03 Novembro 2019
Entre 16 e 18 de outubro, no município de Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba, 400 filhos de agricultores do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra estiveram reunidos em um evento. Um dos atos programados foi uma visita à Assembleia Legislativa do Paraná para discursar e entregar aos parlamentares um documento sobre a violência da qual são vítimas.
A reportagem é de René Ruschel, publicada por Carta Capital, 03-11-2019.
“Sabemos que há muitas ameaças de despejo. Isso tem de parar, porque nossa família está lá”, afirmou o pequeno Anderson. Guilherme, acampado em Ortigueira, contou: “Tem muito tempo que a gente vive lá, mas agora tem passado até helicóptero por cima, e nós, crianças, estamos com medo. Mas é lá que eu quero viver”.
Os dias e noites das 16 mil famílias acampadas no interior do Paraná têm sido de medo e apreensão. Nos dez meses de governo, a polícia do governador Ratinho Júnior, do PSD, promoveu sete despejos que atingiram cerca de 500 famílias. O oitavo, no município de Alvorada do Sul, em uma área de 692 hectares pertencente ao Grupo Atalla e declarada pelo Incra como “latifúndio improdutivo” desde 2008, está prestes a ocorrer.
A maioria dos acampamentos tem, no mínimo, dez anos de existência. Alguns passam de três décadas. Neste tempo, os sem-terra expandiram a produção de arroz, feijão e milho, entre outros, que geram emprego e renda. Grande parte da produção de alimentos sem uso de agrotóxicos e insumos sintéticos é produzida nas áreas ocupadas. São milhares de toneladas com produtos orgânicos que deixariam de ser entregues nos mercados e escolas públicas do estado.
O despejo pela força só intensifica o conflito, a violência e a miséria. Os trabalhadores resistem, pois não têm para onde ir. Veem-se obrigados a abandonar suas casas, deixar a família ao relento, perder a produção que garante o sustento, deixar para trás, em questão de horas, tudo o que foi construído em anos ou décadas de trabalho. O único destino será voltar às periferias das cidades para engrossar os bolsões de miséria.
Segundo Roberto Baggio, da Direção Nacional do MST, a atitude do governo estadual é um crime inaceitável. “Estão destruindo vidas, exterminando o futuro de crianças e jovens. São anos, décadas de trabalho para construir o sonho de ter um pedaço de terra. Nossa proposta é buscar, em conjunto com o Ministério Público, o Poder Judiciário e os vários setores da sociedade organizada, uma solução para regularizar estas áreas, a fim de garantir o mínimo de dignidade às famílias.”
Em resposta, a assessoria do governo paranaense afirma que as decisões foram tomadas pela Justiça e não pelo Poder Executivo. E que “seguirá firmemente empenhado em mediar os conflitos no campo de forma harmônica, ouvindo todas as partes, sempre com foco no respeito aos direitos humanos e aos preceitos legais”.
Durante a campanha eleitoral, Ratinho Jr. recebeu o apoio maciço do agronegócio e do sistema cooperativo do estado. Na solenidade de instalação da comissão para mediar os conflitos agrários, ligada diretamente ao seu gabinete, afirmou que seu governo “trabalha para todos, mas em especial para as pessoas invisíveis que a sociedade não enxerga e, acima de tudo, aquelas que não têm força para pedir ajuda”.
A desocupação da comunidade José Rodrigues, localizada no município de Laranjal, a 420 quilômetros de Curitiba, é o protótipo do que acontece no resto do estado. Em 2010, o governo federal declarou a área de 852,9 hectares, até então improdutiva e totalmente desabitada, como de interesse social para a reforma agrária. Em 2016, as 54 famílias foram instaladas e começaram o trabalho de produção de alimentos.
Não adiantou o pedido do prefeito Josmar Moreira Pereira, do PSL, partido do ex-capitão Bolsonaro, para a Justiça suspender o despejo. Segundo Pereira, em um município com pouco mais de 6 mil habitantes, a produção do acampamento é de fundamental importância para a economia. Um estudo feito pela prefeitura de Laranjal aponta que os acampados produziam 1,2 mil litros de leite por dia, além da criação de aves e suínos.
Em 2019, foram colhidas na área 7,5 mil sacas de milho e quase 2 mil de feijão, além da produção de mandioca e hortaliças – vendida no comércio local. Ainda de acordo com o levantamento, a renda média mensal das famílias era de 1,3 mil reais. Para um município carente, com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (0,585), o fim do acampamento foi um duro golpe.
A onda de despejos tem sido criticada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Em nota, a CNBB cita a frase do papa Francisco para que não haja “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos e nenhuma pessoa sem a dignidade que provém do trabalho”. Os católicos pedem a reversão dos despejos, “tendo em vista que essas famílias estão há muitos anos trabalhando, produzindo agricultura de subsistência, educando os filhos e construindo comunidades em áreas pertencentes a grandes devedores da União ou do estado que eram tidas, anteriormente, como improdutivas”.
A bronca da Igreja Católica é que Ratinho descumpriu um acordo firmado poucos dias antes do despejo com uma comissão da CNBB. Na audiência realizada no Palácio Iguaçu, na qual compareceram sete bispos, firmou-se o compromisso de o governo rever as ações de despejos e fortalecer a Comissão Estadual de Mediação de Conflitos Fundiários, por ele criada, além da instalação da Vara de Justiça para Mediações de Conflitos Fundiários. O despejo dos acampados de Laranjal ocorreu justamente no dia em que a comissão iria se reunir. Para o MST, o governo estadual deveria elaborar um diagnóstico e apresentar propostas e soluções para a regularização das terras.
Ao contrário da nota e do discurso de campanha, o governador parece ainda não ter encontrado tempo para ouvir com atenção o lamento dos desvalidos. Talvez seja culpa da estridência dos grandes proprietários de terras.
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Governo do Paraná desaloja 500 famílias e ameaça outras 16 mil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU