21 Fevereiro 2020
"Distribuir riquezas por meio de tributos, como propõe economista francês, é importante. Mas para frear a produção de desigualdades e a devastação do mundo, é preciso novas relações de produção — como percebeu o próprio papa Francisco", escreve Gustavo Barbosa, advogado e professor substituto na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em artigo publicado por Outras Palavras, 19-02-2020.
O economista Thomas Piketty ganhou o status de rockstar após a publicação do livro O Capital no Século XXI, em 2013. Por meio de um referencial histórico, Piketty demonstra como desigualdades sociais insustentáveis fazem parte do roteiro do capitalismo, pondo em xeque os valores meritocráticos que sustentam ilusoriamente as democracias liberais. A obra faz com que o credo de que o livre-mercado gera riqueza para todos tenha um ar ainda mais anedótico, reforçado pelo fato dessa ideia ter surgido dos esforços de ampliar o soluço que compreende o período de 1945 a 1970. Os anos da chamada “era de ouro” do capitalismo, contudo, não passam de um ponto fora da curva, como o livro mostra com precisão quase que matemática.
“Politicamente, Piketty é bem-comportado, especialmente para o público americano, e talvez isso explique parte do seu sucesso. A proposta que faz para o problema da desigualdade está centrada na esfera da distribuição – tributos –, e não na esfera da produção – regulação direta”, critica Marcelo Medeiros, sociólogo, pesquisador do IPEA e professor da UNB no artigo Piketty e nós, publicado em maio de 2014 na revista Piauí. “Ele é bom para identificar o problema, mas não para encaminhar soluções”, conclui.
Piketty acredita que a natureza predatória do capitalismo pode ser domada por mediações políticas e institucionais. Para ele, a economia se submete à política, e não o contrário. Expoentes do socialismo utópico como Charles Fourier e Robert Owen também acreditavam que o problema da desigualdade social e suas mazelas se concentravam não na produção, mas na distribuição da riqueza. Foi com base em premissas como esta que pautaram suas intervenções políticas, na perspectiva de que bastava distribuir melhor para resolver o problema da desigualdade.
Esse diagnóstico estava evidentemente equivocado, apesar de ter, já no século XX, servido de inspiração a teóricos da socialdemocracia como Kautsky e Bernstein. Rosa Luxemburgo, contumaz adversária dos socialdemocratas, qualificou os socialistas utópicos como essenciais ao processo de amadurecimento político da agenda socialista. À sua época e ao seu tempo, tiveram sua importância para a organização da classe trabalhadora. Hoje, no entanto, “a volta às teorias socialistas pré-marxistas nem mesmo significa mais a volta aos gigantescos sapatos de bebê do proletariado, mas a volta aos chinelos minúsculos e gastos da burguesia”[1].
Responsável por expor os limites do socialismo utópico, o socialismo científico de Marx e Engels dissecou o modo de produção capitalista e explicou como funciona seu metabolismo, mostrando que o verdadeiro problema está não na distribuição da riqueza, e sim na sua produção. Esse novo ponto de partida chamou a atenção para a necessidade de demolição dos alicerces do capitalismo, fundado na propriedade privada dos meios de produção e na apropriação privada da riqueza coletivamente produzida, para que se torne possível um horizonte no qual os avanços da tecnologia sirvam a toda humanidade e não apenas ao 1% da população mais rica do planeta.
Isso significa que não importa o quanto a riqueza seja redistribuída – caridade, filantropia, taxação de grandes fortunas, etc -, pois o buraco é mais embaixo. Assim, querer diminuir a desigualdade sem lidar com o modo com que bens e serviços são produzidos é como tratar uma pneumonia com um antialérgico. É aí que se encontra parte da conclusão de que Piketty é radical ao apontar os problemas, mas moderado ao sugerir soluções.
Sob Francisco, a Igreja Católica parece ir além do economista francês. O documento Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema-econômico financeiro, de autoria da Congregação para a Doutrina da Fé, traz a conclusão de que a economia de mercado cria o potencial de uma vida boa à humanidade, mas não o entrega, pois se volta a automatismos e movimentos autorreferenciais que passam por cima das necessidades concretas das pessoas. A discussão, mais uma vez, se volta aos efeitos da produção capitalista na classe trabalhadora, que, despojada dos meios de produção, tem que vender sua força de trabalho para sobreviver. A mesma classe que permanece não tendo nada a perder, a não ser os seus grilhões.
Se os efeitos dessa economia são sentidos pela grande maioria das pessoas, é preciso levar essa problemática para a vida concreta delas, como aconselhou Marx em sua crítica ao Programa de Gotha. E isso passa tanto pelo rompimento com arroubos idealistas e distributivos como pela adoção de uma estratégia de ação política que se baseie não em idealismos, mas nas condições socioeconômicas concretas sob as quais se fundamenta nossa sociedade.
Vejamos a mundialização do capital, traduzida na globalização: na medida em que é um fato inegável, o mesmo não ocorre no mundo do trabalho, que se mantém predominantemente nacional. E com o agravante de que a concentração de poder econômico tem reflexo direto nas esferas de decisões políticas (ver nesse sentido o estudo Economic Inequality and Legislative Agendas in Europe, dos professores Derek Epp, da Universidade do Texas em Austin, e Enrico Borghetto, da Universidade Nova de Lisboa[2]) o que nos leva a conclusões semelhantes às de ninguém menos que Adam Smith em suas Leituras da Justiça, segundo o qual a escravidão de sua época não teria fim enquanto os detentores do poder econômico, proprietários de escravos, permanecessem dominando o poder político, pois “toda lei é feita pelos seus donos, os quais nunca vão deixar passar uma medida desfavorável a eles”.
Marx e Engels mostraram que não há democracia política sem democracia econômica. Tamanha concentração de renda é possível ao mesmo tempo em que o poder político não é democratizado. E vice-versa, uma vez que, como visto mais acima, é a economia que em regra condiciona a política. Há uma relação direta da crescente desigualdade social, evidenciada em obscenidades como o aumento do número de bilionários em tempos de crise – só no Brasil, foram de 42 para 58 entre 2017 e 2018 –, com o fato da classe trabalhadora, sub-representada em espaços como o parlamento, ver seus rendimentos caindo cada vez mais.
O filósofo francês Alain Badiou costuma afirmar que nosso maior inimigo hoje é a democracia. Isso por que, enquanto o capital age em suas margens, patrocinando golpes e implodindo soberanias nacionais para garantir os níveis de acumulação que julga adequados, a esquerda, na expectativa de enfrentá-lo, costuma se limitar às estreitas formas institucionais da democracia liberal (poder legislativo, ações judiciais, petições on-line). Se comporta, assim, como um boxeador que enfrenta seu adversário com uma mão amarrada às costas e depois não entende por que perdeu a luta.
Piketty cai nessa armadilha, não percebendo que, mais do que dourar as grades da gaiola, aumentar a quantidade de alpiste e colocar flores no poleiro, a quebra de suas grades é que deve ser o nosso fim se de fato queremos que não haja diques contendo todo o potencial criativo, emancipatório e libertário da humanidade. Caso contrário, resta a nós continuar na fantasia de tentar humanizar o desumanizável.
Notas:
[1] Reforma ou Revolução?, editora Expressão Popular, página 121.
[2] Economic Inequality and Legislative Agendas in Europe.
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As democracias engolidas e o erro de Piketty - Instituto Humanitas Unisinos - IHU