01 Agosto 2019
"Por que a liberação parcial do FGTS, programada por Paulo Guedes, terá efeito quase nulo sobre a economia. Como o ministro foi vencido pelo setor imobiliário e por Onyx Lorenzoni, na definição da medida", escreve Paulo Kliass, economista, em artigo publicado por Outras Palavras, 30-07-2019.
O episódio recente de liberação de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) dá bem a medida de como são tomadas as decisões de política econômica no interior do governo do capitão. Todos devem se lembrar muito bem de como o então candidato, durante a campanha eleitoral do ano passado, se esquivava de responder toda e qualquer questão relativa ao tema. Como bom cristão que afirma ser, ele fugia desse tipo de pergunta como o diabo foge da cruz.
Tanto era assim que Paulo Guedes, que depois viria a ser convertido em superministro todo-poderoso, foi apelidado pelo futuro presidente de “Posto Ipiranga”. Isso em razão de que toda e qualquer dúvida a respeito da agenda econômica deveria ser dirigida ao Chicago old boy. “Não entendo nada de economia”, chegou a dizer Bolsonaro por mais de uma ocasião. Ocorre que já se passaram 7 meses desde a posse do presidente e os números da economia não apresentam uma única esperança de reversão da rota estagnacionista no curto prazo.
Frente a esse quadro, o antigo discurso do dogmatismo da ortodoxia neoliberal começa a receber algumas pinceladas de medidas, digamos assim, quer dizer, um pouquinho que seja, veja bem, sem querer ofender, mas um tanto quanto beirando a heterodoxia. Arfgh! Imagine-se o atual ocupante do posto do ministério da Economia comentando que algum outro no seu cargo atual houvesse decidido liberar os saques do FGTS para os trabalhadores fora dos critérios previstos na legislação. Seria imediatamente metralhado de populista, irresponsável, dirigista, intervencionista e por aí vai.
Xingamentos, aliás, perfeitamente compreensíveis e coerentes, segundo a lógica doutrinária da formação conservadora de Paulo Guedes. Afinal, como o aprendiz de neoliberal nunca cansou de nos dizer, a solução para a crise econômica deve partir única e exclusivamente da ação dos componentes da oferta e da demanda. E ponto final. Nada de presença ou dirigismo do Estado para deturpar e corromper o verdadeiro equilíbrio natural das livres forças de mercado. Mas como o tempo da política não é aquele da economia, em alguns momentos é recomendável mandar às favas alguns desses princípios. Principalmente se o chefe começa a demonstrar sinais de inquietação.
Se a adoção do cardápio neoliberal extremado não está oferecendo nenhuma novidade para Bolsonaro alavancar um discurso positivo na economia, bom, então, nesse caso, faz-se necessário talvez mesmo recorrer ao arsenal de medidas que seriam consideradas, até ontem à noite, como sendo do campo da heresia keynesiana. Cruz credo! Valei-me! Eis que algum assessor deve ter sussurrado aos ouvidos do antigo assessor da ditadura militar sanguinária de Pinochet alguma coisa a respeito de mega saldos sobrantes no bilionário FGTS. Afinal, imagina ele, talvez não deva ser considerado nenhum pecado exagerado lançar mão desses recursos para tentar um ato desesperado de aquecimento da demanda.
O problema é que a falta de hábito para com a adoção de medidas como essa deixou Paulo Guedes desguarnecido. Achou que ia fazer e acontecer, mas no final deu ruim. Por conta da pressão das empresas vinculadas aos ramos da construção civil e saneamento, as intenções iniciais do super ministro foram tesouradas. É óbvio que tais grupos não gostariam de ver seus recursos potenciais serem transformados em pó da noite para o dia. Os depósitos do FGTS são usados para lastrear empréstimos para essas atividades a juros extremamente generosos para as empresas contratantes.
Atualmente os valores bilionários do fundo estavam inutilizados em razão da crise generalizada e por conta da falta de capacidade de gerar demanda para habitação, por exemplo. Mas as regras estabelecem que os trabalhadores só podem sacar seus direitos em condições especiais – por exemplo, quando são demitidos do emprego. Na verdade, essa figura foi criada logo depois do golpe de 1964. À época, o governo dos miliares começou a destruir o arsenal político-institucional do governo de João Goulart, herança ainda de Getúlio Vargas. Com isso, acabaram com a figura da estabilidade no emprego. Até então, os trabalhadores faziam jus a uma indenização equivalente a um salário por ano trabalhado na mesma empresa. Para que a eliminação desse direito tivesse alguma figura substituta, criaram o FGTS, que tem em seu nome a expressão “tempo de serviço”, inclusive. Como a alíquota mensal a ser recolhida pela empresa é de 8% sobre o salário, isso perfaz 100% em 12 meses. Bingo! Um mês por ano trabalhado.
No entanto, o resultado foi de grande perda para os assalariados e o movimento sindical. Os recursos deixaram de ser geridos pelos trabalhadores, o acesso ao fundo foi dificultado e a remuneração dos valores nas contas é muito mais baixa do que a média das demais aplicações. Ganham as grandes empresas e o financismo, enquanto perde a grande maioria da população. O problema é que nos momentos de crise os valores bilionários do fundo chamam a atenção dos governistas de plantão. Seja para manipular nas épocas de inflação elevada, seja para lançar como aumento “artificial” da demanda como atualmente.
E foi nesse canto de sereia que Guedes foi envolvido. Pouco importa se isso significa lançar mão de medidas pouco coerentes com o seu manual da ortodoxia. O que deve ser relevante agora é tentar oferecer alguma notícia boa que acalme o mau humor do chefe lá no Planalto. O sonho inicial teve seu impacto reduzido pelo “lobby” exercido pelas empresas de construção diretamente junto à Casa Civil, passando ao largo do Ministério da Economia. As especulações iniciais falavam de um choque imediato superior a R$ 60 bilhões. Mas o montante agora está sendo estimado como um volume agregado de R$ 30 bilhões para o ano corrente e ainda mais R$ 12 bi em 2020. E ficou ainda a chacota dos valores máximos de R$ 500 por conta do FGTS.
O efeito esperado é muito reduzido em função do foguetório soltado durante as semanas de suspense que antecederam o anúncio da oficialização. A medida deve provocar, na hipótese dos mais otimista, nada mais do que o chamado “voo de galinha”, no linguajar do economês. Isso significaria, no máximo, um pequeno crescimento da atividade econômica. Um leve salto no PIB, curto no tempo, como a própria imagem do termo sugere. Um dos efeitos de diluição do impacto da liberação dos recursos do FGTS refere-se ao elevado índice de endividamento que se abate sobre todos. Quase 70% das famílias apresentam alguma dívida a ser quitada e esse tipo de recurso inesperado é muito bem vindo para esse fim.
Isso significa que o saldo líquido do impacto dessa medida sobre o ritmo da atividade econômica tende a ser bastante atenuado. O mesmo ocorreu quando a equipe de Michel Temer resolveu adotar esse procedimento no primeiro semestre de 2017. O resultado foi pouco expressivo e o PIB do ano mal chegou a 1%. O ponto é que a persistência da estagnação generalizada desde 2015 gerou uma enorme capacidade ociosa no nossa estrutura produtiva. Com isso, as empresas conseguem atender a eventual subida momentânea da demanda sem precisa recorrer à elevação dos investimentos.
Como todos os agentes econômicos veem a medida apenas como mais um paliativo de curto prazo, não se imagina que os saques operem como um catalisador de um crescimento potencial e sustentado. Esse é o pior dos mundos. Queimam-se valores que poderiam lastrear o investimento importante e urgente em infraestrutura, atividade que é bastante geradora de emprego. Promove-se um aumento imediato e descontinuado na demanda, sem perspectiva de que seja mantido no tempo.
O mais adequado seria o governo criar outros mecanismos com o intuito de promover o necessário de alívio das dívidas das famílias. Mas para isso os responsáveis pela economia precisariam romper com a lógica fiscalista da austeridade cega e burra. O importante seria manter os recursos do FGTS para a sua missão precípua, com a liberação de empréstimos para empresas com exigência de contrapartida em programas e projetos que sejam efetivamente geradores de emprego.
Mas talvez isso seja pedir demais ao pensamento monotônico do povo do ministério da Economia. Conceber políticas públicas de apoio à população de baixa renda para destravar o seu nível de endividamento, recuperar o emprego e estimular a demanda? De modo algum! A solução é deixar a economia recuperar o seu “ponto de equilíbrio natural” (seja lá o que isso signifique), sem nenhuma ação “dirigista ou intervencionista” do Estado. Afinal, lançar mão de recursos públicos só se for para beneficiar o grande capital. Os demais setores e classes sociais que apostem em seu empreendedorismo.
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