03 Outubro 2019
O ganho de arrecadação com os impostos sobre grandes rendas e grandes patrimônios deve ser usado para reduzir as alíquotas dos tributos sobre folha de pagamento e consumo, além de ajudar na formação do fundo de desenvolvimento regional. Dessa forma, teremos um sistema tributário mais justo, eficiente e alinhado com a realidade internacional, sem aumento da carga tributária. A análise é publicada pelo Observatório da Economia Contemporânea, reproduzido por Le Monde Diplomatique, 27-09-2019.
Guilherme Mello é e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAM.
O debate sobre a reforma tributária, atualmente em pauta no Congresso Nacional, talvez seja a maior oportunidade que teremos nos próximos anos de realmente mudar o Brasil. O sistema tributário brasileiro é injusto, complexo e retira competitividade de nossa economia. Além disso, ele se encontra totalmente desalinhado das boas práticas internacionais, com um peso excessivo de impostos sobre consumo (que afetam mais fortemente a renda dos mais pobres), pequena participação de impostos sobre as grandes rendas e patrimônios, além de nenhum incentivo relevante na direção da sustentabilidade ambiental.
A proposta em discussão na Câmara (PEC 45) tem como foco a simplificação da estrutura dos impostos sobre o consumo. A criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) na proposta, simplificará a vida dos contribuintes, contará com poucas tarifas e exceções, garantirá maior transparência dos valores arrecadados, evitará a cumulatividade de alguns tributos (tributo cobrado sobre tributo), reduzirá a judicialização do tema tributário e tem o potencial de amenizar os conflitos federativos, como a guerra fiscal (ou seja, a concessão de benefícios fiscais para empresas se instalarem em alguns estados menos desenvolvidos).
Alguns temas presentes na proposta, no entanto, merecem revisão. A ideia de unificar tributos federais (IPI, PIS e COFINS), estaduais (ICMS) e municipais (ISS) em um único tributo retira a competência tributária de estados e municípios, além de misturar contribuições, impostos sobre mercadorias e imposto seletivo em um único IVA. Mais simples e prático seria manter a separação de competência e tipo de tributo: Uma contribuição federal sobre valor adicionado (CSVA) que unifique PIS/COFINS, de competência federal; um IVA que unifique ICMS e ISS, de competência compartilhada entre estados e municípios, com a possibilidade de consórcio entre os municípios de maior porte para cobrança de um IVA na esfera municipal; e a manutenção de impostos seletivos federais, como o próprio IPI e uma contribuição ambiental. Preserva-se assim as competências, as vinculações de recursos para seguridade, saúde e educação, ao mesmo tempo em que se avança na simplificação e eficiência, já que o CSVA e IVA terão poucas alíquotas e isenções, cobrança no destino, plena utilização dos créditos tributários e mesma base ampla de incidência.
A criação de um IBS único cria outros dois desafios: a forma de devolução de impostos para os mais pobres e a forma de restabelecimento de mecanismos de desenvolvimento regional. Atualmente, o ICMS tem sua alíquota definida para cada bem, o que causa uma imensa complexidade, mas permite a desoneração de bens essenciais consumidos pelos pobres. Com o IBS essas desonerações acabam, sendo necessário pensar em um mecanismo simples de devolução do imposto para os pobres, sob a pena de elevar a sua tributação e, consequentemente, a regressividade do sistema tributário.
Neste sentido, a proposta presente na PEC 45, de devolução a partir da apresentação de notas fiscais eletrônicas, não é factível na atual situação do Brasil, onde o comércio informal é relevante e o desenvolvimento tecnológico não é universalizado. Mais simples seria devolver automaticamente, de maneira graduada, o valor pago de IBS para os participantes do Cadastro Único (CADÚnico), por meio de um cálculo de seus gastos com bens básicos. Outra opção seria a desoneração da cesta básica e medicamentos essenciais até que as condições para a utilização da nota fiscal eletrônica estejam dadas.
Do ponto de vista do desenvolvimento regional, a mudança no critério de cobrança do IVA para o destino (diferente do ICMS, que majoritariamente é cobrado na origem), anulará gradualmente os efeitos da guerra fiscal, em particular quando acabar a fase de transição dos velhos para os novos tributos. A guerra fiscal é comprovadamente uma forma ineficiente de política de desenvolvimento regional, no entanto é uma das poucas formas que esses estados dispõem. A formação de um fundo de desenvolvimento regional robusto, que permita aos estados mais pobres manterem incentivos e/ou investirem de outras formas os recursos, visando atrair investimentos, empresas, empregos e inovação, é uma condição fundamental para o sucesso da proposta de reforma dos tributos indiretos.
Mesmo que resolvido esses problemas, a PEC 45 segue não enfrentando a regressividade de nosso sistema tributário, tampouco contribuindo para a transição ecológica, fundamental para o futuro do Brasil e do planeta. Nesse sentido, a proposta da Reforma Tributária justa e Solidária (RTS), formulada por auditores fiscais e pesquisadores de diversos centros, contempla a preocupação com simplificação dos tributos indiretos, mas avança sobre o tema da progressividade e da transição ecológica.
Na proposta da RTS, não há aumento da carga tributária, mas uma mudança fundamental na composição dos tributos: o aumento da participação dos tributos sobre renda e patrimônio e a redução do peso dos impostos sobre consumo e folha na carga tributária total. Essa mudança ocorre devido as reformas no imposto de renda (IR), incidente sobre pessoas físicas e jurídicas (respectivamente IRPF e IRPJ) e na reformulação de alguns impostos sobre patrimônio. No caso do IRPF, propõe-se a reformulação da atual tabela, de modo a tornar o imposto mais progressivo, reduzindo a tributação sobre rendas baixas e médias e aumentando para rendas muito altas.
Além disso, um tema central é a volta da tributação sobre distribuição de lucros e dividendos, atualmente isentos e que fortalecem o fenômeno da “pejotização”, ao tributar as rendas do trabalho muito mais do que as rendas do capital. No IRPJ, a proposta consiste em extinguir a modalidade de “lucro presumido”, assim como a categoria de “juros sobre capital próprio” (uma particularidade brasileira que reduz a tributação sobre o lucro das empresas), eventualmente reduzindo algumas alíquotas de tributação sobre o lucro real. A possibilidade de compensação entre os valores pagos na empresa (IRPJ e Contribuição Social sobre Lucro Líquido – CSLL) e na pessoa física (distribuição de lucros e dividendos) deve ser pensada, no sentido de equalizar a tributação sobre rendas do trabalho e do capital.
Além das mudanças na tributação sobre a renda, também estão sugeridas mudanças nos tributos sobre patrimônio, como grandes heranças, grandes fortunas, Imposto Territorial Rural (ITR) e Impostos sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). Em todos os casos, as mudanças miram o patrimônio dos muito ricos, que atualmente pagam quase nada sobre seu estoque de riqueza. Para o ITR, além do mais, pensou-se em uma forma de cobrança que incentive o uso produtivo da terra e a preservação do meio ambiente, de forma a tornar o imposto um elemento da transição ecológica. No caso do IPVA, apesar de simbólico do ponto de vista da arrecadação, a tributação sobre lanchas, iates e helicópteros corrige uma injustiça tributária presente hoje no imposto.
O ganho de arrecadação com os impostos sobre grandes rendas e grandes patrimônios deve ser usado para reduzir as alíquotas dos tributos sobre folha de pagamento e consumo, além de ajudar na formação do fundo de desenvolvimento regional. Dessa forma, teremos um sistema tributário mais justo, eficiente e alinhado com a realidade internacional, sem aumento da carga tributária. A questão ambiental também será endereçada, seja mediante alterações no ITR, seja através da criação de uma contribuição ambiental sobre atividades que degradam o meio ambiente, financiando pesquisas e setores produtivos ambientalmente sustentáveis.
A estrutura tributária brasileira pouco avançou nas últimas décadas, mesmo depois de tentativas de reforma frustradas no parlamento. A recente formação de um amplo consenso acerca da necessidade de reforma da tributação no Brasil não pode ser desperdiçada focando-se apenas no tema da simplificação. É fundamental que aproveitemos essa percepção generalizada para realizar a reforma tributária que o Brasil precisa: justa, solidária e ecológica.
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.
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Reforma tributária solidária: uma oportunidade para mudar o Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU