13 Mai 2020
Nomeado relator especial das Nações Unidas para a Pobreza Extrema e os Direitos Humanos, o professor belga Olivier De Schutter analisa as causas da crise alimentar que faz estragos às margens da pandemia da Covid-19.
Olivier De Schutter, copresidente do Painel Internacional de Peritos em Sistemas de Alimentação Sustentáveis (IPES-Food), foi nomeado, em 1º de maio, relator especial das Nações Unidas para a Pobreza Extrema e os Direitos Humanos. Ele analisa o impacto da pandemia de Covid-19 sobre o acesso à alimentação.
A entrevista é de Mathilde Gérard, publicada por Le Monde, 12-05-2020. A tradução é de André Langer.
Vimos, nas últimas semanas, camadas da população perderem sua renda e mergulharem na fome. Podemos falar de uma nova crise alimentar global?
Sim. O paradoxo é que estamos em uma situação extremamente perigosa, embora a produção mundial de cereais e os estoques de alimentos estejam em um nível excelente. A safra 2019-2020 atingiu níveis recordes. Mas, a médio prazo, existe o risco de que o fornecimento seja posto em risco, e isso por várias razões.
Primeira, há restrições à liberdade de circulação da mão de obra agrícola. Muitos países da Europa Ocidental dependem de uma força de trabalho sazonal migrante, vinda principalmente da Romênia, Bulgária ou Polônia. Com o fechamento das fronteiras, o pior talvez ainda esteja por vir em termos de qualidade e suficiência da oferta e produção.
A segunda dificuldade é que, desde que as escolas foram fechadas e todo o setor de alimentação fora de casa entra em coma artificial, muitos produtores encontram-se impedidos de vender seus produtos, e os estoques se acumulam. Os pequenos produtores são as primeiras vítimas. Em trinta anos, vimos dois terços das propriedades rurais desaparecerem em países como a França ou a Bélgica. São os menores que desaparecem primeiro porque são os menos competitivos e os menos capazes de realizar economias de escala. Hoje, é um setor que está enfrentando as maiores dificuldades.
A terceira fonte de preocupação são as restrições às exportações anunciadas por alguns países, como Rússia, Ucrânia e Cazaquistão para o trigo ou o Vietnã para o arroz. Há uma dúzia de países, no máximo, e as restrições são relativamente modestas. Mas é preocupante se isso se prolongar. O risco é que voltemos ao que passamos em 2008 [durante os motins da fome em cerca de trinta países], com reações de pânico nos mercados, aumento das restrições às exportações e crescente especulação sobre os preços. Ainda não chegamos a essa situação, especialmente porque o petróleo está em um nível historicamente baixo e ainda não houve um aumento em massa dos preços dos produtos agrícolas; mas este não é um cenário a ser descartado.
Como explicar o aumento das filas para os bancos de alimentos nas principais cidades europeias ou americanas?
É dramático que em alguns países os bancos de alimentos tenham se tornado parte integrante da paisagem da proteção social. É inaceitável e escandaloso que os governos tenham se voltado para o setor voluntário, para a caridade pública, porque as famílias em grande pobreza não conseguem se alimentar decentemente. A alimentação é a parte do orçamento familiar mais rapidamente cortada, pois você pode comer por menos ou esperar na fila para receber uma cesta de alimentos. Mas o desenvolvimento de um setor de caridade alimentar não substitui os sistemas de proteção social que realmente protegem.
Você acha que os sistemas de produção agroalimentar são capazes de suportar a crise?
Muitos países estão percebendo que precisam produzir alimentos mais diversificados para atender às suas necessidades internas de consumo e que a dependência das importações just-in-time cria riscos. Estamos ouvindo cada vez mais apelos de reconquista não de uma autossuficiência, mas de uma diversificação e reterritorialização da agricultura, para que cada país possa satisfazer melhor as suas próprias necessidades.
Percebemos que devemos parar de querer a eficiência a todo custo e avançar rumo a mais resiliência. A eficiência é a uniformização, a especialização, as grandes monoculturas onde as máquinas substituem homens e mulheres e onde a produção em massa ocorre. A resiliência é uma produção muito mais diversificada e de circuitos curtos de comercialização. Estamos tomando consciência da fragilidade dos sistemas de produção globalizados nos quais nos baseamos e que foram incentivados nos últimos sessenta anos.
Você vê isso como um sinal de alarme para integrar melhor a saúde e, portanto, a alimentação, nas políticas públicas?
Estamos em um momento crucial, com uma verdadeira luta política se aproximando. Por um lado, ouvimos muitas vozes dizerem: as preocupações ambientais não têm lugar em um contexto em que temos de responder a uma crise econômica grave e sem precedentes desde 1929; portanto, vamos adiar nossas ambições ambientais, e não imponhamos novas restrições às empresas. E temos outro enfoque dizendo: esta é a oportunidade ou nunca orientaremos nosso sistema econômico para um desenvolvimento mais sustentável.
Se tomarmos toda a ajuda que os Estados membros da União Europeia vão conceder às empresas, os empréstimos do Banco Europeu de Investimento e o plano de recuperação europeu, teremos aqui 4.200 bilhões de euros que, nos próximos meses, serão injetados na economia real. É um quarto do PIB europeu, é muita coisa. Deveríamos usar esses recursos astronômicos para promover o esverdeamento da economia e subsidiar os setores que podem preparar a transição ecológica.
É difícil para os políticos reagir simultaneamente no curto prazo – para impedir que a economia entre em colapso, porque as falências corporativas se multiplicarão – e no longo prazo – para preparar, para dentro de dez ou quinze anos, a trajetória rumo a uma sociedade de baixo carbono e de emissões líquidas zero carbono até 2050. Mas esta é a hora para mostrar capacidade de visão.
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Crise alimentar: “Esta é a oportunidade ou nunca reorientaremos nosso sistema para um desenvolvimento mais sustentável” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU