04 Março 2019
Edward Luz, conhecido por questionar territórios indígenas, pode ser o segundo homem mais poderoso da Funai. Antropólogo trabalha para latifundiários no oeste do Pará ao questionar demarcações de terras indígenas e quilombolas, o que agrava o conflito na região.
A reportagem é de Antônio Carlos e Ana Magalhães, publicada por Repórter Brasil, 28-02-2019.
Edward Luz, que ficou conhecido nos últimos anos como o “antropólogo dos ruralistas”, é o nome cotado pelo governo Bolsonaro para assumir o segundo cargo mais alto da Funai, conforme apurou a Repórter Brasil. Considerado um dos maiores inimigos do movimento indígena brasileiro, ele é famoso por fazer laudos pagos por fazendeiros contra a demarcação de terras indígenas e quilombolas no Brasil, uma atuação quem vem agravando o conflito agrário no oeste do Pará. Apesar de não haver vice-presidência na fundação, a tendência é tornar Luz o segundo homem mais poderoso na instituição.
Luz diz que ainda não recebeu o convite do governo Bolsonaro, mas confirma que seu nome chegou às instâncias mais altas em Brasília por indicação de “uma ministra”. Para aceitar o cargo, o antropólogo assume que terá que checar se não haveria conflito de interesses, já que presta consultorias particulares para fazendeiros e representantes do agronegócio que contestam a identidade de indígenas e quilombolas. “Na Funai ou na Justiça, tenho cerca de 19 contestações de terras indígenas”, disse em entrevista à Repórter Brasil.
Luz foi desligado da Associação Brasileira de Antropólogos em janeiro de 2013 por ter “postura não compatível com a ética profissional” e por atuar “em direta sintonia com os interesses das redes políticas das quais participa, de forte viés conservador e autoritário”, segundo a organização. Ele, porém, afirma que pediu o desligamento da instituição “ao perceber em 2012 que o clima de patrulhamento ideológico promovido pela militância engajada tornara o ambiente tóxico à livre manifestação e ao livre exercício da profissão de antropólogo no Brasil.
Atualmente, o antropólogo é disputado por fazendeiros e empresários da região de Santarém, no oeste do Pará, para preparar ações judiciais e administrativas contra territórios indígenas e quilombolas demarcados. Luz contesta a autodenominação de alguns povos e quer criminalizar o que seriam “autodeclarações fraudulentas”. Ele afirma que as comunidades mentem sobre sua identidade – o que ele chama de “fraude étnica” –, acusações que geram forte reação de indígenas e quilombolas e até do Ministério Público Federal de Santarém, que já contestou os argumentos do antropólogo.
“A própria nomenclatura equivocada do território indígena [feita por Luz] denota a completa ausência de informações seguras acerca da reivindicação. Como resultado, um número bem superior de pessoas são envolvidas desnecessariamente no conflito, acirrando ainda mais a animosidade entre as partes, e a hostilidade contra os indígenas”, informou o MPF em ação civil pública.
A coordenadora-executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Sonia Guajajara, afirma que criminalizar a autodeclaração é uma prática colonial. “Para propor um novo indigenismo no Brasil, requer-se necessariamente reconhecer a autodeterminação dos povos à sua identidade e aos seus territórios”, diz Guajajara.
As acusações de fraude feitas por Luz recaem também sobre o Incra, como no episódio da contestação do Tiningu, reconhecido como território quilombola em outubro de 2018, mas onde ele alega ocorrer “fraude étnica”. Quando questionado se o Incra, órgão do governo federal, também cometeria fraude nesses reconhecimentos, Luz afirma que o problema da instituição é a “ditadura do politicamente correto”. “Chega no ponto em que o órgão público, muitas vezes desconfiando da narrativa [das comunidades], não consegue ou não tem vontade política de falar por causa da ditadura do politicamente correto”, afirmou.
A Funai não confirma a indicação de Luz e lembra que algumas nomeações têm sido realizadas diretamente pela Casa Civil.
Contratado no início de 2018 por fazendeiros ligados ao Sindicato Rural de Santarém (Sirsan), Luz tem feito mais do que contestar os laudos antropológicos nos processos demarcatórios. Ele tem articulado e fortalecido os fazendeiros e produtores de soja da região – e parece estar executando muito bem o seu trabalho.
O conflito por territórios está tão acirrado no Planalto Santareno que tanto moradores quanto Luz concordam que há o prenúncio de uma “guerra étnica”, nas palavras do antropólogo. “Está sendo tramado, sendo preparado um confronto étnico. As sementes já foram plantadas lá atrás, há uma década”, afirma Luz. Foi no Planalto Santareno, em 8 de novembro de 2018, que membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA foram intimidados ao tentarem visitar uma comunidade indígena. Dez dias antes, um quilombola fora brutalmente assassinado a golpes de chave de fenda. E, em 11 de dezembro, a Câmara Municipal votou o plano diretor de Santarém, com manobras de última hora, abrindo caminho para a construção de mais um porto na cidade para ampliar o escoamento da soja.
Foi Luz o responsável pela tensão durante a visita dos membros da OEA, que visitaram a comunidade indígena de Açaizal. O antropólogo seguiu a comitiva na estrada, desceu do carro com a câmera ligada, disse algumas palavras em portunhol e levantou o dedo para um membro da corte: “ONGs usam as minorias étnicas contra nossa capacidade produtiva”, gritou. “Isso está prestes a acabar, ano que vem teremos um novo presidente”, concluiu, fazendo referência a eleição recente do presidente Jair Bolsonaro. A OEA emitiu nota e disse que se sentiu intimidada. O antropólogo nega que tenha causado tumulto e afirma que queria apenas dialogar. “Queríamos só dizer à OEA que aquela não era uma comunidade indígena. Não levantei a mão ou a voz de maneira ofensiva, fui apenas firme nas minhas convicções”. O antropólogo, porém, reconhece que sua estratégia de ter seguido de carro a comitiva “não foi a mais inteligente, pois gerou margem para uma má-interpretação”.
Também há articulação de Luz na mudança do plano diretor de Santarém, que abre caminho para a construção do porto Maicá nas margens do rio Amazonas. Foi após reunião com os membros do Sirsan que os vereadores decidiram aprovar a mudança. Os vereadores contrariaram decisão popular de um ano antes, em que a população, em assembleias, não quis o porto.
“Não só participei [do encontro], como promovi a reunião. Fui um dos principais articuladores”, afirma. O novo plano diretor foi sancionado pelo prefeito de Santarém em 17 de dezembro. A construção do Porto de Maicá, porém, ainda depende de licenciamentos ambientais – que estão suspensos por decisão da Justiça Federal até que haja consulta às comunidades tradicionais que vivem ali.
Se, por um lado, Luz teme “guerra étnica” na Amazônia paraense, por outro ele é o primeiro a disparar petardos. Ele acusa organizações como CPT (Comissão Pastoral da Terra) e Cimi (Comissão Missionária Indígena) de serem financiadas por grupos internacionais para promoverem a chamada ‘fraude étnica’.
A CPT rebate as acusações. “Não sei como um antropólogo pode se posicionar contra a identidade indígena. Não tem como ocorrer uma ‘fraude étnica’”, diz Isolete Wichinieski, da coordenação nacional da comissão. “As comunidades se autorreconhecem, mas você tem todo um estudo antropológico que prova isso. Se ele questiona isso, ele está questionando critérios científicos usados para comprovar se é ou não é uma comunidade indígena”. Procurado, o Cimi não se posicionou até a publicação desta reportagem.
Caso assuma o cargo na Funai, Edward Luz interviria para acabar com a parceria da fundação com ONGs. “A Funai precisa ser revista. A primeira é rever a parceria com as organizações não governamentais porque elas têm uma agenda própria que não necessariamente é a agenda dos indígenas.”
Apesar de ser apoiador de Bolsonaro, Luz diz que o presidente não usou as palavras corretas ao dizer que “não haveria mais demarcações de terras indígenas no Brasil”. Ele também critica o presidente da Funai, o general Franklimberg de Freitas. “O atual presidente da Funai precisa urgentemente de uma outra orientação”.
Luz defende a manutenção das demarcações, caso assuma o cargo, mas revendo os critérios da autodeclaração. Desde a posse do presidente Bolsonaro, porém, a demarcação de terras indígenas deixou de ser competência da Funai e passou para a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura.
Outra medida que ele assumiria na Funai seria a de “buscar o diálogo” e permitir mineração em terras indígenas. Antes de ser cotado para a Funai, o antropólogo disse que pretendia propor projeto de lei ao Congresso para criminalizar o que ele chama de autodeclaração “fraudulenta”.
Enquanto Edward Luz diz temer uma “guerra étnica” no Oeste do Pará, Raimundo Benedito da Silva, presidente da associação comunitária do Tiningu, lamenta a tensão na região. “Luz veio para tumultuar. Eles falam que o povo daqui é preguiçoso, que aqui não tem quilombola, que não tem índio”, diz. “Em 1844, seis escravos fugiram de uma senzala e vieram para cá. Todos somos descendentes desses fugitivos”.
Bena, como o líder Tiningu é conhecido, fica triste com as acusações que vem escutando de Luz e de fazendeiros. Ele, porém, promete não ficar acuado. Se o oeste do Pará avança rumo a uma guerra étnica, os quilombolas do Tiningu dizem estar preparados para defender suas terras.
Edward Luz nega que provoque tumultos ou que agrave os conflitos por terras no Pará. “Condeno qualquer forma de manifestação violenta. Mas sou muito incisivo nas posturas que tenho”.
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Cotado para ser o nº 2 da Funai, ‘antropólogo dos ruralistas’ questiona demarcações e agrava conflitos no Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU