16 Julho 2019
Promotoria pública acusa sete gerentes da France Telecom-Orange, empresa de telecomunicações que foi privatizada, de 'assédio moral' ao pressionarem funcionários a pedir demissão.
A reportagem é de Pablo Uchoa, publicada por BBC, 12-07-2019.
Diretores de empresas devem ser responsabilizados criminalmente pelo suicídios de funcionários que alegaram excesso de pressão e assédio no ambiente de trabalho como motivos para se matar?
Essa é a pergunta que a Justiça francesa terá que responder no julgamento de sete ex-executivos da France Télécom acusados de assédio moral, num caso que levou ao suicídio de 35 funcionários da empresa entre 2008 e 2009. Após dois meses de oitivas de testemunhas e acusados, a França agora aguarda a sentença.
A decisão pode abrir precedentes no país e gerar uma discussão internacional sobre o assunto.
Em vários casos, as vítimas claramente culparam a empresa pelo seu desespero e opção pelo suicídio. Num e-mail de despedida ao pai, uma mulher de 32 anos disse que não queria trabalhar com o novo chefe. Ela se jogou do quinto andar do prédio corporativo, na frente dos colegas de trabalho.
Antes de se matar, um homem de 51 anos de Marselha deixou uma nota de suicídio acusando seus chefes de "gerir pelo terror". "Eu estou me matando por causa do meu trabalho na France Télécom", escreveu. "É o único motivo".
Embora especialistas digam que as razões para um suicídio são complexas e, muitas vezes, múltiplas, os promotores franceses pediram a condenação dos executivos da France Télécom.
Se condenados, eles podem enfrentar um ano de cadeia e pagar, cada um, multa de US$ 16.800 (cerca de R$ 63,1 mil). A empresa, que foi rebatizada de Orange, poderá ter que pagar multa de US$ 84.000 (R$ 315,5 mil).
O ex-CEO da France Télécom Didier Lombard, o seu sub Luis-Pierre Wenàs e o diretor de Recursos Humanos Olivier Barberot são acusados de promover um sistema de "assédio moral institucionalizado" que teria como objetivo forçar funcionários a pedirem demissão.
Em 2005, eles decidiram reduzir o tamanho da empresa, cortando 22 mil postos (quase 20% da força de trabalho da companhia) em três anos, e treinando outros 10 mil funcionários.
Mas os executivos não conseguiram demitir grande parte dos empregados, porque eles eram funcionários públicos quando a empresa deixou de ser estatal para ser privatizada em 2004. Esses funcionários contratados quando a companhia era pública têm estabilidade garantida por lei.
Diante da impossibilidade de demissão, os executivos decidiram "tornar a vida dos empregados intolerável", disseram os promotores do caso.
Lombard teria dito numa reunião de gerentes em 2006 que ele "faria as pessoas saírem de um jeito ou de outro, pela janela ou pela porta". Durante o julgamento, ele negou ter falado isso.
Em 2002, uma lei sobre assédio moral introduziu o conceito de "saúde física e mental" na legislação trabalhista francesa. É com base nessa lei que os diretores da France Télécom estão sendo processados.
"Não há dúvida de que, ao reestruturar a empresa, com grandes cortes de empregos e transferências, os gestores sabiam que estavam desestabilizando seus funcionários", disse a promotora Françoise Benezech, durante o julgamento. "Na realidade, vocês queriam desestabilizá-los."
A advogada da France Télécom, Claudia Chemarin, argumentou que as evidências não provam que qualquer das vítimas tenha sido intencionalmente assediada e fez um apelo para que os juízes analisem o caso de maneira "objetiva".
A sentença tem potencial para gerar amplo impacto na França e no exterior. Esse é o primeiro caso em que promotores públicos entram com ações contra uma empresa pelo suicídio de funcionários.
"É um julgamento criminal histórico", disse à BBC a professora Sarah Waters, da Universidade de Leeds, no Reino Unido. "Abre um precedente internacional ao fazer com que os chefes da France Télécom sejam pessoalmente responsabilizados criminalmente por pressionar seus empregados a tirar as próprias vidas."
"Esse julgamento tem grande implicação para outras corporações do mundo todo, que terão que prestar mais atenção à proteção da saúde mental e do bem-estar de seus funcionários."
Um estudo de 2016 da professora Sarah Waters diz que o suicídio no ambiente de trabalho se tornou "uma preocupação social urgente no cenário internacional", com aumento no número de empregados que culpam as pressões no trabalho ao se suicidarem.
Estudos recentes feitos nos Estados Unidos, Austrália, Japão, China, Índia, Coreia do Sul e Taiwan relacionam o fenômeno à deterioração das condições de trabalho, instabilidade dos empregos, exaustão e estafa - o esgotamento por excesso de trabalho foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como uma condição médica em maio deste ano.
Num editorial de 2017, a prestigiada revista médica The Lancet diz que o esgotamento entre médicos alcançou "proporções epidêmicas" no Reino Unido, enquanto nos Estados Unidos a condição é apontada como responsável pela taxa de suicídio de 400 médicos por ano - mais que o dobro da média de suicídios da população americana. Para Sarah Waters, esses dados refletem o modelo neoliberal da economia, que coloca as empresas sob pressão para se tornarem cada vez mais competitivas.
France Télécom, Renault e o serviço de correios da França vivenciaram "ondas de suicídio" em momentos de reestruturação e privatização. No total, 294 funcionários se mataram entre 2005 e 2015, diz a professora Sarah Waters.
Também houve vários casos na fabricante de carros Peugeot e em empresas de energia, bancos, supermercados, polícia e centros de pesquisa.
Waters compara o contexto francês com o fenômeno japonês do karo-jisatsu (suicídio relacionado a excesso de trabalho), que tem sua raiz no ambiente de extrema pressão da cultura corporativa japonesa. No Japão, parentes das vítimas podem entrar com ações de indenização contra empresas consideradas culpadas de caos de karo-jisatsu.
Em alguns países, empresas foram responsabilizadas pelo suicídio de empregados, após ações de indenização movidas por parentes. Sarah Waters diz que isso já ocorreu no Reino Unido, onde o "suicídio por trabalho" não é reconhecido pela legislação.
O caso da França é emblemático, porém, porque pela primeira vez executivos estão sendo individualmente processados, além da empresa em si.
Durante o julgamento em Paris, parentes das vítimas tiveram dificuldade para conter suas emoções e raiva ao falarem sobre a pressão que seus entes sofreram por parte dos gerentes.
A filha de um homem que colocou fogo em si mesmo no estacionamento da sede da France Télécom em Bordeaux, em 2011 disse: "Vocês mataram meu pai".
Um executivo sênior da Orange (novo nome da France Télécom), que representou a empresa no julgamento, admitiu que a companhia falhou em zelar pelos funcionários "mais vulneráveis".
Mas Lombard, que foi forçado a deixar a empresa em 2009 em meio ao escândalo de suicídios, negou qualquer responsabilidade pelas mortes, embora tenha admitido que o processo de reestruturação tenha frustrado funcionários.
"As transformações pelas quais um negócio precisa passar não são agradáveis, mas é assim que funciona. Não tinha nada que eu pudesse ter feito", disse.
A BBC News procurou a Orange para que pudesse se manifestar na reportagem. Um porta-voz disse que compreende que é um "momento muito difícil para as famílias dos empregados" e que o julgamento analisou "alguns dos momentos mais difíceis da história da empresa". A Orange disse ainda acreditar que "o progresso econômico e o progresso social andam de mãos dadas."
De acordo com o porta-voz, a pesquisa anual de satisfação da Orange aponta que 88% dos seus empregados têm orgulho de trabalhar na Orange.
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Em julgamento histórico, executivos na França respondem por suicídio de 35 funcionários - Instituto Humanitas Unisinos - IHU