14 Março 2019
O trabalho e as relações econômicas não sustentam apenas nossa vida material. Exercem um papel chave na construção de identidades individuais e coletivas”. Esta é a ideia principal com a qual a antropóloga Silke Meyer participou, em fevereiro, do ciclo de debates no CCCB: A dívida: novos e velhos vínculos europeus. Diante de um público atento, falou sobre A Europa transnacional: dinheiro e identidades em fluxo, e a isso também fez referência nesta entrevista.
Meyer é professora associada no Instituto de História e Etnologia Europeia da Universidade de Innsbruck. Especializada em antropologia econômica, estuda o dinheiro como práxis social e cultural. Neste âmbito, lidera o projeto Follow the Money, que analisa o impacto do envio de remessas de dinheiro por parte dos imigrantes na criação de identidades transnacionais. É membro do seminário doutoral Dinâmicas da desigualdade e a diferença na era da globalização e recebeu vários prêmios por Money Matters (O dinheiro importa).
A entrevista é de Mariana Vilnitzky, publicada pela Revista Alternativas Económicas, 02-2019. A tradução é do Cepat.
Em seus ensaios, relaciona a dívida com a identidade. Como funciona esse vínculo?
Como antropóloga, considero a dívida uma ação guiada pela reciprocidade. Você dá algo, recebe algo em troca. Apesar de a transação financeira ser líquida, há algo que nos compromete. E essa relação vai além da transação. Essencialmente, uma prática econômica é também uma prática social. Isso funciona para indivíduos e para sociedades, na dívida estatal.
Eu sigo muito a Maurizio Lazzarato, em suas ideias sobre “o homem endividado”. Pude ver suas teorias em minha pesquisa sobre a insolvência privada e como as pessoas enfrentam essa insolvência. Entrevistando as pessoas, conseguia perceber que a maneira como explicavam a história não era exatamente o que havia acontecido, mas era a forma como desejavam que eu as visse. A maneira como você conta a história está muito na linha dos imperativos sociais sobre o que os outros querem que você seja.
Se você deseja sair de uma dívida financeira, precisa sair da dívida moral. Na Alemanha, existe uma Lei de Insolvência, que oferece uma espécie de código de conduta. Você precisa se comportar. Tem que tentar sair para trabalhar, aceitar qualquer trabalho, deixar que o Estado veja suas relações financeiras, etc. Tudo depende de ser responsável, ter iniciativa, ser aberto e flexível.
Isso é ruim?
Depende. Não é ruim porque lhe oferece uma maneira de se livrar da dívida, mas é ruim porque sugere, de uma forma muito profunda, que você deve assumir sua própria responsabilidade por sua dívida. De alguma maneira, torna invisível o contexto estrutural de sua dívida. Conversei com mulheres cujos maridos as abandonaram, que estão doentes, que ficaram desempregadas. E elas não me contavam sobre estas situações. Contavam-me como eram boas agora, como se organizavam, como podiam ir respondendo a suas próprias dívidas. De alguma maneira, tornavam invisível o contexto político de sua dívida, frente às responsabilidades individuais. É uma armadilha: você assume sua responsabilidade sobre suas ações, é culpa sua. E acredito que isso é muito duro, porque você não pode dizer: “bom, fiquei desempregada”, porque tudo cai sobre você, que deve ter iniciativa. O que Lazzaratto chama de “o homem endividado” é um subtexto muito neoliberal. Tem tudo a ver com este regime, que não é só externo, feito por bancos ou o Estado, mas também interno, e pode ser muito destrutivo.
De alguma forma, esta é a ideia da Plataforma de Atingidos pela Hipoteca (PAH): fazer as pessoas compreenderem que não é culpa sua, que havia culpados políticos.
É isso: a dívida não é culpa sua. É o mesmo, no contexto dos Estados Unidos, com as subprime. O que aconteceu ali foi que eram pessoas que não podiam fazer uma dívida. O que os bancos lhes ofereceram era lixo. Não checaram nada. Cobraram delas qualquer honorário. E depois retiraram suas casas. É difícil dizer “não é culpa sua”. Você assinou o contrato, fez os cálculos em sua cabeça. Mas, talvez, não calculou que poderia ficar doente. E não há rede, não há rede de bem-estar social. Se seu filho adoece, o que você faz?
Em seus textos, você fala da “lógica da cultura do endividamento”. Qual é essa lógica?
Quando eu lhe peço um crédito, você tem permissão para ver minha história, caso não me conheça. Melhor, faz uma checagem, e é o que os bancos fazem. De outro ponto de vista, se eu lhe peço dinheiro e você me dá 2.000 euros, eu tenho uma qualificação creditícia, uma solvência creditícia, de 2.000 euros.
O que aconteceu na Alemanha por um tempo, embora agora acredito que seja ilegal, é que você pedia um crédito para o consumo de 2.000 euros, e eles diziam: peça mais. Toma 3.000 ou 5.000. Faziam muito ativamente com que você se endividasse com mais do que precisava, porque é claro sabiam que você gastaria. Do ponto de vista da dívida, as pessoas pensam: “Oh, se me dizem que me dão 5.000, embora tenha solicitado 2.000, isso quer dizer que eu posso. E posso gastá-los. Essa é a lógica da cultura do endividamento, que promove o gasto. É claro, se não checam quem eu sou, não significa nada que receba um crédito. É muito fácil cair na armadilha. Eu também caí. Quando eu era uma estudante de doutorado, entrei em um banco só para ver quanto iria sacar. Mas, eu não tinha dinheiro. Acabava de entrar na universidade. Conversei no banco e eles me ofereceram mais dinheiro e eu estava realmente surpresa, mas, ao mesmo tempo, lisonjeada. Pude ver como até mesmo em uma situação na qual você precisa de dinheiro, recebe mais que o mínimo, e interpreta: confiamos em você.
É claro, você precisa devolver.
O crédito e todos os honorários, que as pessoas acabam não vendo. Depois, pede-se outro cartão para juntar todos os créditos. E sempre vai a mais.
Nesse sentido, sobre o significado da dívida, diz que ter um crédito nos Estados Unidos, faz de você um empreendedor, mas na Alemanha um perdedor...
Sim. As razões têm a ver com a história dos dois países. Os Estados Unidos foram um país de imigrantes por centenas de anos. As pessoas chegam e não têm nada. E se desejam começar um negócio, pegam dinheiro emprestado. Na Alemanha, Áustria, Espanha e outros países, você precisa ter algo, antes de receber um crédito. Esta ideia de se chegar a um local e não ter nada e receber um crédito é muito estranha. No contexto alemão, isto tem que ver com o nacional-socialismo, que era muitas coisas, mas não era da classe média. A ideia da poupança foi muito atrativa para a classe média, nos anos 1950, momento em que todo o mundo queria se distanciar do nacional-socialismo. Precisavam ser austeros.
A ideia de ser austeros é boa, não é?
Quando era estudante no doutorado em Londres, tinha muito pouco dinheiro. E tinha amigos que trabalhavam e tinham mais dinheiro que eu, mas constantemente viviam no crédito. Tinham uma vida muito boa, e era por meio deste cartão de crédito. Eu não podia fazer isso. Era minha cultura. É claro, é a cultura histórica, o modo como cresceu em relação ao dinheiro. Eu podia ver que viviam bem suas vidas. Não tinham medo de gastar.
A diferença com os países de fala inglesa é que o crédito é muito da classe média. Você tem que pagar muito dinheiro para ir à universidade. Nessa idade é muito normal que tenha uma dívida muito grande.
E também depois é muito difícil de pagar...
Sem dúvida, mas é parte da vida da classe média. Se você quer uma boa educação, paga por ela. É normal. Na Alemanha, não. Nossa educação é gratuita, sendo assim, quando eu me formei, não tinha dívidas. Há muitas pessoas jovens dos Estados Unidos e inclusive muitíssimas do Reino Unido endividadas, que perdem seu terror. Vê-se como algo normal.
Por isso, agora querem que lhes perdoem as dívidas. Mas, por outro lado, o medo alemão ou espanhol da dívida também é o medo do empreendedorismo. É muito arriscado se endividar para empreender.
Existe a ideia de que se você fez uma dívida, fez algo ruim. Se tem uma casa, moralmente não há problema. Mas, se não tem nada para mostrar é moralmente ruim. Justamente, acabo de escrever um texto no qual comparo dois programas de televisão sobre empreendedores. Um nos Estados Unidos, que se chama “Vida ou morte”, no qual há investidores que dizem: “Agiu mal. Não investiu corretamente, etc.”. E o alemão, no qual há um trabalhador social, que está completamente em sintonia com “o homem endividado” do qual falávamos antes: “Você está endividado. O que considera que aconteceu contigo? Como chegou até aqui?”, tornando a pessoa que está endividada responsável.
Tudo gira em torno do fato de que você precisa enfrentar a dívida, precisa assumir toda a responsabilidade. Não se fala, é claro, de que não era você. De que habitualmente as pessoas fazem as contas de forma errada. Ou que se encontrava em uma situação difícil, sendo autônomo. Não é pessoas estejam endividadas, vivendo uma vida glamorosa. São frequentemente pessoas sobre as quais o mundo foi caindo, porque se quebrou uma máquina, porque uma coisa levou a outra, porque não tinha o capital social da família. Por exemplo, se você é taxista e precisa urgentemente de um pouco mais de dinheiro porque o carro quebrou e não consegue. É desse tipo de situação. E acredito que também por isso os pobres pagam mais, porque podem entrar nesses momentos em que precisam de um crédito e são obrigados a aceitar honorários e condições mais desfavoráveis. Se você tem 50.000 euros em efetivo, consegue buscar a oferta mais barata. Se tem 2.000, precisa aceitar o que lhe oferecem.
Você diz que a dívida e a identidade estão ligadas à globalização. Como é essa relação?
O ângulo que estudamos é através das remessas: o dinheiro que os migrantes devolvem a seus países. É muito dinheiro. Quase três vezes mais que a ajuda ao desenvolvimento em todo o mundo. A ideia da identidade transnacional é o fato de viver em muitos lugares, não só aqui ou só ali, mas um pouco nos dois lugares. É possível seguir esta situação através das remessas. Tornaram-se algo de todos os dias para os migrantes. Há uma rede global que conecta uns com outros. E quando você entrevista essas outras pessoas, vê que essas remessas formam sua identidade.
De que maneira?
Na pesquisa Segue o dinheiro (Follow the money), estudamos o nexo migratório entre Áustria e Turquia. Trabalhamos em uma comunidade pequena, de umas 4.000 pessoas, chamada Valle de Fulpmes in the Stubai, um lugar muito bonito de resorts de férias, esqui, caminhadas, natureza. E entre estas 4.000 pessoas, há umas 900 de origem turca, o que é muito na Áustria. Isto tem uma origem histórica. Nos anos 1960, houve um convite para que as pessoas da Turquia viessem trabalhar nesta região. Muitos permaneceram, trouxeram seus pais, instalaram-se, possuem bons trabalhos e se tornaram uma comunidade muito transnacional. Não chamaria de diáspora turca. Trata-se de uma comunidade transnacional.
Em seus textos, diz que há uma diferença entre uma comunidade cosmopolita e outra transnacional...
Quando falo de transnacionalismo, falo de pessoas que se conectam para além das fronteiras, durante toda a vida. Que vivem seu dia a dia, sua vida familiar, para além das fronteiras. Mas não é de uma maneira na qual as fronteiras não importam. Não estamos em um mundo que esteja se tornando global, onde os Estados não importam e somos abertos. Justamente, a comunidade é transnacional pelos regimes das fronteiras, na União Europeia. Tem a ver com os passaportes duplos, o Schengen, o brexit. É justamente sobre os Estados-nação. Podemos notar também na comunidade turca que tudo o que acontece na Turquia mostra uma forte renacionalização. No contexto turco, sentem isso de uma maneira muito forte, com tradição, com história, com trajes. Estão inventando a nação como a conhecemos no século XIX. Está ocorrendo novamente. E no contexto turco na Áustria era uma comunidade muito transnacional, mas foi renacionalizada.
Renacionalizada na perspectiva turca?
Sim. E diria mais, na perspectiva otomana. É a ideia da herança cultural, de ser superior, não importa em relação a quem.
Isso acontece em muitos lugares...
Claro. Se quero fazer a minha nação forte, o que eu digo? Que estive aqui sempre. Nenhum de nós esteve sempre aqui, nem qualquer nação. Mas é uma narrativa muito poderosa.
Mas, nesse casso, ser turco é ser inferior.
A narrativa da superioridade é muito forte justamente porque na vida ordinária as pessoas os fizeram se sentir inferiores. A história dos trabalhadores convidados foi triste em muitos casos; e isto volta ao Governo austríaco, porque a diáspora turca, que é uma comunidade muito transnacional, tornou-se mais isolada. Isso nunca é uma boa coisa.
Contudo, o que a dívida tem a ver com a ideia de superioridade de um país?
Neste caso, a ideia da dívida está diretamente relacionada à identidade transnacional, na qual as remessas, embora não sejam dívidas estritas, representam um regime de pagamentos. Também dependem da reciprocidade: alguém dá algo e está esperando algo em troca. E é bem difícil, pois não há contrato. É parte da lealdade, da solidariedade, da nostalgia e é uma influência na comunidade. Mas, ao mesmo tempo, me liga a essa comunidade de forma eterna. É algo muito interno: você precisa fazer, deve agir assim de alguma maneira. E é muito difícil não ser assim. Sabemos que a situação econômica, praticamente, dá apenas para sobreviver, mas continuam enviando dinheiro para casa.
Nós encontramos que a situação muda comumente depois dos sete anos, quando pode ser que retorne a seu país de origem, ou a família se regulariza em uma nova casa. E muda também a maneira como você paga. A geração da qual estamos falando pode ser que não dê mais dinheiro, mas, sim, coisas como eletrodomésticos, ferramentas, etc. Ou pode ser que não dê dinheiro à família, mas, sim, a uma instituição religiosa, como doação. Não é um pagamento direto, mas existe essa assimetria entre o que envia e o que recebe.
Tem a ver com o poder...
Frequentemente, quem oferece o crédito é o poderoso e quem recebe não, e o que encontramos na situação com os migrantes é que este dinheiro é tão desesperadamente necessitado, que se inverte. Quero dizer que, em alguns casos, quem paga é mais frágil do que quem recebe, porque é obrigado a fazer isso.
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“A dívida não é culpa sua”. Entrevista com Silke Meyer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU