28 Junho 2019
“Frente ao imperativo do gozo individual que o neoliberalismo elevou à máxima do sistema, o novo senso comum antagonista deve ser construído a partir do que denominamos o imperativo moral da multidão e que, com óbvias ressonâncias kantianas, se enuncia do seguinte modo: "Atua de tal maneira que seus atos possibilitem o conatus da multidão, a manutenção no ser da humanidade em seu conjunto e das gerações futuras"”, escreve Juan Manuel Aragüés Estragués, professor de filosofia da Universidade de Zaragoza, em artigo publicado por El Salto, 25-06-2019. A tradução é do Cepat.
Traçar o caminho da construção de uma subjetividade antagonista é um dos maiores compromissos para uma nova política entendida, entre outras coisas, e tal como faz Lordon, como um ars affectandi. Entender isto, que a política é um compromisso de afetos que produzem efeitos, de estratégias de modelagem e modulação das práticas subjetivas, é condição indispensável para superar nossa habitual estupefação diante dos resultados do jogo eleitoral, em que entendemos que as posições mais razoáveis e pensadas em benefício de uma maioria social são constantemente e irremediavelmente derrotadas.
O porquê dessa realidade se resume de maneira simples: o capitalismo - como apontaram muitos teóricos contemporâneos, de Ibáñez a Lordon, passando por Butler, Laval, Dardot e Negri - mostrou uma enorme eficácia na construção da subjetividade, ajustando-a milimetricamente às necessidades produtivas e reprodutivas do sistema. Diante desse fato, diante de tal modelo de subjetividade, propor políticas alternativas se mostra um anseio voluntarista voltado para um campo eminentemente refratário.
A subjetividade dominante do capitalismo pós-fordista está submetida ao senso comum que dele emana e que aponta em uma direção hipersubjetivista que aprofunda a mensagem individualista consubstancial ao liberalismo. O liberalismo moderno já havia apontado nessa direção e se comprometido, basta apenas rever sua história, em destruir a economia moral da multidão sobre a qual falou Thompson e que tinha seu sustento em práticas de caráter coletivo. Práticas, aliás, que tiveram uma enorme presença na Europa moderna e que nos falam do aproveitamento coletivo de bens do comum.
Embora o liberalismo vá quebrando a espinha dorsal dessas práticas, as primeiras formas de capitalismo industrial geraram, por sua vez, novas práticas coletivas que desencadearam uma mais ou menos difusa consciência de classe. No entanto, com o neoliberalismo, esquecidas já essas economias do comum que caracterizaram a Europa moderna e com a classe trabalhadora submetida a uma extrema precarização e a alguns fluxos de desejo que corroem toda a consciência coletiva, um senso comum marcadamente individualista permeia o conjunto da sociedade.
De Gramsci a Sousa Santos, a construção de um novo senso comum tem sido apontada como um passo irrenunciável no processo de transformação da realidade. A hegemonia gramsciana e o senso comum antagonista que acompanha a pós-modernidade crítica de Sousa Santos traçam um caminho no qual a construção da subjetividade é entendida como elemento fundamental de toda prática política.
O neoliberalismo colonizou todas as esferas de nossas vidas, de modo que a resposta ao mesmo passa por construir novas vidas, vidas que permitam superar o que agora se tornou a contradição fundamental do sistema, a contradição capital/vida. Sem esquecer a centralidade da contradição capital/trabalho, que sobre determina o conjunto da realidade, podemos afirmar, sem dúvida, que o capitalismo se instalou em alguns limites que começam a questionar seriamente a viabilidade da vida no planeta.
Viver de outro modo se torna uma demanda pela sobrevivência da espécie. Nossa acelerada sociedade come o futuro a tal velocidade que o faz desaparecer diante de nossos olhos e, dessa maneira, impossibilita qualquer olhar que pretenda modelá-lo. Não resta outra coisa, portanto, que intervir diretamente sobre o nosso presente, a única opção que o neoliberalismo nos deixa, e enfrentá-lo a partir de novos modos de vida, expressão desse novo senso comum ao qual nos referimos.
Como dizia, o capitalismo neoliberal está evidenciando os limites de elasticidade do planeta, sendo possível cunhar termos tão infelizes, mas reais, como o de basuraleza [termo em espanhol para reforçar o impacto do lixo na natureza]. Realidades como a mudança climática, a poluição das águas fluviais e marinhas, a poluição do ar, a migração e a extrema precarização das formas de trabalho exigem um repensar radical e global dos modos de vida.
Evidentemente, o neoliberalismo não apenas não caminha nessa direção, como também aprofunda a cada dia em um modelo explorador e predatório, com um impulso suicida jamais conhecido na história. O neoliberalismo desconhece o futuro, só está interessado no presente. Preocupado com o lucro imediato, não se preocupa com seus efeitos futuros. E ao nos colocar diante dessa ausência do futuro, nos obriga a agir sobre o presente.
Se algo se encontra ameaçado em nosso presente é aquilo que, Spinoza dixit, caracteriza a todo indivíduo: a permanência no ser. É o conatus que se encontra em perigo. O neoliberalismo é, apontamos em outras ocasiões, profundamente idiota, promove um individualismo tão míope que, obcecado em seu interesse particular - sob os parâmetros estabelecidos pelo senso comum neoliberal, se entende-, o indivíduo coloca em risco seu próprio futuro. No esforço de cultivar seu presente, bloqueia as possibilidades do futuro, tanto individual como coletivo.
É por isso que se impõe a necessidade de desenvolver uma política do conatus, mais especificamente o conatus da multidão. Porque se Spinoza teorizou sobre o conatus aplicado ao indivíduo, é preciso recordar que o indivíduo em Spinoza é sempre um ente composto e que a multidão também pode ser entendida como um indivíduo.
De tal modo que não é forçar em excesso Spinoza, embora também não nos importaria muito o submeter a esses excessos a respeito dos quais Deleuze falava para a história da filosofia e que culminavam em filhos engendrados ‘contra natura’, se propomos o desenvolvimento de uma política baseada no conatus da multidão, ou seja, em práticas que permitem a permanência do ser no planeta, condição indispensável para a sobrevivência da espécie.
Frente ao imperativo do gozo individual que o neoliberalismo elevou à máxima do sistema, o novo senso comum antagonista deve ser construído a partir do que denominamos o imperativo moral da multidão e que, com óbvias ressonâncias kantianas, se enuncia do seguinte modo: "Atua de tal maneira que seus atos possibilitem o conatus da multidão, a manutenção no ser da humanidade em seu conjunto e das gerações futuras". Não se trata de outra coisa senão abandonar a idiotice capitalista para desenvolver práticas articuladas sobre uma política do comum.
Duas precisões complementares se impõem. A primeira, que essas políticas do comum têm que ser construídas em função dos interesses de uma imensa maioria social do planeta, cujo futuro se encontra comprometido pela suicida voracidade pleonéxica do neoliberalismo. Estamos convencidos da possibilidade de articular um programa político que responda a essas necessidades globais, que proteja a natureza e que instaure novas formas duradouras de vida, produção e trabalho.
A segunda é que, ainda que falemos da humanidade em seu conjunto, fazemos isso a partir de uma perspectiva reguladora, consciente da realidade do conflito e que a instauração de uma política e uma sociedade com tais características colide com os interesses de uma poderosa minoria social que se aplicará denodadamente para impossibilitar essas mudanças.
Pensar na humanidade não significa desconhecer a realidade da obstinada idiotice de uma parte dela, que terá que ser combatida sem nenhum reparo. Porque, como dizia Sartre, não acreditamos na conversão de todos à moral. Nós nos contentamos em pensar que é possível que uma maioria social abrace esse imperativo moral da multidão e o transforme em política antagonista. Não é uma tarefa menor.
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O imperativo moral da multidão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU