12 Setembro 2019
"O cargo de Procurador-geral da República para ter sentido não pode ser privilégio de nenhuma doutrina. Trata-se de uma atividade “geral”, dirigida ao país, não a uma tendência hegemônica. O “geral” do cargo liga-se ao enunciado da “vontade geral” definido por Rousseau: ele não se refere à maioria dos cidadãos, mas ao que mais atende à vida coletiva", escreve Roberto Romano, filósofo e professor da Universidade Estadual de Campinas, em artigo publicado por O Estado de S. Paulo, 10-09-2019.
E ele pergunta: "Foi correta a decisão do presidente da república de indicar um ausente da lista tríplice? Mas se a opção dos pares é recusada, o que justifica a escolha por uma entidade religiosa?".
No Brasil atual são esquecidas noções simples da atividade pública. Vivemos algo batizado por E. Durkheim como “anomia”, palavra grega significando “Nomos” (regra, lei). Um país sem normas segue para a desagregação ética. No Estado republicano há hierarquia de funções e regras. Em nossa terra a hierarquia é corroída, perde-se a responsabilidade política.
Sendo didático: um gari ao cuidar de praças e ruas não pode escolher se limpa as vias habitadas por ateus, protestantes, católicos, budistas, espíritas, evangélicos. Todos têm direito aos calçamentos varridos. Se um grupo de vizinhos de certa confissão religiosa ou política pressiona para que seu espaço seja melhor cuidado do que os demais, atenta contra o bem coletivo.
Na via ascendente para os prefeitos, governadores, o sumo magistrado da república não vigora o direito de exigir trato diferenciado para sua grei. Parece óbvio, mas sempre tivemos o contrário do ideal republicano. O nosso Estado praticou o privilégio católico com sua pauta ética e moral repressiva, contrária às demais confissões cristãs e não cristãs.
A própria existência no extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de uma Delegacia de Cultos mostra o quanto as religiões minoritárias (umbanda, espiritismo e outros) sofreram nas mãos clericais prazerosamente instaladas nas festas cívicas entre as autoridades civis, militares, religiosas.
O ápice de tal poder ocorre na ditadura Vargas quando a Igreja domina ministérios (o da Educação especialmente), reprime e censura as artes, impõe formas de ver o mundo. Nenhuma autoridade assumia o cargo sem vassalagem à doutrina dos bispos. Com muita luta, bases liberais e democráticas foram assumidas após a Constituição de 1946. Os protestantes ganharam espaço social e político. Graças aos movimentos carismáticos aumentou o número de seus adeptos, o que lhes trouxe força política.
Hoje, com um número imenso de estações de rádio, televisões, jornais, partidos políticos às suas ordens, setores evangélicos são tentados a assumir o papel antes usufruído pelos católicos. Pautas morais similares às dos bispos comandados por Roma se espalham pelo país.
Os católicos proibiam a democracia liberal, as formas heterodoxas de casamento e sexualidade, as artes livres, a imprensa idem. Evangélicos (hoje unidos aos católicos conservadores) retomam a repressão em nome da ética cristã, desejam impor regras assumidas por seus fiéis para toda a sociedade.
O cargo de Procurador-geral da República para ter sentido não pode ser privilégio de nenhuma doutrina. Trata-se de uma atividade “geral”, dirigida ao país, não a uma tendência hegemônica. O “geral” do cargo liga-se ao enunciado da “vontade geral” definido por Rousseau: ele não se refere à maioria dos cidadãos, mas ao que mais atende à vida coletiva.
Foi correta a decisão do presidente da república de indicar um ausente da lista tríplice? Mas se a opção dos pares é recusada, o que justifica a escolha por uma entidade religiosa? A Anajuris não representa a vontade geral ou todos os setores religiosos nacionais. E mesmo que representasse, a sua pressão em prol do Sr. Aras retoma o intolerante poder teológico politico, não mais exercido pelos católicos mas por líderes protestantes.
O lobby exercido pela Anajuris terá consequências na vida pública brasileira, sempre frágil e ameaçada pelos que defendem seus interesses acima dos demais. Assistimos o avanço de privilégios anômalos que desgraçam a sociedade submetida a leis. Estas últimas devem ser válidas para todos e cada um dos cidadãos, sem privilégios.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Roberto Romano: ‘República ou privilégios?’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU