13 Fevereiro 2020
Os poetas, que narram a Amazônia, “contemplativos e proféticos”, ajudam-nos a “libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna”.
A reportagem é de Antoine Mekary e de Gelsomino Del Guercio, publicada por Aleteia, 12-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Nenhum sonho é inalcançável quando quem o suscita, ou o cultiva no coração, é o espírito de Deus.”
É um papa que sonha, mas que oferece sugestões concretas para mudar o destino da Amazônia. E, na exortação “Querida Amazônia”, ele também se confia à poesia para narrar a beleza violada do “pulmão verde do mundo”.
A primeira poesia citada pelo papa se liga à visão da vida que os indígenas têm. Uma visão muito diferente da nossa, “ocidental”.
“Sem diminuir a importância da liberdade pessoal – diz o papa –, ressalta-se que os povos nativos da Amazônia possuem um forte sentido comunitário. Vivem assim ‘o trabalho, o descanso, os relacionamentos humanos, os ritos e as celebrações. Tudo é compartilhado, os espaços particulares – típicos da modernidade – são mínimos’. (...) Estas relações humanas estão impregnadas pela natureza circundante, porque a sentem e percebem como uma realidade que integra a sua sociedade e cultura, como um prolongamento do seu corpo pessoal, familiar e de grupo”:
“Aquele luzeiro se aproxima
revolteiam os beija-flores
mais do que a cascata troa meu coração
com esses teus lábios regarei a terra
possa o vento jogar em nós.”
(Yana Lucila Lema, Tamyahuan Shamakupani [Com a chuva estou vivendo])
“Isto multiplica o efeito desintegrador do desenraizamento que vivem os indígenas – ressalta Francisco – forçados a emigrar para a cidade, procurando sobreviver, por vezes de forma não digna, no meio dos costumes urbanos mais individualistas e de um ambiente hostil. Como sanar um dano tão grave? Como reconstruir estas vidas desenraizadas? À vista desta realidade, é preciso valorizar e acompanhar todos os esforços que fazem muitos destes grupos para preservar os seus valores e estilo de vida e integrar-se nos contextos novos sem os perder, antes pelo contrário oferecendo-os como uma própria contribuição para o bem comum.”
A segunda poesia tenta escavar a vida do povo amazônico.
“Cada povo, que conseguiu sobreviver na Amazônia, possui a sua própria identidade cultural e uma riqueza única num universo multicultural, em virtude da estreita relação que os habitantes estabelecem com o meio circundante, numa simbiose – de tipo não determinista – difícil de entender com esquemas mentais alheios:
“Havia outrora uma paisagem que despontava com seu rio,
seus animais, suas nuvens e suas árvores.
Às vezes, porém, quando não se via em lado nenhum
a paisagem com seu rio e suas árvores,
competia a tais coisas assomar à mente dum
garotinho.”
(Juan Carlos Galeano, “Paisajes”, 2011)
“Do rio, fazes o teu sangue (…).
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem.”
(Javier Yglesias, “Llamado”, 2007)
“Os grupos humanos, seus estilos de vida e cosmovisões são tão variados como o território, pois tiveram que se adaptar à geografia e aos seus recursos. Não são iguais as aldeias de pescadores às de caçadores, nem as aldeias de agricultores do interior às dos cultivadores de terras sujeitas a inundações. Além disso, na Amazônia, encontram-se milhares de comunidades de indígenas, afrodescendentes, ribeirinhos e habitantes das cidades que, por sua vez, são muito diferentes entre si e abrigam uma grande diversidade humana. Deus manifesta-Se, reflete algo da sua beleza inesgotável através de um território e das suas caraterísticas, pelo que os diferentes grupos, numa síntese vital com o ambiente circundante, desenvolvem uma forma peculiar de sabedoria.”
A terceira poesia celebra o grande rio, “alma” da Amazônia. “A água – afirma o papa – encanta no grande Amazonas, que abraça e vivifica tudo ao seu redor”:
“Amazonas,
capital das sílabas d'água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
chegam-te rios como pássaros.”
(Pablo Neruda, “Amazonas”, 1938)
“Além disso é a coluna vertebral – sublinha o pontífice – que harmoniza e une: ‘O rio não nos separa; mas une-nos, ajudando-nos a conviver entre diferentes culturas e línguas’. Embora seja verdade que, neste território, há muitas ‘Amazônias’, o seu eixo principal é o grande rio, filho de muitos rios.”
A quarta poesia narra a importância dos versos para descrever uma dimensão dos lugares que a sociedade consumista tende a não levar em consideração.
“Os poetas populares – escreve Francisco –, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam. Estes poetas, contemplativos e proféticos, ajudam a libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna:
Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha,
das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...).
Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil,
do arado em tanque de guerra,
da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas,
de cuja sementeira brotam solidões.
A esse mundo, só a poesia poderá salvar,
e a humildade diante da sua voz.”
(Vinícius de Moraes, “A transformação pela poesia”, 1946)
A quinta poesia “ajuda a expressar uma dolorosa sensação que muitos compartilhamos hoje. A verdade ineludível – diz o papa – é que, nas condições atuais, com este modo de tratar a Amazônia, tanta riqueza de vida e de tão grande beleza estão ‘tomando o rumo do fim’, embora muitos pretendam continuar a crer que tudo vai bem, como se nada acontecesse”:
“Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se.
O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)
O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores.
Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar.
Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue.”
(Juan Carlos Galeano, “Los que creyeron”, 2011)
Na sexta e última poesia, Francisco explica que é preciso “apreciar esta espiritualidade indígena da interconexão e interdependência de todo o criado, espiritualidade de gratuidade que ama a vida como dom, espiritualidade de sacra admiração perante a natureza que nos cumula com tanta vida”.
No entanto, continua, “trata-se também de conseguir que esta relação com Deus presente no cosmos se torne cada vez mais uma relação pessoal com um ‘Tu’, que sustenta a própria realidade e lhe quer dar um sentido, um ‘Tu’ que nos conhece e ama”:
“Flutuam sombras de mim, madeiras mortas.
Mas a estrela nasce sem censura
sobre as mãos deste menino, especialistas
que conquistam as águas e a noite.
Bastar-me-á saber
que Tu me conheces
inteiramente, ainda antes dos meus dias.”
(Pedro Casaldáliga, “Carta de navegar [pelo Tocantins amazônico]”, 1986)
“De igual modo – afirma o pontífice –, a relação com Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, libertador e redentor, não é inimiga desta visão do mundo marcadamente cósmica que caracteriza estes povos, porque Ele é também o Ressuscitado que penetra todas as coisas.”
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As seis poesias citadas pelo Papa Francisco na “Querida Amazônia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU