor”.

 

O Sínodo da Amazônia transformou a Igreja em uma aliada dos povos indígenas, apoiando-os, agora também, que pensam em "construir seu futuro neste momento difícil da pandemia", adotando as palavras do cardeal Hummes. Essa atitude está sendo assumida por "uma Igreja que está arriscando a vida e acompanhando situações particulares", diz Mauricio López, nos diferentes países da Pan-Amazônia, detalhando no comunicado as diferentes realidades presentes na região, principalmente no que se refere aos povos indígenas, cujos direitos fundamentais não são respeitados: informações em seus próprios idiomas, insegurança alimentar, atendimento médico diferenciado, facilitando o retorno às comunidades, entre outros.

Mauricio López (Foto: Luis Miguel Modino)

Juntamente com o perigo da pandemia, a declaração da REPAM denuncia a presença do "vírus da violência e saques na Amazônia", onde "a mineração e o desmatamento ilegal em terras indígenas da região ainda estão em pleno andamento". Frente a essas e outras situações, como o derramamento de óleo na Amazônia equatoriana, os governos fecham os olhos, apoiando, como acontece no Brasil, medidas que favorecem a invasão de terras indígenas ou a extração de ouro na Guiana.

 

Seguindo as palavras do papa Francisco na Querida Amazônia, a declaração pede uma ação global em defesa da Amazônia, que promova o cuidado das pessoas e ecossistemas como algo inseparável. Isso não pode esperar, porque "estamos em um momento decisivo para a Amazônia e para o mundo", afirma a REPAM, que provoca dois caminhos possíveis, por um lado "a gestação de novas relações inspiradas na ecologia integral", e por outro, se nos deixarmos levar pelo medo, interesse ou pressão, "a perda dos sonhos do Sínodo".

 

Estamos em um momento de solidariedade planetária, nas palavras do papa Francisco, de apoiar "os povos indígenas da Amazônia, porque eles estão nos ignorando", conforme enfatizado por Gregorio Díaz Mirabal, coordenador da COICA. Trata-se de enfrentar uma situação que em muitos casos é causada "pela inação, pela irresponsabilidade, pela cumplicidade", diz o Secretário Executivo da REPAM, algo que, segundo ele, sempre "busca favorecer grupos de poder".

 

Por esse motivo, “a REPAM e a Igreja, fiéis ao chamado do processo sinodal, da exortação do papa Francisco, sentem-se chamadas a defender a vida, defender os direitos, defender os territórios, junto com os povos indígenas, sua cultura, sua diversidade, que sonha com uma Amazônia que seja uma canção de vida, que seja um mistério, mas também atendendo a tantos gritos dos pobres e da Irmã Mãe Terra ”, conclui Mauricio López.

 

Eis o comunicado.

 

Repam convoca para uma ação urgente e unificada a fim de evitar uma tragédia humanitária e ambiental

 

Colapso estrutural na Amazônia

 

Uma força enorme de proporções nunca vistas está devastando a Amazônia, em duas dimensões que se combinam de forma brutal: a pandemia de Covid-19, atingindo corpos vulnerabilizados, e o aumento descontrolado da violência sobre os territórios. A dor e o grito dos povos e da terra se fundem em um mesmo clamor.

 

“Os povos pediram que a Igreja fosse uma aliada, uma Igreja que estivesse com eles, uma Igreja que apoiasse o que eles decidem, o que eles pretendem e de que forma eles pretendem construir o seu futuro nesse momento tão difícil da pandemia” (Cardeal Dom Cláudio Hummes).

 

Nos diversos países da Pan-Amazônia, a Igreja está ecoando apelos e pedidos de socorro, num contexto que ameaça a sobrevivência desse bioma e de seus povos.

Cardeal Dom Cláudio Hummes (Foto: Luis Miguel Modino)

Na Bolívia [1], os povos indígenas denunciam o governo por falta de coordenação e de consulta na prevenção e combate à pandemia; destacam, inclusive, que todas as informações não são divulgadas nos idiomas originários reconhecidos pela Constituição.

 

Na Colômbia [2], os bispos reconhecem os esforços do governo, mas ressaltam que “os indígenas, camponeses e afrodescendentes são os grupos mais em risco, porque já se encontravam em situação de pobreza estrutural, em condições de insegurança alimentar e desnutrição, sem acesso à saúde e à água potável”.

 

A insegurança alimentar dos povos indígenas é uma preocupação também na Venezuela [3], onde esses povos sentem-se ameaçados pelo possível contágio por meio das atividades de mineração ilegal em seus territórios e a passagem por suas terras dos migrantes venezuelanos que voltam ao país. Os indígenas estão tomando medidas de isolamento e controle territorial, bem como de intensificação dos cultivos nos territórios locais, para garantir sua soberania alimentar.

 

No Brasil, 32 procuradores do Ministério Público Federal [4] declararam que “o cenário de risco de genocídio dos povos indígenas reclama ações emergenciais dos órgãos e entes públicos”. A Mobilização Nacional Indígena afirma que há “uma evidente intencionalidade do governo de impedir que o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena funcione” [5].

 

No Peru há preocupação pela situação de vários povos amazônicos – entre eles, muitos indígenas – que migraram para as cidades em busca de trabalho e se encontram totalmente desprotegidos. Os bispos da Amazônia peruana [6] exortam as autoridades a apoiar seu retorno às comunidades e a garantir que isso se cumpra conforme os protocolos estabelecidos pelo Ministério de Saúde.

 

A Aliança de Parlamentares Indígenas de América Latina pede que a Organização Mundial da Saúde recomende aos países da região a priorização de medidas específicas para garantir a proteção da vida dos povos indígenas diante da grave pandemia global.

 

A Coordenadoria das Nações Indígenas da Bacia Amazônia (COICA) solicita contribuições para um Fundo de Emergência da Amazônia, para proteger os 3 milhões de habitantes da floresta tropical que são vulneráveis ao novo coronavírus.

A Igreja Católica, por sua parte, vem fazendo muitos esforços, particularmente por meio das Cáritas de cada região, para contribuir com recursos materiais e econômicos, bem como com a solidariedade e o apoio espiritual.

 

O vírus da violência e do saque da Amazônia

 

No ataque devastador à Amazônia outro vírus continua ameaçando os povos e a floresta. A Frente Parlamentar mista para os Direitos dos Povos Indígenas no Brasil denuncia que “mesmo quando a pandemia freia a economia, o garimpo e o desmatamento ilegal em terras indígenas do continente permanecem a todo vapor” [7].

 

No Equador [8], a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) condena o rompimento do Sistema de Oleoduto Transequatoriano e do Oleoduto de Crudos Pesados, ocorrido no dia 7 de abril de 2020, que provocou um grave derrame de petróleo e afetou aproximadamente 97.000 pessoas que vivem à beira dos rios Coca e Napo.

 

Os 67 bispos da Amazônia brasileira associam a atual crise socioambiental desse bioma ao notório afrouxamento das fiscalizações e ao contínuo discurso político do governo federal contra a proteção ambiental e as áreas indígenas protegidas pela Constituição Federal. Já se vislumbra “uma imensa tragédia humanitária causada por um colapso estrutural” [9].

 

Os bispos denunciam, em particular, os projetos de lei para mineração em terras indígenas e medidas parlamentares que tentam definir uma nova regularização fundiária no Brasil, eliminando a reforma agrária, a regularização de territórios dos povos originários e tradicionais, favorecendo a grilagem de terras, o desmatamento e os empreendimentos predatórios, regularizando as ocupações ilegais feitas pelo agronegócio mineração em terras indígenas.

 

A mineração preocupa também o Policy Forum Guyana, que denuncia que as atividades extrativas destroem a floresta e a circulação de mineiros e caminhoneiros são um perigoso veículo de contágio para as comunidades do interior do país. A extração de ouro foi declarada atividade essencial pelo governo e, provavelmente, vai aumentar ainda, por causa da recessão provocada pela Covid-19 e o aumento do preço mundial deste metal.

 

Ao comentar o aumento preocupante da violência no campo, a Comissão Pastoral da Terra do Brasil (CPT Nacional) [10] afirma que, em 2019, a grande maioria dos assassinatos por conflitos rurais no país (84%) aconteceram na Amazônia.

 

Por estas denúncias, em vários contextos da Pan-Amazônia a Igreja vem sendo caluniada e atacada, como aconteceu recentemente com as vergonhosas e infundadas acusações, que repudiamos, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI – órgão do governo federal brasileiro) contra o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) [11].

 

Ação global em defesa da Amazônia

 

O cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis. A sabedoria dos povos nativos da Amazônia “inspira o cuidado e o respeito pela criação, com clara consciência dos seus limites, proibindo o seu abuso. Abusar da natureza significa abusar dos antepassados, dos irmãos e irmãs, da criação e do Criador, hipotecando o futuro”.

Os indígenas, “quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida”.
(Querida Amazônia, n. 42)

 

Encontramo-nos num momento decisivo para a Amazônia e para o mundo, tempo de gestação de novas relações inspiradas na ecologia integral, ou de definitivo enterro dos sonhos do Sínodo, se o medo, os interesses econômicos, a pressão dos detentores dos grandes capitais deixarem que se imponha cada vez mais forte o modelo desta “economia que mata” (EG 53).

 

O papa Francisco faz um chamado urgente à solidariedade planetária: “Este não é o tempo da indiferença (…), do egoísmo (…), da divisão (…), do esquecimento. Que a crise que estamos afrontando não nos faça deixar de lado tantas outras situações de emergência que trazem consigo o sofrimento de muitas pessoas” [12].

 

José Gregório Díaz Mirabal, membro do povo Wakuenai Kurripako, originário da Amazônia venezuelana e coordenador-geral da COICA, resume: “É um apelo dos povos indígenas da Amazônia, porque estão nos ignorando”.

 

A REPAM chama a uma ação unitária os povos indígenas amazônicos, a sociedade civil da Pan- Amazônia e do mundo, a Igreja Católica e todas as denominações religiosas preocupadas para com o cuidado da Criação, os governos, as instituições internacionais de direitos humanos, a comunidade científica, os artistas e todas as pessoas de boa vontade, para juntarem esforços em defesa da “Amazônia querida, com todo o seu esplendor, o seu drama e o seu mistério” (QA 1).

 

18 de maio de 2020.

 

Card. Claudio Hummes, OFM
Presidente

 

Card. Pedro Barreto Jimeno, SJ
Vice-presidente

 

Mauricio López O.
Secretário Executivo

 

Comitê Diretivo
Rede Eclesial Pan-Amazônica -REPAM

 

Notas

[1] Pronunciamiento de los pueblos indígenas de las tierras bajas de Bolivia frente a la emergencia sanitaria por el Covid- 19, 28.04.2020.

[2] Comunicado de los obispos de la Amazonía y Orinoquia colombiana - A las autoridades y a toda la ciudadanía de Colombia.

[3] Informações de Minerva Vitti - Centro Gumilla e Repam Venezuela.

[4] Covid-19: MPF recomenda ações emergenciais de proteção à saúde dos povos indígenas, disponível em neste link

[5] Nota: Mobilização Nacional Indígena exige medidas urgentes em defesa da saúde e da vida dos povos originários do Brasil.

[6] Comunicado de los obispos de los vicariatos apostólicos de los obispos de la Amazonía peruana - A las autoridades y a toda la ciudadanía del Peru, 22 de abril de 2020.

[7] Carta aberta da Frente Parlamentar Mista em defesa dos direitos dos povos indígenas ao Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, 05 de maio de 2020.

[8] REPAM Ecuador emite comunicado ante el grave derramamiento de petroleo en la Amazonía, disponível neste link.

[9] Nota dos bispos da Amazônia brasileira sobre a situação dos povos e da floresta em tempos de pandemia da covid-19

[10] Caderno de Conflitos no Campo 2019: memória de um ano de ascensão da violência e do ódio contra os pobres

[11] Nota da FUNAI, disponível neste link

 

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