27 Março 2020
"Só faz sentido para a esquerda mobilizar-se pelo impeachment se ele incluir também, no mínimo, a revogação da emenda do teto de gastos. Caso contrário, quem colocou Bolsonaro na presidência e agora tem vergonha dele, que o retire. Nossa tarefa prioritária, hoje, é a conscientização popular. Com ou sem Bolsonaro na presidência", escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, membro da Iser-Assessoria e da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política, 26-03-2020.
Eis o artigo.
O artigo de Bruno Rocha Lima, publicado no IHU de 24/03/20, toma como premissa que a necropolítica é a linha condutora do atual (des)governo brasileiro e propõe medidas econômicas e sociais capazes de imprimir outro rumo à sociedade brasileira. Embora algumas de suas afirmações possam ser questionadas, parece-me que ele vai ao ponto fulcral: ou são tomadas medidas radicais – perdoar dívidas de estados e municípios, revogar a emenda do teto de gastos, instituir a renda básica universal e outras – ou o ultraliberalismo econômico associado ao coronavirus provocará uma mortandade que nem podemos ainda calcular. Fica, porém, a questão: quem vai tomar essas medidas?
As pessoas que de fato mandam no Brasil e colocaram Paulo Guedes no comando da economia sob a proteção de Bolsonaro, dos militares e da mídia corporativa, parecem estar desconfortáveis diante das trapalhadas do presidente, mas tolerarão qualquer coisa enquanto ele mantiver seu programa de privatizações. Por isso, propostas para reverter a economia em favor dos setores empobrecidos dependem da capacidade política da esquerda, hoje sabidamente fragilizada. Elas só poderão prosperar se seus defensores e defensoras tiverem um amplo apoio popular. A questão é: como convencer esse povão sofrido mas conformado que outra política econômica é possível?
Aqui vejo a importância da educação política de massas. Durante os anos 70 e 80, as lutas sociais obrigaram diferentes setores da esquerda a produzir um pensamento capaz de dar conta da realidade e difundi-lo de modo a chegar até mesmo a quem nunca teve acesso à escola. Penso no meu campo de ação, a esquerda católica. Comunidades Eclesiais de Base, Pastorais Sociais, Pastorais da Juventude e ONGs de apoio – como os Centros de Defesa dos Direitos Humanos e Comissões de Justiça e Paz – se envolveram num amplo trabalho de conscientização que pode ser resumido em três perguntas: (i) qual é minha identidade social? (ii) como deve ser o mundo para meu grupo? e (iii) quem são nossos adversários e quem são nossos aliados nesse projeto? As respostas podiam ser mais ou menos sofisticadas do ponto de vista teórico, conforme a base de conhecimentos já existente nos grupos, mas ao final do processo – que não levava menos de três anos – as pessoas podiam cantar como Zé Vicente “de repente nossa vista clareou”. A partir dos anos 90, porém, o sucesso político do Partido dos Trabalhadores foi relegando a formação para o segundo plano. Como geralmente acontece em processos educativos, quando o aprendizado adquirido é suficiente para conquistar novos espaços, somos tentados a acreditar que já sabemos tudo que é necessário para a vida. Hoje, abrimos os olhos e constatamos o quanto o povo brasileiro regrediu na educação política popular...
Diante desse quadro, a crise atual pode ser uma boa ocasião para a retomada do processo de conscientização política em larga escala. Logo estará nas ruas o debate sobre o impeachment, porque já estão protocolados na Câmara dos Deputados quatro pedidos, um deles assinado por várias mandatárias e mandatários do PSOL, com o respaldo de personalidades do mundo intelectual e artístico. No mesmo sentido, vemos os principais grupos da mídia corporativa – Folha, Estadão e Globo – a marcar sua distância em relação a Bolsonaro: artigos, editoriais, análises críticas e divulgação dos panelaços nos jornais televisados deixam evidente seu desconforto. Dentro de alguns dias, esse será um tema de destaque nas redes digitais, abrindo-se a oportunidade para entrarmos no debate e mostrar que o impeachment não traz qualquer vantagem para as classes trabalhadoras se não for acompanhado por mudanças na política econômica, e tampouco serve aos Povos Indígenas se não mudar a direção da FUNAI. É essa discussão que realmente interessa à esquerda, porque contribui para a educação política popular.
Este é o ponto aonde quero chegar: só faz sentido para a esquerda mobilizar-se pelo impeachment se ele incluir também, no mínimo, a revogação da emenda do teto de gastos. Caso contrário, quem colocou Bolsonaro na presidência e agora tem vergonha dele, que o retire. Nossa tarefa prioritária, hoje, é a conscientização popular. Com ou sem Bolsonaro na presidência. A grande vantagem da inclusão da revogação da emenda do teto de gastos como condição para participação da esquerda nesse processo, é que ela coloca à luz do dia o objeto principal e sempre escondido da política: definir (i) quem paga impostos e quanto e (ii) quem decide sobre onde e como aplicar essa receita. Esta é a lição política deixada pelos barões ingleses que, há oito séculos, entenderam que o poder do monarca residia em sua capacidade de cobrar impostos e usá-los sem prestar contas aos súditos. Por isso ele foi constrangido a assinar a magna carta. Nosso desafio, hoje, é ajudar o povo brasileiro chegar ao mesmo entendimento. Se além disso nos livrarmos de Bolsonaro, Paulo Guedes, Moro e sua necropolítica, melhor ainda!
Leia mais
- O problema é que simplesmente não existe um sistema para evitar e combater pandemias. Entrevista especial com Rubens Ricupero
- Como se dará a evolução de Covid-19 na população que vive em condições precárias? Entrevista especial com Guilherme Werneck
- “Sem democracia, sem ciência, sem educação, sem renda, sem políticas sociais e sem direitos, seguiremos muito doentes”. Entrevista especial com Deisy Ventura
- “É preciso pensar em medidas que não são usuais, porque a situação não é usual”. Entrevista especial com Waldir Quadros
- Sem os cortes recentes na Saúde, enfrentamento da pandemia seria menos dramático. Entrevista especial com Fernando Pigatto
- SUS: elemento central para enfrentar a pandemia de coronavírus. Entrevista especial com Reinaldo Guimarães
- Coronavírus: a hora de debater o Teto dos Gastos
- Amanhã pode ser tarde demais para deter Bolsonaro
- Análise de conjuntura em tempos de guerra. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira
- Pandemia no Brasil sob o desgoverno Bolsonaro
- Brasil perdeu 'tempo precioso' e precisa 'agir rápido' na guerra contra coronavírus, diz especialista
- As faces da produção da morte. Liberalismo e necropolítica. Entrevista especial com Gabriel Miranda
- PEC Teto dos Gastos: uma perda bilionária para o SUS em 2019
- A embromação de Paulo Guedes. Artigo de José Luis Oreiro
- Bolsonaro e a necropolítica. Artigo de Erick Kayser
- A nova economia pós-coronavírus. Artigo de Alfredo Serrano Mancilla
- Política brasileira. A impossibilidade de representar o social e a tentativa de se reconectar com as lutas reais. Entrevista especial com Murilo Duarte Costa Corrêa
- PT 40 anos: Crise e derrota. Artigo de Tarso Genro
- Dez tendências da mídia que podem mudar com a pandemia
- Coronavírus começa a dobrar o governo
- A difícil escolha entre a liberdade e a morte (dos nossos avós!)
- Insanidade. É agora ou nunca?
- A loucura autoritária do Planalto, em plena crise do coronavírus, ameaça o trabalho no Ministério da Saúde
- Tuitadas. As reações ao pronunciamento do presidente na noite de ontem
- Economistas avaliam como ‘desconectadas da realidade’ medidas de Guedes para crise do coronavírus
- A necropolítica como regime de governo
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
E depois do Bolsonaro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU