10 Janeiro 2020
"Quando os ponteiros se juntam no alto do relógio, os fogos de artifício desenham na noite escura um cenário mágico de luzes e cores. Por toda a extensão da praia, a multidão compacta se extasia e aplaude", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM.
A meia-noite bate à porta. Réveillon ou virada de 2019 para 2020. Rios de gente, de todos os cantos, convergem para a orla marítima de Copacabana, Rio de Janeiro. Quando os ponteiros se juntam no alto do relógio, os fogos de artifício desenham na noite escura um cenário mágico de luzes e cores. Por toda a extensão da praia, a multidão compacta se extasia e aplaude. Os olhares se enchem com as mais variadas e coloridas fantasias. Promessas, sonhos e esperanças sobem ao céu juntamente com os pequenos balões onde estão escritos os desejos de milhares, milhões de pessoas. Termina um ano, outro se inicia – a vida recomeça.
Uma análise mais apurada, entretanto, não deixará de notar diferenças abissais, impactantes. Um retrato vivo da realidade brasileira das injustiças, assimetrias e desigualdades sociais. Um número reduzido e seleto, formado pelos que ocupam o pico da pirâmide social, assiste ao espetáculo de forma privilegiada. Os proprietários dos apartamentos de luxo, nos prédios que se estendem ao longo da avenida Atlântica, reúnem nas respectivas varandas amigos, familiares e parentes. Ali se confraternizam para a tão esperada festa da passagem. E ali, ao som de música privada e à vista de coleções de objetos exóticos, celebram o encontro e a ceia da virada. Esta, como se pode imaginar, vem sempre regada a vinho e champanhe de alta qualidade. Dali a magia dos fogos ganha uma panorâmica toda especial.
Lá em baixo, nas areias da praia, outro grupo mais numeroso, sem ser massivo, vindo das zonas intermediárias da pirâmide social, ocupa os chamados “cercadinhos vips”. São áreas isoladas na praia, com direito a mesas e cadeiras, a cargo dos donos de quiosques que vendem salgadinhos, bebidas e outras iguarias. Difícil falar em classe média ou coisa que o valha.
Representam, antes, profissionais liberais, corporações do serviço público, trabalhadores qualificados com emprego fixo e salário acima da média, pequenos empresários... O fato é que reúnem condições suficientes para arcar com a reserva do lugar por R$ 500,00. Por essa quantia, podem passar a festa numa privacidade ao mesmo tempo relativa e fictícia. Ali reúnem, eles também, os mais chegados, consomem o que oferece o comerciante e, bem ou mal, conferem um tom “exclusivo” e mais ou menos “excludente” à celebração festiva.
Por fim, espalhados por toda a extensão da praia, aglomera-se e disputa espaço, aos milhares e milhões, a imensa população de baixa renda. Gente que habita os andares inferiores da pirâmide social. Chega ali em grupos de familiares ou de vizinhos: vem a pé, de ônibus ou de carona. As pessoas carregam caixas de isopor, sacolas de víveres, crianças de colo ou puxadas pela mão, idosos que mal podem caminhar, cadeiras dobráveis e uma série de outros apetrechos para passar a noite. Entre eles, destacam-se os praticantes do candomblé, impecavelmente vestidos de branco, com suas ofertas à rainha dos mares, Iemanjá. Dos palcos profusamente iluminados e em particular para essa multidão em delírio, diversas bandas populares despejam aos brados uma variegada mistura de músicas, ritmos, danças e palavras!... A noite é dividida em duas partes: antes e depois dos fogos. Na primeira parte, em ceias improvisadas, realiza-se a partilha de “comes e bebes”, onde quase tudo se torna comum e sempre cabe mais um “à mesa”. Na segunda parte, uma descarga elétrica intensa e altissonante, vinda de violões, guitarras e baterias de percussão, sacode a euforia ritmada e frenética. Multiplicam-se os gestos de alegria, refazem-se laços rompidos e novas esperanças contagiam a tudo e a todos.
À medida que 2019 vai cedendo lugar a 2020, a música segue rolando em ritmo frenético. Ébria de sons e eufórica de risos, cada vez mais eletrizada, a massa humana desliza os pés pela areia. Rastros apagam pegadas anteriores e desenham outras. Toneladas de lixo se acumulam por toda a parte. Quando a aurora desponta e os garis começam a chegar para a limpeza, a multidão se converte células familiares ou indivíduos. Sonâmbulos e em ziguezague, buscam o caminho de casa!... Esperam-nos os embates duros e árduos de outros 12 meses.
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Retrato vivo da desigualdade social no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU