03 Setembro 2018
Ex-presidente do Uruguai protagoniza no festival de Veneza um documentário e um filme sobre seu longo período na cadeia.
A reportagem é de Tommaso Koch, publicada por El País, 02-09-2018.
Os ratos sempre chegavam na mesma hora, por volta de uma da madrugada. Visitavam a cela todas as noites, com missão idêntica: caçar migalhas. Mesmo que servisse para o prisioneiro José Mujica se sentir menos sozinho. E se agarrar ao contato com a realidade. “Era uma referência. Outra era a troca da guarda. Você vai criando o ofício de ser preso”, diz Mujica (Montevidéu, 1935), sentado no elegante sofá de um hotel e de um festival em que parece um intruso e, entretanto, é protagonista.
Diz que não apresenta “nada”, mas o certo é que dois filmes da Mostra falam dele: Uma Noite de 12 anos, do uruguaio Álvaro Brechner — na sessão Horizontes, e com coprodução espanhola —, recria sua odisseia como preso político, detido em 1972 por pertencer à guerrilha dos Tupamaros, e libertado somente em 1985. El Pepe, Uma Vida Suprema, de Emir Kusturica, é um documentário sobre o ex-presidente do Uruguai e sobre a maneira de ser e pensar que conquistou seu país e o mundo inteiro. Veneza também o coroou como uma de suas estrelas. Ainda que ele diga que na verdade é “estrelado”.
O diretor sérvio deve conhecer bem seu amigo. De modo que o chantageou: ‘Se não vier a Veneza para uma entrevista coletiva, eu também não vou”. Mujica diz que para não ofendê-lo, e como agradecimento pelos dois filmes, fez uma longa viagem que é cada vez mais difícil e da qual gosta cada vez menos. Em um encontro com a imprensa espanhola, olha para frente e para trás, à política e ao cinema, à Europa e à América Latina. Com humor —“uma arma defensiva brutal”—, citando poetas e sempre matizando no final, como se desse pouca importância. “Bom, é como eu vejo”. Ao modo de Mujica.
“Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”, defende. Esteve com ela dos 37 aos 50, sofreu torturas, comeu sabão, perdeu os dentes pelas surras, e frequentemente a lucidez. Agora chama tudo aquilo de “peripécia”. “Isso que aconteceu conosco é pouco. Existem muitos outros que ficaram pelo caminho”, acrescenta. Não sabe muito bem como sobreviveu, mas tem algumas hipóteses: “Cada um se agarra no que pode. Quando era muito jovem, li muito. E nesses anos de solidão refleti. Repensar e reconsiderar coisas não é o mesmo que ler, é reconstruir. Acho que o homem aprende mais na adversidade, sempre que não o destrua, do que na bonança”.
Entre outras lições, Mujica concluiu que a vingança não serve para nada: “Não sei se perdoo. Mas a natureza nos colocou os olhos na parte da frente, e existem contas que ninguém paga e não devem ser cobradas”. Fiel a isso, só viu Uma Noite de 12 Anos uma vez — não participou da estreia no festival, onde foi muito aplaudido —. Melhor não “remexer os sentimentos” que traz sobre sua mãe, os soldados, seus outros colegas presos e aqueles que já não estão.
Tanto isolamento também forjou parte de quem ele é hoje. “Quando tinha um colchão estava contente. Ou um copo de água. Ou se podia urinar. Descobri que brigamos muito por nada”, diz. E cita um estudo que sustenta que, a partir de certos níveis, os aumentos do PIB já não aumentam a felicidade: “Acho que a sentimos quando resolvemos questões básicas; depois, nem sinal”.
“Quando era jovem pensava que a luta era pelo poder. Agora vejo que a história dos lutadores sociais e políticos é um monte de vidros quebrados, dos quais vão ficando pedacinhos: as oito horas de trabalho por dia, os direitos trabalhistas, a aposentadoria... eu me sinto irmão de tudo isso”, diz Mujica. Durante sua presidência, entre outras coisas, legalizou o casamento homossexual e a maconha, descriminalizou o aborto, e declarou guerra à pobreza e à indigência. Mesmo que a oposição tenha lhe acusado algumas vezes de esvaziar suas palavras ecologistas e anticapitalistas com decisões no sentido contrário. De seus mandatos, ele destaca “furos” e sonhos não cumpridos. “Seria preciso nomear o chefe dos bombeiros. O presidente é um apagador de incêndios”, afirma.
Também renunciou à mansão presidencial e a 90% de seu salário. E ficou na casa em que sempre morou, com sua mulher, a política e ex-guerrilheira Lucía Topolansky, e sua adorada cachorra Manuela. O recente falecimento do animal o fez refletir sobre a morte. E talvez daí venha o adeus a sua cadeira no Senado: “Às vezes você sente que está desempenhando um papel que já não te motiva. Você está atrapalhando, como uma árvore velha que não deixa ver o que está por baixo”.
Se deixou a política ativa para trás, falar dela ainda acende sua paixão. Perguntado pela crise na Venezuela e na Nicarágua, responde: “Na América acontecem coisas que também se dão na Europa. Mas aqui são bem dissimuladas. A Volkswagen recebe uma multa de 7 bilhões de dólares (28 bilhões de reais) e ninguém é preso, continuam como se nada houvesse. Não venham me dizer que a América está cheia de defeitos e a Europa é corretíssima. Não estou defendendo a deformação que temos, digo que está presente no mundo em que vivemos”. E diante de uma pergunta sobre o auge do populismo, coloca a própria questão em dúvida: “Não utilizo essa palavra porque a usam a torto e direito. São populistas na Nicarágua, e os que votam na direita na Alemanha meio neonazistas. Então, é qualquer coisa. Eu tiro essa conclusão: tudo o que incomoda, com o que não se está de acordo, é populista”.
Mujica apoia com convicção o projeto da União Europeia, apesar de seus “defeitos”: “O ser humano é o único animal que tropeça nas mesmas pedras. Nos últimos mil anos a Europa viveu em guerra e agora parecem se esquecer disso. Eu gostaria de ter algo assim na América Latina”. E sobre a Espanha afirma que tem “vários problemas com a memória”, e que sobrevive sua eterna contradição entre o país de “festa e alegria” e o da “raiva e ódio”. “A Espanha feudal ainda é muito forte”, diz. E em relação às turbulências com a Catalunha, afirma: “O nacionalismo dos jovens é algo bom porque serve para moldar caráter e identidade. Mas quando se exacerba se transforma em algo perigoso. Mas atenção: uma coisa é o nacionalismo de um país pequeno e outra o de um grande e de terror para os vizinhos”.
A última pergunta recai sobre a marca de Mujica, aos seus 83 anos. Ele não dá muita importância. “O que é o legado de uma pessoa no universo? Somos menos do que um piolho. O legado é ter vivido intensamente, com acertos e erros. Vencer não é ter dinheiro, é se levantar sempre que se cai”. A poucos quilômetros, o carpete vermelho de Veneza prepara outro desfile de estrelas. Resta saber quantas estão de acordo com o estrelado.
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José Mujica: “Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU