19 Setembro 2019
O primeiro gesto do homem fora do Jardim do Éden é o da violência fratricida com a qual nasce o princípio da responsabilidade.
A culpa de Caim abre a narrativa bíblica da entrada do homem na história. O primeiro gesto do homem fora do Jardim do Éden é o da violência fratricida. Freud também afirmava isso: na origem da vida não está o amor, mas o ódio. A violência não é apenas uma maneira de agir, mas é acima de tudo uma tentação. Enquanto o pensamento se estrutura no pano de fundo do reconhecimento da impossibilidade de governar plenamente a inquietação da vida, a ilusão de violência é aquela de atingir com um único golpe a realização dos nossos desejos. Isso acontece nas relações intersubjetivas, como nas relações entre estados ou entre grupos étnicos. A solução da violência se assemelha à da alucinação; é uma negação do caráter doloroso e insuportável da realidade quando esta não coincide com nossas expectativas: trata-se, então, de eliminar o obstáculo, o inimigo, o intruso, o disforme.
O comentário é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 12-09-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O gesto de Caim ensina que a violência não é, de forma alguma, o resultado de uma regressão do humano ao reino animal. De fato, não existe tentação à violência no mundo animal, porque naquele mundo a violência não está relacionada ao desejo, mas ao instinto. Não existe, a rigor, possibilidade de crime no mundo animal. Aquele mundo é regulado apenas pela força afirmativa do instinto de vida que não conhece a tentação da violência, mas apenas seu uso necessário. O crime, ao contrário, só vem a existir com o homem. É o caráter originário que o logos bíblico atribui ao gesto de Caim. Esse gesto traz consigo um profundo mistério. De fato, estamos acostumados a pensar que a violência seja uma proteção diante da presença do inimigo, que surja de nosso impulso originário de confundir – como diria Freud - "o estrangeiro com o hostil". O ódio é, nesse sentido, sempre mais antigo que o amor, porque encarnaria a primeira reação do homem em relação ao Outro que perturba ou ameaça os limites de sua identidade. No entanto, o relato bíblico parece desestruturar esse esquema. A de Caim não é uma violência que atinge o estrangeiro, mas alguém que tem nosso mesmo sangue. Não é violência contra o invasor ou o inimigo jurado, mas contra o irmão. E o ponto mais escabroso do relato bíblico: Caim (o assassino) tem o mesmo sangue que Abel (o assassinado).
Somos então obrigados a introduzir outra aparência do estrangeiro; não o estrangeiro que vem de lugares distantes, que vive além de nossas fronteiras, mas aquele que mora em nossa própria casa. Um estrangeiro que não está fora, mas dentro de nós. Por que Caim atinge seu irmão até a morte? No texto bíblico, relata-se que ele não podia suportar o amor que Deus mostra por seu irmão, não podia suportar não ser o único. Seu gesto revela a matriz invejosa e narcisista da violência humana. A violência que é desencadeada contra o mais próximo e não contra o estranho, contra o irmão e não contra o inimigo, traz consigo a marca indelével de inveja, porque o invejado nunca é o desconhecido, mas aquele que gostaríamos de ser sem o conseguir, nosso ideal inatingível.
A inveja, de fato, é sempre dirigida àquele que é como nós, mas têm ou é mais do que nós; é sempre inveja pelo similar e não pelo diferente; o invejado encarna o ideal inconfessado do invejoso. E é precisamente esse ódio invejoso que arma a mão de Caim. Ele não tolera que Deus tenha recusado os seus dons para preferir aqueles de Abel; não suporta a vida do irmão, que parece mais viva e mais reconhecida que a dele. O gesto de Caim revela que a irmandade nunca é - como, de fato, o próprio processo de filiação - um evento de sangue. Não existe irmandade biológica. O que significa que não existe irmandade sem reconhecimento de nossa responsabilidade para com o irmão. Depois de matar Abel, Caim se vê confrontado com a pergunta peremptória do Senhor: "Caim, onde está Abel, teu irmão?" O fratricida inicialmente rejeita toda responsabilidade: "sou eu guardador do meu irmão?". Este é o ponto: sem a assunção subjetiva da responsabilidade em relação ao irmão, não ocorre nenhum sentimento de fraternidade.
Somos então obrigados a inverter o pressuposto naturalista da irmandade para afirmar que Caim só pode adquirir o título de "irmão" somente após seu crime e a admissão de sua imperdoável culpa, ou seja, somente após assumir a responsabilidade por seu próprio ato. É essa responsabilidade que traz a irmandade para a história, subtraindo-a da ilusão da terra e do sangue. É por essa razão que Deus põe fim aos enganos de uma irmandade fundada sobre a inveja narcísica, protegendo Caim daqueles que o gostariam morto. Onde existe uma comunidade humana, a natureza especular da violência fratricida deve ser interrompida. A marca que Deus coloca em Caim impede que o assassino seja assassinado em uma repetição sem fim de violência fratricida para indicar o horizonte de uma irmandade não fundada na inveja narcísica, mas no compartilhamento da responsabilidade.
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E Caim deu início à realidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU