01 Mai 2019
"Avança, também em novos públicos, a noção de que o sistema atual precisa ser superado. Mas como fazê-lo, sem resvalar para um socialismo burocratizado e autoritário? Estão surgindo elementos para uma nova saída", escreve Georges Monbiot, jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido, em artigo publicado por Outras Palavras, 29-04-2019.
Durante a maior parte da minha vida adulta lutei contra o "capitalismo corporativo”, o “capitalismo de consumo” e o “capitalismo clientelista”. Demorou um tempão até eu perceber que o problema não é o adjetivo, mas o substantivo. Enquanto algumas pessoas rejeitaram o capitalismo com prazer e sem demora, eu fiz isso devagar e relutantemente. Em parte porque não via alternativa clara: ao contrário de alguns anticapitalistas, nunca fui entusiasta do comunismo de Estado. Fui também inibido por causa de seu status religioso. Dizer no século 21 que “o capitalismo está fracassando” era como dizer “Deus está morto” no século 19: uma blasfêmia secular. Requer um grau de autoconfiança que eu não possuía.
Mas conforme fui ficando mais velho, reconheci duas coisas. Primeiro, que é o sistema, e não qualquer variante do sistema, que nos conduz inexoravelmente em direção ao desastre. Segundo, que não é necessário produzir uma alternativa definitiva para dizer que o capitalismo está falido. A declaração vale por si. Mas isso também exige de nós um esforço diferente, para desenvolver um novo sistema.
As falhas do capitalismo derivam de dois de seus elementos fundadores. O primeiro é o crescimento perpétuo. O crescimento econômico é resultado da busca de acumular capital e extrair lucro. Sem crescimento o capitalismo entra em colapso, mas o crescimento perpétuo num planeta finito leva inexoravelmente à calamidade ambiental.
Aqueles que defendem o capitalismo argumentam que, conforme o consumo muda de bens para serviços, o crescimento econômico pode ser dissociado do uso de recursos naturais. Semana passada um estudo publicado no jornal New Political Economy, de Jason Hickel e Giorgos Kallis, examinou essa premissa. Ele revela que, embora uma dissociação relativa tenha ocorrido no século XX (o consumo de recursos materiais cresceu, mas não tão rápido quanto o crescimento econômico), houve no século XXI uma reassociação: até aqui o crescimento do consumo de recursos igualou ou excedeu a taxa de crescimento econômico. A dissociação absoluta necessária para evitar a catástrofe ambiental (redução do uso de recursos materiais) nunca foi alcançada, e parece impossível enquanto o crescimento econômico continuar. O crescimento verde é uma ilusão.
Um sistema baseado no crescimento perpétuo não pode funcionar sem periferias e externalidades. Precisa sempre haver uma zona de extração – da qual os materiais são retirados sem pagamento integral – e uma zona de descarte, onde os custos são despejados na forma de detritos e poluição. Como a escala de atividade econômica aumenta até o capitalismo afetar tudo, da atmosfera ao solo oceânico mais profundo, o planeta inteiro torna-se uma zona de sacrifício: todos habitamos a periferia da máquina-de-fazer-lucros.
Isso nos conduz em direção à catástrofe, numa escala tal que a maioria das pessoas não consegue imaginar. O colapso que ameaça os sistemas que dão suporte à vida é de longe maior que a guerra, a fome, a peste ou a crise econômica, já que provavelmente incorporará todos os quatro. As sociedades podem se recuperar desses eventos apocalípticos, mas não das perdas de solo, de uma biosfera abundante e de um clima habitável.
O segundo elemento definidor é o pressuposto bizarro de que uma pessoa está autorizada a ter, da riqueza natural do mundo, uma parte tão grande quanto seu dinheiro pode comprar. Esse sequestro dos bens comuns causa outros três deslocamentos. Primeiro, disputa pelo controle exclusivo de bens não reproduzíveis — o que implica violência ou supressão jurídica dos direitos de outras pessoas. Segundo, falta de solidariedade pelas pessoas, numa economia baseada na pilhagem, no espaço assim como no tempo. Terceiro, tradução do poder econômico em poder político, pois o controle sobre recursos essenciais leva ao controle sobre as relações sociais que o cercam. No New York Times de 19/4, o Nobel de economia Joseph Stiglitz quis fazer uma distinção entre capitalismo bom, que chamou de “criação de riquezas”, e capitalismo mau, que chamou de “saque de riquezas” (ou rentismo). Entendo sua distinção. Mas, do ponto de vista do meio ambiente, criação de riquezas é saque de riquezas. Crescimento econômico, ligado intrinsecamente ao progressivo uso de recursos materiais, significa sequestrar riqueza natural, tanto dos sistemas vivos quanto das gerações futuras.
Apontar para tais problemas é atrair uma enxurrada de acusações, muitas das quais baseadas nesta premissa: o capitalismo resgatou centenas de milhões de pessoas da pobreza – e agora você quer empobrecê-las novamente. É verdade que o capitalismo, e o crescimento econômico que produz, melhoraram radicalmente a prosperidade de um grande número de pessoas, ao mesmo tempo em que destruíram a prosperidade de muitos outros: aqueles cuja terra, mão-de-obra e recursos foram sequestrados para abastecer o crescimento em outros lugares. Grande parte da fortuna das nações ricas foi – e é – construída sobre escravidão e expropriação colonial.
Assim como o carvão, o capitalismo trouxe muitos benefícios, Mas, como o carvão, ele agora causa mais mal do que bem. Assim como descobrimos meios melhores e menos prejudiciais de gerar energia que o carvão, precisamos descobrir meios de gerar bem-estar humano melhores e menos prejudiciais que o capitalismo.
Não tem volta: a alternativa ao capitalismo não é nem o feudalismo nem o comunismo de Estado. O comunismo soviético tinha mais em comum com o capitalismo do que os defensores de qualquer desses sistemas ousariam admitir. Ambos os foram (ou são) obcecados com a geração de crescimento econômico. Ambos estão dispostos a infligir níveis surpreendentes de destruição na busca deste e de outros fins. Ambos prometiam um futuro em que trabalharíamos apenas algumas horas por semana mas exigem, ao contrário, um trabalho brutal e sem fim. Ambos são desumanizadores. Ambos são absolutistas, e insistem que o seu, e apenas o seu, é o único Deus verdadeiro.
Como seria um sistema melhor? Não tenho uma resposta acabada, e não acredito que alguma pessoa a tenha. Mas penso ver um esboço rudimentar emergindo. Parte dele é proporcionado pela civilização ecológica proposta por Jeremy Lent, um dos maiores pensadores da nossa era. Outros elementos vêm da economia da rosquinha de Kate Raworth e do pensamento ambiental de Naomi Klein, Amitav Ghosh, Angaangaq Angakkorsuaq, Raj Patel e Bill McKibben. Parte da resposta está na noção de “suficiência privada, luxo público”. Outra parte surge da criação de um novo conceito de justiça, baseado neste simples princípio: toda geração, em todo lugar, terá direitos iguais ao usufruto da riqueza natural.
Acredito que nossa tarefa seja identificar as melhores propostas de vários pensadores diferentes e articulá-las numa alternativa coerente. Como nenhum sistema econômico é apenas um sistema econômico, mas penetra em todos os aspectos de nossa vida, precisamos de muitas mentes, de várias disciplinas – econômicas, ambientais, políticas, culturais, sociais e logísticas – trabalhando colaborativamente para criar uma maneira melhor de nos organizar, que atenda às nossas necessidades sem destruir nossa casa.
Nossa escolha se resume a isso. Acabar com a vida, para permitir que o capitalismo continue, ou acabar com o capitalismo para permitir que a vida continue?
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Para pensar além do capitalismo. Artigo de Georges Monbiot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU