29 Janeiro 2019
"O que significa “sentir com a Igreja” durante o difícil processo de globalização? Em uma Igreja cada vez mais diversificada globalmente, com que tipo de Igreja um católico deve “sentir”?"
Inspirado pelo discurso do Papa Francisco aos bispos da América Central, o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, reflete sobre o tema, em artigo publicado em La Croix International, 28-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco se encontrou recentemente com os bispos da América Central enquanto estava no Panamá para a Jornada Mundial da Juventude. E, durante o encontro no dia 24 de janeiro, ele lhes falou sobre São Oscar Romero e sobre um dos principais temas que permeiam o pensamento de Santo Inácio de Loyola – Sentire cum Ecclesia, sentir com a Igreja [assista ao discurso na íntegra, abaixo, em espanhol, no original].
Um elemento proeminente dois dias depois, na vigília noturna da Jornada Mundial da Juventude, foi a mitra de Romero, adornada com seu lema episcopal, “Sentir con la Iglesia”. O lema é um tema central no atual pontificado.
Mas o que significa “sentir com a Igreja” durante o difícil processo de globalização? Em uma Igreja cada vez mais diversificada globalmente, com que tipo de Igreja um católico deve “sentir”?
É uma questão que o jornalista católico Andrew Sullivan levantou em um recente artigo sobre os padres gays.
Embora o Papa Francisco não seja o foco do texto de Sullivan, esse longo artigo (é uma leitura obrigatória!) captou com precisão a situação que o papa está enfrentando: a crescente conscientização de um número significativo de homossexuais no sacerdócio (especialmente no hemisfério ocidental) em uma Igreja Católica que oficialmente ensina que a homossexualidade é uma “propensão objetivamente desordenada” (Catecismo, 2.358).
Francisco gerou manchetes no início de seu pontificado, quando disse notoriamente: “Quem sou eu para julgar?”, depois de ser perguntado sobre um padre gay. Mas o papa não mudou o Catecismo nem as diretrizes do Vaticano sobre os homossexuais e o seminário.
“A Igreja pede que as pessoas com essa tendência enraizada não sejam aceitas no ministério (sacerdotal) ou na vida consagrada”, disse ele em um livro-entrevista publicado no fim de 2018. “É melhor que elas deixem o sacerdócio ou a vida consagrada, ao invés de viverem uma vida dupla”, alertou.
Ora, é verdade que o papa de 82 anos faz uma clara distinção entre ser homossexual e observar o celibato e a castidade, exigidos de todos os sacerdotes e religiosos.
Mas Sullivan está certo quando escreve que “a enorme dissonância cognitiva que isso requer está se tornando mais difícil de sustentar”. Certamente há uma quantidade significativa de dissonância hoje entre o ensino oficial da Igreja e a sua experiência vivida em relação a essa questão.
Mas há outro problema neste momento particular: o papel do bispo de Roma como mestre na Igreja. Que papel o papa desempenha na mudança teológica e magisterial?
A maioria dos católicos, em todo o espectro, dos progressistas radicais aos conservadores tradicionalistas, ainda tem uma concepção do ministério papal baseada nos ensinamentos do Concílio Vaticano I (1869-1870), e não nos do Concílio Vaticano II (1962-1965).
O entendimento deles é que o papa faz com que a tradição da Igreja interprete o modo como a Igreja faz a tradição.
Francisco segue a dois papas, João Paulo II e Bento XVI, cada um com um perfil teológico e magisterial mais parecido com uma estátua sobre um pedestal do que com um baixo-relevo.
Isso não apenas por causa da maneira como Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger interpretaram o papel de bispo de Roma. Isso também se deveu ao fato de que o Vaticano II não substituiu completamente o Vaticano I no que se refere às expectativas que os católicos têm do papado.
É instrutivo ver onde o Vaticano II cita o Vaticano I. A Dei Verbum – a constituição dogmática sobre a revelação divina – cita o concílio anterior apenas uma vez. Mas a Lumen Gentium – a constituição dogmática sobre a Igreja – faz referência ao Vaticano I oito vezes.
Quatro delas estão no terceiro capítulo desse texto, que trata da relação institucional entre o papado e o episcopado, e enfatiza muito cuidadosamente o primado do papa.
A recepção do Vaticano II fez muito para dissuadir os católicos daquilo que Pio IX (papa de 1846-1878) disse sobre o papado – “Eu sou a tradição”. Mas, ao mesmo tempo, a Igreja hoje ainda vive à sombra do Vaticano I.
Isso fica claro pelo modo como a maioria dos católicos em todo o espectro – especialmente em países onde a Igreja está dividida ideologicamente – esperam que o papa faça mudanças teológicas e magisteriais ou defenda os ensinamentos de seus predecessores.
A demanda por um “papado ativista”, em que se espera que o papa desempenhe um papel de autoridade e decisivo na direção da Igreja rumo a uma rota particular, é algo bastante recente.
É um desenvolvimento que surgiu com o crescimento do papado moderno no segundo milênio e especialmente nos últimos 150 anos.
Se é verdade que a Igreja está retornando ao estado de minoria, semelhante aos primeiros séculos, então também é possível que a função do papado possa voltar ao cristianismo policêntrico daqueles primeiros tempos.
A crença de que o papa pode abrir uma nova página na tradição da Igreja, quase por fiat, está em desacordo com o “sentire cum Ecclesia”.
Poderia ser especialmente problemático na Igreja pós-Francisco se aqueles que têm uma visão perigosamente revanchista do papado ganhassem proeminência. Mas tal crença também é problemática em sua própria essência, porque não corresponde à Igreja como comunhão.
Nós vimos isso nesses últimos seis anos. Em algumas questões, Francisco desenvolveu o ensino da Igreja de modo que ele nem sempre, nem ainda, produziu mudanças no Código de Direito Canônico ou no Catecismo.
Mas, sempre que Francisco moveu a direção da Igreja sobre algumas questões, essas mudanças produziram uma reação significativa proveniente dos círculos tradicionalistas e conservadores.
Dois exemplos imediatamente vêm à mente – desenvolvimentos na Amoris laetitia sobre o ensino em torno do casamento e da família e, mais recentemente, mudanças no Catecismo sobre a posição da Igreja em relação à pena de morte.
Em ambos os casos, Francisco foi muito menos o produtor das mudanças do que o intérprete de uma mudança na reflexão teológica em curso da Igreja, nos pronunciamentos magisteriais e na vida pastoral.
Mediante tais movimentos, Francisco desnorteou aqueles fiéis que têm uma noção ideológica da fé católica como sendo conservadora por padrão.
Mas há também uma inquietação em áreas da Igreja global que não podem ser simplesmente associadas a uma ideologização do catolicismo mais típica do hemisfério ocidental. Isso tende a ser particularmente verdade para a questão da homossexualidade na Igreja.
A Igreja Católica sempre foi lenta na mudança, mas agora esse processo está ficando mais complicado por causa das maciças mudanças no tamanho da Igreja e na profundidade das fissuras: aquilo que chamamos de catolicismo global não é apenas uma ampliação das fronteiras, mas também um aprofundamento das divisões.
Catolicismo global significa muitas coisas. Também significa que há um modo diferente de ser papa, mesmo se comparado a alguns anos atrás.
Francisco está claramente ciente disso quando, no início da Amoris laetitia, escreve que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais”.
“Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isso não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela”, observa ele.
Mas o catolicismo global também implica uma maneira diferente de os católicos se relacionarem com a liderança da Igreja e especialmente com o papado.
Esse é o caso da questão da homossexualidade, em que “sentir com a Igreja” é a única maneira de encontrar uma solução católica para a lacuna entre ensino oficial e experiência, entre católicos de áreas do mundo diferentes e entre católicos de gerações diferentes.
Yves Congar, um dos maiores teólogos do século XX, acreditava profundamente na necessidade de atrasos e de passos intermediários para o desenvolvimento do ensino da Igreja.
As ideias se desenvolvem ao longo do tempo, e os atrasos são necessários. Congar acreditava que a implementação de uma reforma na Igreja requer uma sábia hermenêutica do passado, porque “as reformas têm um aspecto de julgamento e de condenação sobre a história e suas insuficiências”.
Uma reforma do ensino católico sobre a homossexualidade implica um aspecto de julgamento sobre o modo como a Igreja lidou com essa questão no passado. Na comunidade católica global, existem entendimentos muito diferentes sobre o que é o passado e o que é o futuro no ensino da Igreja sobre a homossexualidade.
Mas, nessa questão, há poucas dúvidas de que estamos testemunhando o início de uma nova era na Igreja. E, mesmo que às vezes temamos a – ou busquemos conforto na – longa sombra do Vaticano I, fica claro para todos que, com Francisco, não estamos mais no mesmo tipo de papado.
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Na sombra do Vaticano I: o papa, a homossexualidade e a mudança na Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU