08 Dezembro 2019
Emenda aprovada pelos deputados goianos revoga lei que equiparava campos de murundus à categoria de Áreas de Preservação Permanente (APP); com tramitação-relâmpago, proposta institui licenciamento ambiental auto-declaratório em Goiás.
A reportagem é de Bruno Stankevicius Bassi, publicada por De Olho nos Ruralistas, 06-12-2019.
Campos de murundus. (Foto: Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro - Angá)
Na última terça-feira (03), foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego) o projeto de lei nº 7036/19, que flexibiliza o licenciamento ambiental no estado ao instituir a modalidade de Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC). De caráter auto-declaratório, o LAC dispensa a necessidade de emitir licenças prévias junto aos órgãos ambientais estaduais e/ou municipais.
O projeto teve tramitação acelerada no legislativo goiano, contando apenas treze dias entre sua proposição, discussão e votação em dois turnos, e não sofreu objeções por parte dos deputados. A única alteração em relação à proposta original, no entanto, tem um potencial devastador para a preservação do Cerrado goiano.
Trata-se da emenda proposta pelo deputado Virmondes Cruvinel Filho (Cidadania-GO), pré-candidato à prefeitura de Goiânia, revogando a Lei Estadual nº 16.153, de 26 de outubro de 2007, que equipara os campos de murundus, uma das vegetações típicas do bioma, à categoria de Áreas de Preservação Permanente (APP) para fins de licenciamento ambiental.
Os campos de murundus são paisagens que têm como principal característica a existência de pequenos montes, que podem chegar a 10 metros de largura e 2 metros de altura. Durante o período chuvoso, a área entre os “murundus” fica alagada, formando pequenas ilhas de vegetação, sendo essenciais para a recarga hídrica de cursos d’água e das bacias hidrográficas.
“Os campos de murundus, assim como todos os campos úmidos do Cerrado, são áreas com um solo orgânico bastante desenvolvido, dominado por gramíneas e arbustos”, explica Alexandre Bonesso Sampaio, doutor em Ecologia e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “As raízes finas facilitam a infiltração de água no solo e a recarga dos lençóis freáticos. [Os campos de murundus] são uma espécie de esponja, onde a água entra e forma reservatórios, abastecendo os cursos d’água mesmo no período de seca”.
Trilhas feitas pelo gado em campo de murundus na Terra Indígena Wedezé, no Mato Grosso. (Foto: James R. Welch/Funai)
De acordo com a plataforma MapBiomas, entre 1985 e 2018, o Cerrado perdeu 29 milhões de hectares de vegetação nativa, uma área equivalente ao Equador, convertidos majoritariamente em pastagens e monocultura de grãos. Apesar de não haver estimativa precisa sobre o desmatamento dos campos úmidos, este ecossistema é considerado extremamente vulnerável às mudanças no uso do solo.
Além do seu uso na pecuária extensiva, onde o solo vai sendo progressivamente pisoteado e compactado pelo gado, a conversão dos campos de murundus em áreas agrícolas têm sido cada vez mais frequente. Em 2015, um grupo de pesquisadores liderados pelo professor Helder Barbosa Paulino, da Universidade Federal de Goiás (UFG), publicou um estudo onde foram identificadas mudanças significativas nos atributos físicos, bioquímicos e na ecologia do solo após o aplainamento e drenagem destes campos, afetando sua produtividade agrícola.
Para Alexandre Sampaio, exemplos de outros países demonstram que essa conversão desperdiça tempo e recursos:
– Nos Estados Unidos, houve um investimento de décadas do governo para drenar a região do pântano preto (black swamp), no estado de Ohio, e conseguir instalar a agricultura em cima dessas áreas. Hoje estão voltando atrás, substituindo a agricultura por atividade de restauração, pois esse ‘pantanal’ estava ligado à região dos Grandes Lagos e os nutrientes provenientes dos adubos químicos passaram a eutrofizar a região, aumentando a incidência de algas tóxicas e causando um desastre ambiental sentido por toda sociedade. Esse caminho a gente já conhece, aconteceu nos Estados Unidos e aconteceu também na Europa. No futuro vamos gastar fazendo restauração de áreas que não deveriam ter sido desmatadas.
Os campos úmidos são também mais suscetíveis ao fogo no fim do período seco, quando as chamas conseguem se alastrar sob a superfície, queimando o solo orgânico. Este tipo de incêndio, conhecido como “fogo de turfa”, é de difícil combate. Em 2017, um incêndio na Área de Proteção Ambiental (APA) Cavernas do Peruaçu, no norte de Minas Gerais, destruiu 530 hectares de veredas, que ainda não foram restauradas.
“Ainda não sabemos recuperar o serviço ambiental que essas áreas úmidas proporcionam”, afirma Sampaio. “É comum no Cerrado descobrir cursos d’água que eram perenes e passaram a ser intermitentes. Pouco a pouco estamos tendo uma redução na disponibilidade de água. A questão é bem de base, precisamos comunicar para a sociedade da importância desse tipo de ambiente”.
De autoria do presidente da Alego, Lissauer Vieira (PSB), e do líder do governo goiano, Bruno Peixoto (MDB), o projeto que institui o Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC) antecipa a proposta federal que pretende flexibilizar as regras de licenciamento ambiental em todo país.
Em tramitação na Câmara há 15 anos, o projeto da lei (PL) 3729/04 está em sua quarta versão, sob a relatoria do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP). Criticada por ambientalistas, a versão apresentada pelo líder do Movimento Brasil Livre (MBL) rompeu acordos anteriormente firmados, definindo o LAC como regra para todos os empreendimentos que não causem significativo impacto e estendendo-o também para obras de ampliação e pavimentação de rodovias, consideradas de significativo impacto.
A proposta também dispensa a necessidade de licenciamento para atividades agropecuárias, extingue a responsabilização de instituições financeiras por dano ambiental e elimina a avaliação de impactos sobre áreas protegidas. Segundo reportagem da Agência Pública, Kataguiri admitiu ter sofrido pressão do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e do presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Alceu Moreira (PMDB-RS).
Em entrevista ao jornal O Popular, a secretária de Meio Ambiente de Goiás, Andréa Vulcanis, declarou apoio à proposta de auto-licenciamento sem fiscalização prévia. “Tem inúmeros empreendimentos que passam por toda uma estrutura complexa de análise, como acontece nos empreendimentos de significativo impacto, e que na nossa visão não têm necessidade, porque já se sabe qual é a situação daquela atividade”, afirmou. “Se eu já sei qual é o impacto do empreendimento, a gente antecipa as condicionantes que ele precisa atender e fiscaliza depois. Quem descumprir, aí sim rigor nas penalidades”.
O projeto, incluindo a emenda que retira o status de APP dos campos de murundus, segue agora para análise do governador Ronaldo Caiado (DEM), interessado direto no “licenciamento flex”. Fundador e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Caiado é dono da empresa Rialma, que aguarda há anos as licenças para instalação de sete pequenas centrais hidrelétricas na região da Chapada dos Veadeiros. Uma delas, no território quilombola Kalunga.
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Projeto de lei em Goiás antecipa ‘licenciamento flex’ e retira proteção de campos essenciais ao Cerrado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU