14 Julho 2019
De sua casa, nas redondezas de Montevidéu, o ex-presidente Pepe Mujica reflete sobre o presente uruguaio e o latino-americano, a questão venezuelana, a situação de Lula e o momento que o capitalismo e a democracia ocidental atravessam.
A entrevista é de Federico Vásquez, Juan Manuel Karg e Martín Schapiro, publicada por Cenital, 09-07-2019. A tradução é do Cepat.
Após 15 anos de Frente Ampla, em que mudou a sociedade uruguaia?
Mudou a distribuição econômica – há menos pobres e muito menos indigentes no sentido clássico do termo -, mas não demos um salto de consciência no sentido em que as pessoas entendam a razão pela qual se conseguiu isso. Está ainda muito limitada à sorte e o esforço pessoal, como se caísse do céu, sem poder se conectar com o rumo das políticas e medidas que tornaram possível essa distribuição.
Acredito que tenho um problema meio contemporâneo: a economia de mercado, que está metida em toda a sociedade e é naturalmente o produto cultural funcional a esta etapa do capitalismo, que necessita que todos sejamos vorazes compradores. Consumidores de nosso tempo para gerar recursos para gastar apressadamente. Devedores e compradores contumazes: isso é a panóplia de felicidade que está semeada como ilusão no horizonte humano. Nesse marco, nossas sociedades estão doentes de ansiedade. Isto tem um aspecto positivo e outro terrível, porque o verdadeiro pobre é o que precisa de muito. É muito filosófico.
Alguns leões herbívoros como eu, que queríamos mudar o mundo, pensávamos que mudando as relações de produção e distribuição, mudávamos o homem. Sem medir que paralelamente há uma batalha cultural que é a central, e que se não muda a cultura, não muda nada. É mais difícil mudar a cultura que a realidade material. Isso seria como retroceder mil anos. É como dizer à economia: ‘louca, precisa ir atrás de Adam Smith e unir a economia, política e filosofia em um mesmo pacote’. Porque a grande pergunta é se as pessoas vivem mais felizes.
Uma das coisas que nos perguntamos, é se a Frente Ampla está conseguindo uma transferência geracional exitosa. É a primeira eleição na qual nem você e nem Tabaré vão na cédula presidencial. Conseguiram o que talvez outros processos no continente no conquistaram?
Tenho minhas dúvidas, somente os fatos poderão revelar. Se isto se mede com uma mudança de nomenclatura é uma história. A verdadeira renovação é a que se dá nos fundamentos. Isso de que são os caciques que fazem a história é uma fábula. Os caciques sem fila indiana não servem para nada. São como os generais aposentados. Os generais são importantíssimos, quando possuem uma fila de soldados. Caso contrário, são uns velhos do caralho.
Os atores políticos precisam se dar conta que a construção de formidáveis andaimes que incluam muita gente é o centro das lutas históricas. O que ocorre é que somos descendentes de sociedades patriarcais. As nacionalidades foram inventadas pelos reis. Há toda uma série de mitologias que as cúpulas inventaram. As repúblicas ainda são um sonho frustrado, tentando subscrever que nós, seres humanos, somos iguais. Essa era uma questão de papel. Do ponto de vista prático, estamos na liga de ser iguais. Esta é a grande dívida social que temos. Se aprofundo muito, me coloco meio jacobino.
A nova liderança da Frente Ampla se parece com o que você é?
É bravo, isso custa. Eu sou um rupturista. O problema é buscar deixar uma corrente de pensamento e de conduta. O que conta é o que se expressa na vida real, não o verso. Uma coisa é a que se diz, outra como se vive. No sentido republicano. Há uma crise da democracia em nível mundial, as pessoas tendem a acreditar cada vez menos e acreditam menos porque os governantes adotam uma escala, uma forma de vida, e um estilo que não é o da maioria das pessoas. Então, a república se transforma em um verso, e as pessoas de alguma maneira percebem. Nós temos que eleger alguns governantes que sejam iguais. Teríamos que caminhar para uma sociedade que pudesse fazer governos por sorteio. Talvez encontramos um bom.
É lugar comum dizer que o Uruguai permaneceu como um bastião dos governos progressistas, populares, ou de centro-esquerda, em meio a uma guinada conservadora na região. Acredita que isto irá afetar o processo político do Uruguai ou pensa que o país mantém uma autonomia em relação ao processo regional?
O Uruguai está muito atingido pela situação global da América e do mundo. Estamos em uma época de Santa Aliança. Aquilo que sobreveio à Revolução Francesa: a restauração conservadora. No marco de outras crises, porque é um mundo cada vez mais complexo. Existe o brutal impacto da civilização digital, que irá ter consequências até institucionais. Isto que chamamos de democracia representativa, do jeito que está, já não é tão representativa, porque as sociedades são muito complexas.
Não me preocupa o conservador porque é eterno, a história humana é um eterno pêndulo e fomos muito mais fodidos. Cobertos de ditaduras e curtidos a paus. Não vou me assustar com o velho Bolsonaro ou a utopia do pobre Macri, pensando que com o Fundo vamos como que acertados. Há utopistas de direita e de esquerda. O problema é que quando isso não tem relação com a realidade se converte em ucronia.
A Venezuela, em determinado momento, era uma referência muito importante para a esquerda continental. Como se explica o estado atual das coisas?
Acredito que a Venezuela paga o preço de sua história. Um país que se acostumou a viver dependente do petróleo e abandonou o prosaico trabalho de produzir carne, arroz, bananas, cereais para comer. Acostumou-se a viver do importado, que tinha que ser bom. A maior consumidora de whisky escocês que havia na América Latina, e possuem um rum daqueles. As pessoas foram à praia, para viver na costa, concentraram-se na zona urbana e perderam os ofícios. Porque você aprende a fazer as coisas com as quais ganha a vida e não pode improvisar um camponês. Os povos venezuelanos, as poucas vacas que ordenham, fazem uma vez por dia. Há lugares onde cortam a grama com facão, não chegou nem a gadanha.
Há condições naturais de sobra, mas o fator humano está sociologicamente devastado por um país que se transformou em monoexportador de petróleo e vive da importação. Um país de comerciantes, de exportadores e importadores. Então, quando chega a hora da verdade, por mais vontade política que se tenha, você não consegue substituir ofícios de pessoas que não existem. Porque esse termo camponês, produtor de alimentos, você não inventa porque quer, mas, ao contrário, é uma construção histórica de famílias, de tipos que nascem e se educam.
Quando você perde o capital humano – e Venezuela há tempo o perdeu –, continuará dependendo do que importa. Então, o dia em que sua moeda vem ao chão, o petróleo ou que tem para vender, está frito. Este fenômeno não podia ser solucionado nem por Chávez, nem por Magoya, porque é um processo de mudança histórico.
É possível cometer erros a favor ou contra, o voluntarismo extremo é um erro. Você pode ter todo o desejo pelo socialismo, por uma sociedade nova, mas nacionalizar ou estatizar para retroceder não é progredir: é multiplicar os problemas contra. Os chineses, em 48, com a indústria têxtil, nacionalizaram a fábrica do maior magnata que tinham, mas o deixaram à frente, dirigindo-a.
Há dois tipos de experiências progressistas mostradas como exemplos. Uma é o Uruguai e outra é a Bolívia. Agora, fala-se muito do México. Acredita que pode haver ali um alinhamento novo, em nível geopolítico?
Estão ferrados de exemplos (risos). Acredito que são fenômenos que podem ter algum parentesco, desde já, mas são peculiares em si mesmos. Os verdadeiramente progressistas não são os da Frente Ampla. No Uruguai, no fundo, progressista, meio sarcástico, mas não tanto, é o Uruguai inteiro. Essa é a história do Uruguai e devemos isso aos nossos bisavós. É um país onde tínhamos um tipo que, em 1910, escrevia deus, em minúsculo, à frente do país, e que se juntou com uma separada com três filhos. E era presidente da República. Tempos atrás, tivemos loucos soltos, aventureiros com a preocupação da sociedade. Foi dado o voto à mulher, fez-se um estado vigoroso. Isso herdamos e, melhor, defendemos.
Provavelmente, nossos partidos tradicionais são os mais velhos porque nunca foram partidos, mas, sim, frentes. Antes, nós os criticávamos e depois aprendemos com isso. Inventamos esta gigantesca política de alianças que compõe a Frente Ampla, que já tem 48 anos. É algo formidável, nos deu vigor até hoje e se amanhã perdermos, nos dará vigor para retomar e seguir.
Pensa que é possível perder?
Sempre é possível perder, porque às vezes ganhar também é perder.
Olhando para o futuro das experiências de esquerda, progressistas na região, ficaram sem agenda. Perdeu-se a possibilidade de resposta às novas demandas. O que seria necessário olhar?
Estamos em uma mudança de época. Em minha juventude, questionávamos o sistema pela raiz e nos lançávamos para mudar o sistema. Agora, estamos lutando para mitigar as misérias do sistema. De lutadores pelo socialismo, hoje, nos tornamos progressistas. É necessário falar com estes termos provocativos para ter a humildade de nos localizar. Podemos fazer outra coisa nesta circunstância? Penso que não.
Precisamos encontrar outro caminho e essa é uma dívida que temos pela frente. O capitalismo segue sem me convencer. Preciso bancá-lo porque não posso contorná-lo, simplesmente. Ainda não tenho nenhuma proposta melhor construída, mas não venha me dizer que este é o reino da igualdade ou algo do estilo, não me foda. O capitalismo nos deu 40 anos a mais de vida, em média, nos últimos 150, e multiplicou e criou toda uma civilização. O que fez não foi meleca de peru. Mas, caso sigamos assim, nos levará a um holocausto ecológico. Não sei se poderemos sujeitá-lo.
Como convencemos a quem está um pouco melhor que precisa consumir menos?
Há muitas coisas para construir. Temos os meios para sustentar todos bem, mas não com este nível. Há loucos desesperados para comprar uma Ferrari. Assim, vamos nos ferrar.
Lula parecia destinado ao bronze e hoje está preso. Vendo sua situação e a de outros líderes da região, como pensa que os uruguaios o verão com o passar do tempo, qual será o seu legado?
Não é incomum, é o que acontece sempre. O que aconteceu com San Martín? O que aconteceu com Artigas? O que aconteceu com todo aquele que servia na América Latina? Que merda aconteceu? Ah, 50 anos depois, eram uma coisa bárbara, mas como a passaram?
É possível mudar isso?
A única coisa que desejo é que Lula persista e que esteja bem. Porque este partido não está acabado. Nunca chegaremos a um mundo perfeito, a tocar o céu com as mãos. Quando nascemos, recebemos uma herança brutal. Isso que chamamos de civilização não começou conosco, mas com uma longa fila indiana de gente que não conhecemos, que vai da invenção da roda até a biologia molecular. É o maior do homem. Nós tentamos avançar um pequeno degrau, mas a escada não acaba conosco.
E o legado?
O importante é que permaneçam pessoas lutando, não que andem com o meu retrato. Para que merda serve isso? Precisamos de pessoas que gastem o tempo em sua vida militando para mudar a realidade e melhorá-la. Esse é o melhor legado, porque não acredito no cacique, mas, sim, na fila indiana.
Você falou da juventude e de como militou. Que mensagem tem para os jovens latino-americanos?
Que a vida é bela. Que se comprometam porque, caso contrário, terão uma vida ao peido, pagando contas e nada mais. É lindo ter causas para viver, porque dá um conteúdo a sua vida. Porque ser militante não é nenhum peso, nem sacrifício. Sacrifício é viver sem fazer nada. E com a velhice, vem o balanço. O que irá dizer? Que passou toda a sua vida pagando contas? A militância é solidariedade com as gerações que virão, é a luta para tentar deixar um mundo um pouquinho melhor do que recebemos. É amor a nossa espécie.
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“As repúblicas ainda são um sonho frustrado”. Entrevista com José Mujica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU