04 Dezembro 2019
Os brigadistas voluntários de Alter do Chão – distrito do município de Santarém, no oeste do Pará -, Gustavo Fernandes, 36, Daniel Gutierrez Govino, 36, Marcelo Aron Cwever, 36, e João Victor Pereira Romano, 27, deram neste domingo (1º) sua primeira coletiva à imprensa após a liberdade, ocorrida na quinta-feira (28). Eles ficaram presos preventivamente na Penitenciária Agrícola Silvio Hall de Moura, onde tiveram os cabelos raspados, sob acusação da Polícia Civil de suspeita de atear fogo na Área de Proteção Ambiental (APA) Alter do Chão e desviar recursos de organizações não-governamentais internacionais.
A reportagem é de Fábio Zuker, publicada por Amazônia Real, 01-12-2019.
Diante dos jornalistas, eles estavam vestidos com as camisetas amarelas da Brigada de Alter do Chão, estampadas com o símbolo indígena de um sapo, o Muiraquitã. Emocionados, tiveram que fazer pausas em diversos momentos para dar prosseguimento às respostas dadas aos jornalistas de diferentes veículos – locais e nacionais.
“Parece até um filme. Uma ficção. E isso não é nada. O que vale é a nossa inocência. O sofrimento da família. Dos amigos. Os nossos”, disse Gustavo Fernandes, durante um dos momentos da conversa dos brigadistas com a imprensa.
Frente a um processo policial pouco transparente, com provas frágeis e repleto de conclusões a partir de trechos isolados de escutas telefônicas, o sentimento geral durante a coletiva deste domingo era de que os brigadistas estavam ali, finalmente, sendo ouvidos. De que poderiam apresentar a sua versão dos fatos. Repetiam com frequência terem sido alvo de uma injustiça. Reclamaram de terem sido julgados por notícias e fake news antes mesmo de poder se defender. Apresentaram, por fim, confiança na expectativa de que tudo se esclareça o mais rápido possível.
Ficou claro de início que eles não fariam menções a áudios e interceptações, pois correm em segredo de justiça. Segundo a assessoria de imprensa da Brigada de Alter do Chão, áudios interceptados serão devidamente contestados na esfera judicial.
Os quatro foram soltos após o juiz Alexandre Rizzi, da 1ª Vara Criminal de Santarém, reanalisar sua própria decisão, que mantinha a prisão preventiva por mais dez dias. O magistrado determinou a liberdade provisória dos quatro depois que foi informado pelo delegado que presidia o inquérito, Fábio Amaral Barbosa, de que a análise dos documentos apreendidos – entre eles, aparelhos de celulares e mídias eletrônicas – demandaria mais tempo do prazo determinado para conclusão do inquérito, o que provocaria “constrangimento ilegal” aos presos.
O juiz também aceitou os argumentos dos advogados de defesa de que os brigadistas já prestaram depoimentos, possuem residência e ocupação fixa.
O delegado Fábio Amaral foi afastado das investigações pelo governador Helder Barbalho, e substituído pelo diretor da Delegacia Especializada em Meio Ambiente, Waldir Freire.
A coletiva teve início com uma declaração de Daniel Gutierrez, agradecendo o apoio que receberam, nacional e internacionalmente: “deram um apoio muito importante para a gente, neste momento de injustiça. Não está sendo fácil para gente”. Em seguida, Gutierrez explicou o que é a brigada.
“A missão da Brigada de Alter do Chão é a proteção da floresta. É o combate ao fogo, claro. Mas a gente trabalha também com prevenção e educação. E a gente trabalha também com articulação política, de atores públicos de Alter do Chão e Santarém. A gente existe por causa do 4º BPM de Santarém [4º Grupamento Bombeiro Militar]. Trabalhamos lado a lado com a prefeitura, com a SEMA [Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará], com a administração de Alter do Chão. E A gente só quer continuar nosso trabalho e voltar a nossa vida normal”, complementou Daniel.
A primeira pergunta, feita por mim, foi sobre o depoimento que prestaram em Santarém à Polícia Civil, e se eles tinham sido informados de que eram, também, investigados.
Brigadistas de Alter do Chão se abraçam, em momento de comoção na coletiva
(Foto: Fabio Zuker | Amazônia Real)
Daniel Gutierrez então respondeu que recebeu uma mensagem por Whatsapp de um delegado da Polícia Civil solicitando sua presença.
“Nós fomos lá, e não só fomos, como levamos tudo o que a gente tinha para colaborar com as investigações. Deixamos com eles material de fotos. João e eu somos fotógrafos. A gente faz imagem durante o incêndio porque não é qualquer um que tem coragem de ir até lá. Então a gente precisa mostrar o que está acontecendo lá. Levamos esse material, e sempre colaboramos com a investigação”, contou Gutierrez.
O brigadista afirmou que a conversa com o delegado era de colaboração e que em nenhum momento os policiais disseram ou mesmo sinalizaram que eles poderiam ser acusados de algum crime.
Daniel Gutierrez, que trabalha com turismo e é fotógrafo, contou que no dia 14 de setembro estava na Floresta Nacional do Tapajós, no município de Santarém, fotografando um barco e seu proprietário. Ao regressar para a Vila de Alter do Chão deparou-se com uma imensa coluna de fumaça vinda da APA.
Marcelo Aron Cwever, por sua vez, estava com amigas, passeando de barco e acompanhando a procissão do Çairé, a festa tradicional da vila de Alter do Chão. Foi almoçar com elas em Pindoball [praia nas proximidades na Flona Tapapós], e só ao voltar tomou conhecimento do incêndio.
João Victor Pereira Romano lembrou que estava em sua casa quando avistou fumaça e se impressionou com o seu tamanho, muito superior ao tipo de focos de incêndio que vinham até então combatendo.
Gustavo Fernandes sequer estava no estado do Pará. Disse que participava das celebridades do casamento de um parente de sua namorada, em Batataes, cidade do interior de São Paulo.
No curso da investigação da Polícia Civil, imagens de fogo foram utilizadas no inquérito para incriminar brigadistas pelo incêndio. No entanto, conforme explicaram os brigadistas neste domingo, se trata de uma técnica usual conhecida como “fogo contra fogo” e que faz parte da prática de combates a incêndio na Amazônia.
Brigadistas em ação de combate ao fogo, em Alter do Chão (Foto: Brigada Alter do Chão)
“É uma técnica muito utilizada nos Estados Unidos devido aos incêndios de grandes proporções. É muito eficaz. Porém, tem que ter muito cuidado. A pessoa responsável por aplicar o fogo tem que ser a mais experiente. As pessoas tem que ter um conhecimento bom para fazer isso. Inclusive porque se algum brigadista tiver dentro da área, vai coloca-lo em risco de vida. É um caso extremo. O último caso”, afirmou João Victor Pereira Romano.
João confirmou que esta técnica foi utilizada durante as ações dos brigadistas de Alter do Chão de combate ao incêndio e que eles possuem um vídeo na conta de Instagram da brigada mostrando o uso, por um membro do corpo de bombeiros especializado em incêndios florestais do 4º Grupamento Bombeiro Militar.
A técnica que pode parecer assustadora para quem não a conhece, no entanto, é respaldada inclusive pelo Corpo de Bombeiros. Eles contaram que chegaram a fazer um curso sobre a técnica ministrado pelos bombeiros.
Responsável pelo Instituto Aquífero Alter do Chão, Marcelo Aron Cwever explicou como funciona a parceria que a organização possui com o WWF-Brasil, rebatendo a versão da Polícia Civil do Pará.
Uma das linhas de investigação da Polícia do Pará, conforme informou o delegado José Humberto Jr. na ocasião da prisão dos brigadistas, era de que a ONG firmou um contrato com o WWF para vender 40 imagens para uso exclusivo por R$ 70 mil. Desta forma, ainda segundo o delegado, o WWF conseguiu doações do ator Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil. O ator norte-americano é um ativista ambiental e possui uma fundação de apoio à organizações de proteção ao meio ambiente em várias partes do mundo.
“O WWF firmou parceria técnico financeira. Foi repassado para nós o valor de 70 mil reais. O contrato foi assinado dia 02 de outubro para fazermos a compra de equipamentos. Essa é a única relação que a gente tem com um organismo internacional, que é a WWF. Eles repassam dinheiro para a gente, e a gente faz a compra de equipamentos”, disse Cwever.
Ele comentou ainda que existe um termo de cessão de imagens, anexo ao contrato de doação, e que faz parte das regras da parceria firmada. “São imagens que já foram cedidas a diversos veículos da imprensa, e também foi feito para que fosse cedido a eles”, explicou.
Esse mesmo esclarecimento já havia sido dado pelo próprio WWF em nota oficial, tão logo ocorrera as prisões dos brigadistas. Na nota, o WWW confirmou que fez um contato de Parceria Técnico-Financeira com o Instituto Aquífero Alter do Chão para a viabilização da compra de equipamentos para as atividades de combate a incêndios florestais pela Brigada de Alter do Chão, no valor de R$ 70.654,36.
Marcelo também reiterou que o Instituto Alter do Chão não recebeu doações do ator Leonardo Di Caprio, mas que a organização realizou duas campanhas coletivas na internet para arrecadar fundos para suas atividades; a primeira delas ocorreu no mês de julho.
“A gente realizou duas campanhas de arrecadação veiculadas nos nossos próprios meios de comunicação e redes sociais, principalmente Instagram. A primeira foi para realização do curso [dos brigadistas] em agosto”.
A segunda campanha foi para equipar os brigadistas formados no curso, já que eles sequer tinham equipamentos de proteção individual. Segundo Marcelo, as doações vieram principalmente de pessoas físicas.
“Foram doados valores desde pequenas somas até somas que nos surpreenderam. A gente faz prestação de contas para Receita Federal, com a assessoria de um escritório de contabilidade profissional de Santarém, e presta conta aos financiadores”, explicou.
Na tarde deste sábado, o ator norte-americano postou uma nota em sua página no Instagram dizendo que sua fundação não financia as organizações “que estão atualmente sob ataque”, referindo-se ao WWF e às organizações de brigadistas de Alter do Chão. No entanto, ele falou que elas “certamente merecem apoio”.
Um dos trechos da nota de Di Caprio diz: “Continuo comprometido em apoiar as comunidades indígenas brasileiras, governos locais, cientistas, educadores e público em geral que estão trabalhando incansavelmente para garantir a Amazônia”.
Em um dos momentos mais emocionantes da coletiva, João relatou seu receio quando eles tiveram os cabelos cortados pelos policiais. Ele nunca o tinha tão longo como estava nos últimos tempos. João relatou que quando lhe rasparam sua cabeça e de seus amigos na entrada da cadeia Cucurunã, ele só conseguia pensar se sua filha, de dez meses, iria reconhecê-lo. Apesar do primeiro choque ao receber o tratamento, eles contaram que não houve qualquer tipo truculência na ação da polícia.
Os quatro brigadistas João, Daniel, Marcelo e Gustavo deixam a Penitenciária Agrícola Silvio Hall de Moura, em Santarém.
(Foto Marizilda Cruppe/Colabora)
Conforme o relato de Marcelo, no dia da prisão, a polícia chegou muito cedo em sua casa. Seus filhos e esposa ainda dormiam.
“Achei que fosse algo acontecendo na rua e que os policiais estavam entrando para me pedir auxílio. Minha casa fica [em área] isolada, e já aconteceu de servir como base para alguma coisa”, contou.
No entanto, Marcelo logo compreendeu que a presença da polícia em sua residência era por outro motivo quando os policiais informaram que haviam arrombado o portão e que eles estavam com um comunicado que se tratava de um mandado de busca e apreensão no curso da “Operação Fogo do Sairé”.
“Achei que era um mandado de busca e apreensão para obter informação de forma mais ostensiva. Só depois de colaborarmos bastante com entrega de senha e documentos, enfim, tudo que eles pediam, que nos foi comunicada a prisão preventiva. Foi estarrecedor pensar que a gente estaria sendo acusado de um crime ambiental, sendo que tudo que a gente faz, e não é de agora, de muito tempo, é auxiliar o meio ambiente, é proteger o meio ambiente. Foi extremamente revoltante, entender que a gente era suspeito, e pior, preso de surpresa, sem nem saber por que direito. Por conta de uma coisa completamente oposta àquilo que a gente acredita”, relatou Marcelo.
Testemunha do relato de Marcelo, Gustavo se emocionou. “Para mim, pessoalmente, o cabelo não é nada. Perto de, pela primeira vez, ter sido algemado, primeira vez ter sido colocado numa injustiça enorme. Então tudo fica muito irrelevante, perto de você ter sido colocado em custódia, tendo a certeza absoluta de que aquilo é irreal. Parece até um filme. Uma ficção. E isso não é nada. O que vale é a nossa inocência. O sofrimento da família. Dos amigos. Os nossos”. Conclui: “a gente espera ser inocentado, o mais rápido possível”.
Após a liberdade e a chance de esclarecer os fatos, Marcelo Aron Cwever acredita que agora é possível uma defesa boa e fácil. “É muito fácil quando você tem a verdade do seu lado”.
Daniel Gutierrez fala que o desejo maior deles é voltar à vida normal e aos trabalhos, o que não é possível agora. “Não estamos nem vivendo um dia após o outro. Estamos vivendo doze horas após doze horas”, disse Daniel, que também demonstrou preocupação com a sua segurança.
“Fake news e ataques de pré-julgamento nos estão colocando em risco. O portão da minha casa foi arrombado. Nada de mais grave aconteceu, mas foi arrombado. A gente recebe ameaças diárias nos grupos de whatsapp de Alter do Chão. Isso dá muito medo. Para o futuro da brigada, a gente queria continuar, só isso”.
João contou que o treinamento nos bombeiros foi de combate ao incêndio, e que existem outros cursos de perícia de incêndios florestais. “Porém a gente ainda não tem esse curso. Era algo que a gente vislumbrava para o futuro. Eu, particularmente, gostaria muito de me formar como perito de incêndio florestal para contribuir, se fosse o caso”, disse ele.
O brigadista relatou também como foi a chegada no dia 14 de setembro, para inciar o combate ao incêndio.
“Fomos com a Polícia Militar no combate. A gente se preocupou com o nosso papel, que é apagar fogo. E eles fizeram uma ronda, já observando se havia algum indício. Mas a gente não teve tempo nem de conversar sobre isso. A gente estava tão focado em acabar com esse fogo. Todo dia que íamos pro combate, a gente achava que ia acabar aquele dia. E foi durando quatro dias, apagando o fogo”, relatou João.
Os brigadistas também foram questionados pelos jornalistas se concordavam com a versão de que eles teriam sido vítimas de armação por alguém que pretendia incriminá-los, mas eles preferiram não aprofundar por não terem informações sólidas. “A gente só quer retornar a nossa vida normal, de verdade”, disse Marcelo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O que vale é a nossa inocência”, dizem brigadistas de Alter do Chão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU