13 Mai 2020
O que as missas pela internet dizem sobre a profundidade da reforma litúrgica pós-Vaticano II?
O comentário é de J. P. Grayland, padre neozelandês da Diocese de Palmerston North, na Nova Zelândia, há quase 30 anos, em artigo publicado por La Croix International, 06-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Covid-19 fez mais para animar o debate litúrgico do que qualquer outra coisa nas últimas décadas.
A vasta quantidade de material produzido na preparação da Páscoa foi surpreendente. Fazia muito tempo que eu não via tanta coisa que orientou, desafiou e questionou a nossa resposta litúrgica ao confinamento.
Foi como se a represa litúrgica que foi construída nos últimos 20 anos ou mais finalmente rompesse, e o debate internacional resultante tivesse revelou como é profunda a necessidade de uma reforma eclesial que permita que a vida litúrgica cresça e que o ministério floresça.
As missas online mostraram padres celebrando em igrejas vazias, e os fiéis, ajoelhados diante de seus aparelhos de TV.
Essas imagens levantaram questões importantes sobre a presença, a realidade e o significado dessas palavras quando aplicadas à participação litúrgico-eucarística em um ambiente virtual.
Elas me fizeram pensar sobre a profundidade da renovação paulina (isto é, a renovação litúrgica realizada por Paulo VI), dada a propensão a escorregar para os padrões rituais pré-Vaticano II – como a Comunhão espiritual – mais afins ao mundo do Missal de 1962.
Alguns padres falaram positivamente da sua experiência com as liturgias virtuais e se maravilharam por atraírem mais pessoas do que a sua congregação normal.
Isso também me faz pensar se algum dos conceitos-chave que usamos para descrever a liturgia paulina – encontro, mistério, comunhão, participação, refeição e presença – tem algum significado compartilhado no nosso léxico litúrgico.
Essa correspondência levanta muitas questões para mim em relação ao futuro daquilo que, nos últimos 50 anos, chamamos de liturgia. Aqui estão apenas algumas delas:
A práxis litúrgica será descrita em termos pré e pós-Covid?
E a missa online, que começou como uma resposta temporária, revela uma abordagem consumista ao culto e à oração?
A força motriz por trás das soluções litúrgicas da Covid é a necessidade de comunicação. Os católicos sabem inatamente que a liturgia é um meio de comunicação.
Lembro-me de um antigo provérbio Māori que diz: “Qual é a coisa mais importante do mundo? São as pessoas, são as pessoas, são as pessoas”.
A liturgia, no nível dos ritos, é uma comunicação simbólica estruturada. É um diálogo interpessoal e sensível – em muitos níveis – que usa símbolos e sinais para comunicar seu significado e propósito.
A comunicação litúrgica autêntica é essencialmente um diálogo, e os ritos são adaptados para que uma comunidade possa “se ver” refletida na sua práxis litúrgica. Como resultado, a autêntica adaptação litúrgica está sempre em curso, porque a comunidade está sempre em mudança.
Penso que a nossa necessidade de comunicação religiosa impulsionou o uso das plataformas de comunicação contemporâneas para as missas dominicais, e as igrejas ricas fizeram isso com facilidade.
À medida que as missas, os grupos e os ritos de oração se tornavam virtuais, e os e-mails religiosos diários duplicavam, o número de sites que ofereciam todos os tipos de “artigos litúrgicos” parecia aumentar.
As compras online e o culto online pareciam se fundir em uma coisa só, à medida que nos movíamos rapidamente para o “Modelo Amazon” de experiência religiosa. A liturgia se tornou outro produto online.
Eu suspeito que a força motriz e o desejo no início eram “manter a loja aberta e as luzes acesas”, mesmo quando em todo o mundo a Igreja era considerada um serviço não essencial, e as reuniões religiosas, potenciais riscos à saúde.
Nos Estados Unidos, além da vibrante cultura fast-food e de entretenimento do país, a confissão “drive-through” tornou-se operante, e a possibilidade de uma missa “drive-in” ou “drive-up” foi proposta, elevando a McDonaldização da Igreja a um novo nível.
Se a forma usual da missa dominical – não apenas o ritual, mas também o contexto, a apresentação e a participação – pode ser tão facilmente transferida online para um contexto virtual, onde a performance, o engajamento e a comunhão espiritual são “reais” o suficiente para que os espectadores “sintam” ou “saibam” que estão conectados e participando plenamente, então o que isso nos diz sobre as motivações usuais e a típica experiência dominical da assembleia e dos presidentes?
Se a participação eucarística virtual em um ambiente virtual é participativa o bastante, então estamos entrando em uma nova fase da renovação litúrgica pós-Covid, para a qual os conceitos litúrgicos e teológicos pós-conciliares são inadequados.
A questão, então, é se a participação litúrgico-eucarística virtual em um ambiente virtual é a nova forma de diálogo inovadora que cria comunidade, sustenta uma assembleia de louvor e define o ministério.
Nesse caso, a mediação sacramental também pode ser online, e a falta de padres é resolvida, com um padre em cada fuso horário para cada grupo de idiomas. E, se a língua vernácula for removida em favor de uma única linguagem universal, então um padre em cada fuso horário é o suficiente.
A necessidade de confissão e comunhão também poderia ser legislada com um requisito mínimo de uma vez por ano, talvez por volta da Páscoa, apenas para garantir que as pessoas se lembrem da parte da refeição da participação eucarística.
Por outro lado, se os fiéis não estão participando das missas online porque a realidade virtual não pode oferecer a presença e a participação físicas reais, então devemos reconhecer que há uma diferença qualitativa que os ambientes virtuais não podem oferecer.
Eles nos lembram que o culto tecnologizado pode suprir uma necessidade imediata, mas não pode alimentar a alma. Precisamos da presença imediata, e não virtual, assim como da participação consciente e ativa no culto eucarístico – pelo menos na tradição paulina.
Então, eu ainda tenho perguntas sobre a realidade virtual como uma realidade consistente com a mediação litúrgica. Embora a comunicação seja a chave da práxis litúrgica, nem todas as plataformas de comunicação são adequadas ao ato litúrgico, ao seu significado, à sua história e propósito.
O essencial para a prática litúrgica paulina é a participação plena, consciente e ativa da Igreja – clérigos e leigos – no mesmo ato de culto. Eu continuo convencido de que isso está faltando nas experiências eucarísticas virtuais.
Muitos concordariam que a Sacrosanctum concilium é o principal documento conciliar da reforma paulina, que molda a visão da oração litúrgica contemporânea.
Ela define a diferença entre as estruturas rituais dos Missais Romanos de 1962 e 1969, e como cada um entende o culto e o ministério litúrgico.
Dentro da Sacrosanctum concilium, eu sugeriria que a participação ativa (actuosa, plena et conscia participatio) é o princípio central que define a práxis litúrgica paulina, e esse princípio põe em questão o significado das missas virtuais e da sua celebração sem a presença física da assembleia.
A visão da Sacrosanctum concilium sobre a participação litúrgica ativa é compartilhada por toda a comunidade batizada (ordenados e leigos).
A participação ativa tem uma expressão interior por meio da presença e do silêncio. E tem uma expressão exterior por meio da escuta juntos, do canto juntos, da oração juntos, das oferendas ao altar e, por fim, da partilha da comunhão do Corpo e do Sangue do Senhor.
A participação ativa é a razão subjacente da revisão dos textos e do uso das línguas vernáculas.
No culto virtual, a participação ativa não pode mediar o equilíbrio entre os elementos imanentes e transcendentes da liturgia, como costuma fazer por meio das artes litúrgicas do movimento, do símbolo, da música, da postura e do gesto, todos elementos da participação litúrgica ativa.
A participação ativa expressa a realidade da assembleia litúrgica como sujeito da liturgia. Ao fazer isso, põe fim ao clericalismo pastoral e ritual que, desde a Idade Média, marcou a missa e a devoção eucarística popular.
A necessidade da participação litúrgica ativa é levantada em reuniões clericais online, quando o padre (ou os concelebrantes) cumpre todas as funções litúrgicas, enquanto a cantora e o organista fornecem a música e não parecem compartilhar a comunhão.
O avanço significativo na reforma paulina foi unir a oração litúrgica do padre e da assembleia em uma mesma oração entrelaçada. Os fiéis não vão mais “ouvir o padre dizer missa” enquanto rezam em paralelo.
A participação ativa é a ideia organizacional simples e poderosa que enquadra a liturgia na tradição paulina. Ela articula as inter-relações entre espaço, lugar, movimento, ritual, presença, assembleia e ministros.
A sua perda, através da atual crise, tem gerado uma reversão ao pensamento pré-conciliar, no qual a liturgia eucarística virtual é considerada participativa.
Eu ainda argumentaria que um ambiente virtual é um ambiente inadequado para a participação litúrgico-eucarística, porque a realidade ou a presença virtual é sempre virtual. O ambiente virtual é um ambiente simulado em que a interação é aparentemente real ou aparentemente física.
Estar online tem sido fácil para paróquias e comunidades tecnologicamente progressistas. Isso tem fornecido um conforto ritual. Mas pode ter levado à perda da maior tarefa de permanecer na luta, de permanecer junto do povo.
Eu suspeito que as missas online permanecerão até que os fiéis possam se afastar da sua confortável “missa de cinema”. Isso acontecerá quando eles intuírem que a liturgia exige mais de nós antropologicamente – como o trabalho de todo o povo, e não apenas alguns deles – do que podemos dar e receber digitalmente.
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A missa virtual veio para ficar? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU