27 Setembro 2019
"O cidadão eleito para governar não governa em interesse próprio, mas que ele renuncie seus anseios particulares em nome dos interesses em comum provindos da sociedade, do clamor do povo", escreve Frei Vitor Vinicios da Silva, ofm, professor de Filosofia e livre pesquisador na área de Antropologia Filosófica.
Assistimos no último dia 7 de setembro o tradicional desfile cívico-militar das várias instituições, órgãos e setores que compõe a nação brasileira. O desfile é em memória ao grito da independência realizado por Pedro de Alcântara (D. Pedro I durante o primeiro reinado), neste mesmo dia, em 1822 marcando o fim do domínio português. A imagem pulverizada nas estampas de
muitos jornais e posts nos meios sociais não foram as entidades civis, escolas públicas, associações ou órgãos da segurança pública, mas a foto que marca ou melhor retrata a política brasileira atual.
A foto desenhada nos mais diversos meios foi a do presidente do executivo, Jair Bolsonaro, com seu vice tendo ao lado o Bispo Edir Macedo e o empresário Silvio Santos. Indo além de um olhar ingênuo de uma criança podemos, por meio da foto, descrever o atual governo e o projeto posto em ordem. A foto apresenta três esferas sociais que formam o atual governo -
religião, forças armadas e empresariado. Esses três setores tem interesses divergentes, mas em algum ponto eles convergem e a grande missão do líder do executivo é harmonizá-los, missão difícil para o capitão.
O ponto nevrálgico entre os três setores é a religião, pois por meio dela serão capazes de realizar a grande pseud-panaceia que prometem a sociedade civil. Já dizia Rousseau que a religião e a política têm um objetivo em comum e uma serve de instrumento a outra, basta saber qual. O jogo é fácil para quem já está acostumado a brincar no “Roda a Roda” aos domingos, se inicia construindo um denominador comum para a luta. Ora, toda batalha pressupõe-se os inimigos e os super-heróis. Assim, determinaram: os inimigos serão a imoralidade, a corrupção, a depravação, a corrupção, as ideias antifamilias e outros mais que tenham afinidades com o mesmo. Entretanto, não bastava apenas declarar os inimigos, mas tiveram que construir uma base
sólida para a retórica, ou seja, as pessoas têm que comprar o discurso com convicção que aquilo que estão falando é real, é verdadeiro e pode destruir, por exemplo, a sua família.
Sendo assim, é nesse momento que a religião se sobrepõe aos demais. Ao comercializar esse discurso já previam que alguns poderiam desacreditar ou não dar tanta importância aos fatos, mas se delegassem ao imortal a pauta política grande parte da sociedade assumiria o discurso. Assim, nasce o integrismo brasileiro com o fim de beneficiar os três setores: a religião onde
afirmará a subserviência de seus leigos aos líderes e não a Deus, o empresariado que aproveitará da teologia mercantilista e as forças armadas que sempre recolhem seus benefícios de tabela.
O integrismo, segundo M. Rodinson, é uma palavra inventada nos princípios do século XX que designa a aspiração de resolver, pelo meio da religião, todos os problemas sociais e políticos e, ao mesmo tempo, a integralidade dos dogmas de fé, segundo uma determinada religião. Dentro desse arcabouço teórico-verbal que cotidianamente ouvimos, podemos perceber nas entrelinhas o que sustenta o projeto. Como exemplo, podemos analisar os diálogos publicados pelo site “The Intercept Brasil”, em que, por mais que há criticas sobre o meio aplicado para obtenção de tais diálogos o que importa tanto para o jornalismo como para o leitor é o conteúdo e não os meios que elas chegaram.
Pois bem, em um dos diálogos vemos que o procurador do Ministério Público Federal, Deltan Dallagnol, em uma reflexão consigo mesmo diz: “Precisaria me dedicar bastante a isso e me programar. Para aumentar a influência, precisaria muito começar uma iniciativa de grupos de ação cidadã. Dois pilares seriam: grupos de ação cidadã em igrejas e viagens’ [sic]”. Por
outro lado, temos uma resposta à uma pergunta de Dallangol em conversas trocadas no telegram, em que, a procuradora Luciana Asper Valdir, escreve: “Entendo vc perfeitamente! Penso exatamente como vc. E confio plenamente que Deus o guiará em todos os caminhos. Vc ouvirá a voz Dele e Ele te colocará onde Ele precisa para continuar no caminho de restauração do que deveria ser está nação que Ele agraciou com tantas bênçãos e foi tão maltratada pelos líderes até hj. Eu confesso que peço todos os dias a Deus para colocar o poder neste país nas mãos dos filhos Dele, verdadeiros cristãos que queiram dar a prosperidade planejada para este Brasil’ [sic]”.
Esses dois fragmentos são apenas alguns entre os muitos que podemos retirar dos discursos proferidos via mídia por vários representantes do governo. Nesse discurso acima, como também no slogan: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, vemos nitidamente aquilo que chamamos de integrismo. Contudo, o que não previram (ou pode ter sido proposital) é que essa ideia de colocar um deus de uma determinada religião na testa de uma sociedade democrática acarretaria intolerância teológica e civil. Em uma sociedade democrática o deus, de nenhuma religião, pode ter direito sobre os demais cidadãos, e muito menos sobre os outros deuses das demais religiões. Essa ideia de superioridade ou de deus único e verdadeiro deriva de anos como
Rousseau demonstrou no contrato social – “[...] o próprio Moisés e seu povo consideravam, é verdade, como nulos os deuses dos cananeus, povos proscritos, destinados à destruição e cujo lugar deveriam ocupar”. Em outras palavras, acreditavam que os outros deuses deveriam submeter ao deus do povo Hebreu”.
Em uma sociedade democrática respaldada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 1º, na qual deixa claro o direito a liberdade individual, liberdade de expressão e outras liberdades que devem ser tidas como direitos pátrios seria um absurdo tal ajuste. É dever do Estado resguardar o direito participativo de todo e qualquer cidadão, sendo ele de outra crença, ateu, indígena, negro, LGBTQI+ e demais. O cidadão eleito para governar não governa em interesse próprio, mas que ele renuncie seus anseios particulares em nome dos interesses em comum provindos da sociedade, do clamor do povo. Enfim, que esse processo se estanque antes que instauremos, como no passado, um dos despotismos mais violentos dos tempos. Nas palavras de Rousseau, que aquele que “[...] ouse, contudo dizer 'Fora da Igreja não há salvação', deve ser banido do Estado, a menos que o Estado não seja a Igreja e que o príncipe não seja o pontífice”.
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Fora da Igreja não há salvação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU