14 Mai 2019
Não é só pela abertura aos migrantes. O identitarismo exagerado dos partidos nacionalistas precisaria também precisaria se fundamentar na religião. Mas o papa impediu isso categoricamente. Contendo o avanço populista.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada em Lettera 43, 13-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma faixa foi aberta na Via della Conciliazione, por ocasião do Regina Coeli dominical, 12-05-2019, (que nesta época do ano substitui o Ângelus), no momento em que a Praça de São Pedro estava repleta de pessoas, de fiéis, de turistas, que acorreram para ouvir o papa (veja abaixo).
O slogan é banal: “Bergoglio como Badoglio, parem a imigração” [Pietro Badoglio foi um militar fascista e ex-primeiro ministro italiano, que também foi embaixador no Brasil. Em 1943, assinou um Armistício com os Aliados, considerado um gesto de traição ao fascismo]. O grupo neofascista Forza Nuova leva a termo a blitz – definido como “operação” – praticamente sem ser incomodado. Um pequeno fato, pode-se dizer, uma provocação de poucos extremistas de direita. Em parte é isso, mas o caso está destinado a deixar a sua marca.
Em primeiro lugar, pelo fato em si. Não é a primeira vez que algum grupo organizado se aproxima do Vaticano e de São Pedro para promover suas próprias mensagens ou para desafiar alguns aspectos do magistério da Igreja. Geralmente, em tempos mais ou menos rápidos, a polícia intervém para impedir os mais agitados ou aqueles que transmitem mensagens ofensivas.
Certamente, é quase incrível que, durante o tradicional encontro do papa com os fiéis, o bispo de Roma seja insultado em público, além disso por um movimento conhecido pelas posições xenófobas, antidemocráticas, neofascistas. Isto é, o primeiro dado diz respeito à ordem pública. Como tal faixa pôde ser desdobrada e fotografada tranquilamente? Quem habitualmente frequenta a Praça de São Pedro, em particular para a Audiência Geral das quartas-feiras ou para os Ângelus dominicais, sabe muito bem que a região normalmente pulula de agentes das forças da ordem, todos são controlados, há barreiras e policiais que revistam turistas e fiéis.
Seria interessante entender o que ocorreu com os inúmeros dispositivos de segurança que, pelo menos nas intenções, deveriam ser capazes de frustrar atentados e, ao contrário, se revelaram inadequados para conter um grupo de extremistas.
No domingo, 12 de maio, assistiu-se a uma tentativa de intimidação contra o papa e o seu magistério, reivindicado, aliás, nas mídias sociais, pela própria Forza Nuova. “Hoje, no Ângelus”, escreveram em um comunicado, “contestamos duramente Jorge Bergoglio, comparando-o a Badoglio, por ser o símbolo universal da traição mais vergonhosa”.
As acusações dirigidas ao pontífice são as mesmas que sempre vêm de certos ambientes: favorecimento da substituição étnica (“a raça italiana”), a não defesa da doutrina e das verdades da fé, abertura à imigração islâmica (porque, se for cristã, tudo bem?, se poderia perguntar... mas parece que não).
Francisco, por sua vez, travou uma verdadeira batalha para restituir humanidade a um mundo que parece ter perdido o princípio de fraternidade e o respeito pelos direitos humanos. Na base dessa abordagem, para o pontífice, está o Evangelho interpretado na sua radicalidade, na sua mensagem que muitas vezes contrasta com os poderes e as razões do mais forte, que se torna “político” – isto é, tende a orientar a vida pública – no confronto aberto com uma época ou uma temporada, na sua encarnação na história através do testemunho dos homens e das mulheres.
É nesse sentido que devem ser entendidas as palavras de Bergoglio ou a ação de um cardeal como Konrad Krajewski, que, por profissão, é o esmoleiro do pontífice, capaz de descer ao porão de um edifício ocupado por 420 pessoas no centro de Roma para reativar a corrente elétrica para uma comunidade de famílias que não pode ser deixada sem luz e água como se se tratasse de um cerco medieval.
O magistério de Francisco leva os cristãos – e também os não crentes – novamente à responsabilidade de uma ação que não desconsidera o outro, as comunidades, as nações e os povos, que não odeia, mas constrói juntos, por mais difícil que seja esse caminho.
A palavra do papa, no entanto, não contém – exceto em alguns casos diplomáticos – uma solução política específica, não faz as leis dos governos, não traz consigo a resposta para cada aspecto do problema migratório, mas descreve uma escala de valores dentro da qual é possível enfrentar a crise e os dramas de uma época, é uma espécie de bússola para as consciências. E é justamente isso que incomoda.
A Igreja de Bergoglio não é chamada a se fechar dentro de antigos paramentos e liturgias vazias, mas sim a ter voz no mundo que muda, enquanto em todo o Ocidente (e não só) está em curso uma tentativa de subverter ou modificar princípios democráticos que se acreditavam consolidados.
O identitarismo exagerado dos partidos nacionalistas e dos movimentos de extrema-direita também precisaria se fundamentar na religião, mas é precisamente essa identificação entre o nacionalismo e Igreja que foi completamente rejeitada pelo papa. De fato, o avanço populista não pode contar com a Santa Sé, ao contrário, ela se opõe a ele, e isso não é pouca coisa.
O fato de ter separado a Igreja Católica dos filões mais sombrios e autoritários do pensamento conservador é um mérito do Concílio Vaticano II. E esse caminho continuou com os pontífices que, a partir de Paulo VI, sucederam-se no sólio de Pedro. Uma vez que o catolicismo escolheu a democracia como forma histórica da modernidade – mesmo que entre recuos, saltos, freadas, contratestemunhos, conflitos internos – as consequências tornaram-se, em certa medida, inevitáveis.
Francisco, por sua vez, coloca a questão ainda mais no plano global e, por isso, é mais detestado: ele pede que não esqueçamos os ofendidos, os rejeitados, os migrantes, os perseguidos onde quer que estejam – na ilha de Lesbos, em Casal Bruciato, entre os jovens desempregados europeus –, e, ao fazer isso, também põe em maus lençóis muitos dos “seus” – padres e bispos – já habituados a cochilar em algumas cúrias e em algumas sacristias, além daqueles católicos que, no moderatismo e no espiritualismo, sempre encontraram um bom refúgio dos clamores do mundo.
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Por que Francisco é um obstáculo para a extrema direita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU