Por: Jonas | 15 Mai 2015
Reencontrar o cineasta franco-sérvio é garantia de uma entrevista alimentada pela atualidade, como as questões da geopolítica internacional e os males da globalização capitalista. Émir Kusturica (foto), autor de uma coleção de contos publicados no dia 7 de janeiro, não apresenta mesquinharias em suas brilhantes digressões. Normalmente, ele opera seu talento artístico na música e no cinema: o guitarrista do “No Smoking Orchestra” é também vencedor de duas Palmas de Ouro. No momento está tentando uma incursão na ficção com “Estranho no casamento”, uma coleção de seis novos contos em torno da família, da guerra e do absurdo da vida cotidiana na Iugoslávia da década de 70. Certamente as histórias de Kusturica aparentam ser muito desiguais e truculentas, e dificilmente podem causar as mesmas emoções como no cinema. Ainda sim, mesmo que seu talento à escrita não seja completo, ele ainda continua sendo uma voz singular à frente da padronização do espírito.
Fonte: http://goo.gl/UN14lb |
A entrevista é de Vadim Kamenka e Michaël Mélinard, publicada por Outras Palavras, 14-05-2015.
Porque você escolheu se expressar através da literatura?
Eu percebi que poderia ser criativo fazendo meu filme Guernica durante meus estudos na escola de cinema de Praga. Desde então, minha criatividade nunca mais parou. Tive a sorte de me encontrar. Eu posso criar a minha vida em relação aos meus diversos projetos. Desde os meus primeiros filmes, tenho cultivado um bom relacionamento com meu público. Isto foi provável porque eu não estava tentando me comunicar, mas sim fazer filmes. Eu exploro as profundezas da história da minha família. Tento ir de encontro a escuridão. Mas isso depende exclusivamente de um desejo. A arte é certamente o ponto culminante da comunicação, o artista não se comunica com o público, mas com sua própria necessidade de criar.
Por qual razão suas histórias são tão pessoais?
Estou relacionado com a linguagem cinematográfica do início dos anos 70. Estes são os anos dourados para o cinema e a arte em geral. Os Estados Unidos que moldaram o mundo militar e artisticamente eram, na década de 70, muito mais livres do que hoje. Depois do Vietnã, houve uma série de filmes sobre a guerra perdida pelos americanos. Hoje a liberdade de expressão tornou-se uma expressão controlada. A NSA (National Security Agency) grampeia todos os cidadãos norte-americanos. É assustador. Nos anos 70, os EUA estavam falando sobre o nazismo e fascismo. Basta lembrar de Cabaret, um filme de Bob Fosse, de Midnight Cowboys e Five Easy Pieces. Havia quase uma filosofia existencialista falando livremente da vida, da derrota do Vietnã, por escritores de livros. E em seguida, no cinema, George Lucas começou a recriar o universo, Spielberg fez o E.T. O projeto de entreter a mente criada por Ronald Reagan, especialmente para os americanos, longe de uma posição crítica, transformou os filmes em puro entretenimento. As pessoas que continuaram produzindo aquilo que queriam foram marginalizadas, e seus filmes mal distribuídos. Na Europa, por exemplo, o cinema tem o foco na autoria. Mas a pressão econômica faz os autores ficarem cada vez mais politicamente corretos.
O que há nos acontecimentos na Ucrânia?
A guerra humanitária é na realidade uma legalização da guerra. Wall Street depende da guerra. O valor psicológico de uma ação depende da maneira em que se é agressivo em algumas partes do mundo. Várias guerras, pequenas em tamanho, se desenvolvem um pouco por todas as partes do planeta. A esta altura, a opção dos conflitos de baixa intensidade parece estar esgotada. E a Ucrânia marca um ponto de inflexão. A Rússia já não aceita ver-se rodeada pela expansão contínua da OTAN. O ideólogo estadunidense Zbigniew Brzezinski tem escrito extensamente sobre o “desafio da Eurásia”, capital aos seus olhos — isto é, o controle e a colonização da Rússia e do espaço ex-soviético. A Ucrânia é, portanto, a primeira etapa neste desmantelamento imaginado por Brzezinski.
Isso faz lembrar do que aconteceu na antiga Iugoslávia?
Em Kiev, a história de franco-atiradores que abriram fogo na praça Maidan se apresenta de maneira perturbadoramente parecida aos acontecimentos de Sarajevo em 1992. Durante o cerco da cidade, atiradores isolados aterrorizaram a população e ninguém em Sarajevo sabia de onde vinham os tiros. Exatamente igual a Kiev. Ainda não sabemos quem abriu fogo contra os manifestantes e as forças da ordem. Hoje em dia, aparece outra verdade distinta daquela imposta pelos meios de comunicação. Isto é o que tratava de descrever em meu filme Underground: outra realidade. E foi feito em 1995. Os dirigentes conhecem a verdade sobre estes eventos. Inclusive tratam de abusar de nós fingindo ser imbecis. As grandes potências jogam em um tabuleiro de xadrez onde a Ucrânia ou a ex-Iugoslávia aparecem como peões. Trata-se de uma repetição do cenário que ocorreu na Iugoslávia e que levou o seu desmantelamento por interesses similares: a expansão da OTAN e da União Europeia (UE). A constituição da UE é responsável pelos dois dramas. Para estender e aumentar sua área de influência, dividiu os estados para impor suas leis nos territórios pequenos. Para mim, o que é inaceitável é que as pessoas se acomodaram. Felizmente, há momentos de esperança.
A chegada ao poder dos comunistas na Grécia faz parte disto. Sua vitória é histórica e pode, como na América Latina, trazer um verdadeiro impulso. Este fenômeno se repetirá durante os próximos anos. A ascensão da extrema direita e dos partidos fascistas, ou inclusive nazistas como na Ucrânia, onde estão no poder, criará uma resistência para fazer frente. O choque é inevitável.
A histeria da imprensa em relação à Rússia e Putin recorda o tratamento midiático contra os sérvios durante a guerra na Iugoslávia?
Isso foi o ponto de partida. Em 1992, diversos atores trouxeram alguns aspectos para criar um ambiente propício ao conflito. Logo legalizaram uma intervenção em nome da ajuda humanitária. Qualquer possibilidade de paz foi descartada e a Iugoslávia se desmembrou, deixando Slobodan Milosevic como único responsável. Kosovo é um bom exemplo das mentiras e justiça aleatória. Apoiaram a separação da região em nome do direito dos povos, mas se opuseram a ela na Crimeia! Os Estados Unidos e o campo atlântico impõem sua verdade porque se comportam como vencedores da Guerra Fria. Pensam que triunfaram sobre o marxismo e mataram o comunismo.
Todos os acontecimentos que seguiram após a queda do Muro de Berlim revelam falsas promessas feitas a Mikhail Gorbachov acerca da não extensão da OTAN. Isso resume sua concepção da diplomacia como forma de assegurar sua supremacia. A extensão da órbita euro-atlântica é imperativa. Este século será, para os Estados Unidos, um ponto de inflexão. O aumento de sua riqueza e influência dependem de seu domínio através do modelo neoliberal. Esse modelo, que tem sido imposto ao resto do mundo pela via da globalização, baseia-se na competição, na exploração e na desigualdade. Esta competição, os EUA já não poderão ganhá-la indefinidamente diante da ascensão das potências emergentes. Ao enfrentar essa fase de depressão, criam armadilhas. Mas não haviam previsto que a Eurásia se levantaria contra a dominação do Euro-atlântica. Deve-se levar em conta a proximidade geográfica, que levará Rússia e China a terminar cooperando.
Kusturica em 5 filmes
(1985) Quando papai saiu em viagens de negócios – Por seu segundo longa, o diretor iugoslavo ganhou seu primeiro troféu de ouro, com apenas 31 anos.
(1989) Os tempos dos ciganos – Recebeu o prêmio de direção no Festival de Cannes.
(1993) Um sonho americano – Em sua primeira experiência norte-americana, Emir Kusturica monta um excelente elenco (Johnny Deep, Jerry Lewis, Faye Dunaway) e o voar dos peixes em uma canção para Iggy Pop sendo premiado com o Urso de Prata em Berlim.
(1995) Underground – Ganhou seu segundo troféu de ouro com a retomada histórica da família na Iugoslávia, e os 50 anos que vão desde a década de 1940 a sua dissolução em 1990. O filme se encerra numa polêmica do autor sobre o suposto caráter pró-sérvio da obra.
(1998) Gato preto, Gato Branco – Depois de um tempo produzido o filme, Kusturica ganhou o prêmio Leão de Prata, de melhor diretor, em Veneza.
(2008) Maradona – Documentário premiado no Festival de Filmes em Cannes em 2008.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Kusturica: “EUA já não fazem corações e mentes” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU