07 Janeiro 2019
Ao brindar pelo Ano Novo, algumas pessoas gostam de dizer que é uma oportunidade para uma vida nova. Quando se trata das preocupações que a Igreja Católica enfrenta na América Latina, no entanto, o futuro tem o hábito de se parecer terrivelmente com o passado.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada em Crux, 04-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao fazer seu juramento no primeiro dia do ano, o ex-líder militar de extrema-direita prometeu liberdade religiosa e libertar o país da “ideologia de gênero”, convocando os membros do Congresso a ajudá-lo a “restaurar” a nação, “libertando-a definitivamente do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e submissão ideológica”.
Durante seu discurso de abertura, Bolsonaro também disse que, com seu governo, “vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e a nossa tradição judaico-cristã, combatendo a ideologia de gênero, resgatando os nossos valores”.
A “ideologia de gênero” é uma terminologia frequentemente usada pelo Papa Francisco para condenar a ideia de que alguém pode escolher livremente um gênero, independentemente do sexo com o qual nasceu.
Falando com os bispos poloneses em 2016, durante a Jornada Mundial da Juventude, ele disse: “Na Europa, na América, na América Latina, na África, em alguns países da Ásia, há verdadeiras colonizações ideológicas. E uma delas – digo isso claramente com ‘nome e sobrenome’ – é o gênero. Hoje às crianças – às crianças! –, na escola, se ensina isto: que cada um pode escolher o seu sexo. E por que ensinam isso? Porque os livros são os das pessoas e das instituições que dão dinheiro”.
Ele usou essa expressão muitas vezes desde então, dizendo, por exemplo, que a ideologia de gênero é uma ameaça contra a família.
No entanto, a rejeição de Bolsonaro à ideologia de gênero pode ser a única coisa que ele tem em comum com Francisco, já que o governante brasileiro é frequentemente descrito como homofóbico, e o argentino, como um papa que está tornando a Igreja um lugar mais acolhedor para a comunidade LGTB.
Além disso, Bolsonaro não priorizou os povos indígenas do Brasil, particularmente aqueles que vivem isolados. Estimados em 0,5% da população total, eles vivem em uma área protegida que representa 14% do país na bacia amazônica.
Antes e depois das eleições, o presidente não fez nenhum segredo da sua impaciência em relação àqueles que ele descreve como “indígenas xiitas” e prometeu suspender as multas e amenizar as sanções impostas aos que exploram essas terras.
Bolsonaro também comparou esses territórios a “zoológicos para animais” e disse que quer “integrá-los”, um termo frequentemente usado pela última ditadura militar brasileira como um eufemismo para o extermínio sistêmico dos nativos. Depois de um governo de duas décadas que terminou em 1985, restavam apenas 100 mil indígenas, e o número subiu para 900 mil desde então.
De acordo com o novo presidente, eles têm uma “quantidade excessiva” de terra, e ele acredita que “onde há terra indígena, sempre há riqueza”, em um sinal claro de que pretende explorar esses territórios em busca de minerais e petróleo e para a agricultura.
Francisco, por outro lado, escreveu o primeiro documento papal dedicado inteiramente ao ambiente e está tão preocupado com essa região, que inclui vários outros países latino-americanos, que convocou uma cúpula de bispos para outubro deste ano dedicada exclusivamente àquele que é comumente conhecido como um dos pulmões do mundo.
Depois de um levante civil que começou em abril passado, os bispos locais têm estado no centro do fogo cruzado entre o povo e o governo, que baniu os protestos civis contra Daniel Ortega depois que cerca de 500 pessoas foram mortas pela polícia, pelos militares e pelos paramilitares.
Solicitados pelo governo para mediar uma mesa de diálogo que não chegou a lugar algum, os bispos não ficaram em silêncio enquanto o governo atirava contra as pessoas, nem ficaram calados desde o término do protesto, sempre apelando por justiça, paz e pelas centenas de pessoas que foram presas ou que desapareceram para que fossem libertadas ou pelo menos recebessem um julgamento justo.
É tradição na Arquidiocese de Manágua começar o ano com uma procissão no dia 1º de janeiro. Os bispos locais, o cardeal Leopoldo Brenes e o bispo auxiliar Silvio Jose Baez, estavam prontos para defender essa tradição, apesar do fato Dom Baez estar vivendo quase em reclusão no seminário, depois de ser ameaçado. O governo fez circular um abaixo-assinado pelo Papa Francisco para tirá-lo da Nicarágua.
A tradição de realizar uma procissão no dia 1º de janeiro começou em 1968, e nem mesmo o terremoto de 1972 que devastou a capital foi motivo para cancelá-la. No entanto, na véspera de Ano Novo, a arquidiocese anunciou que ela seria cancelada, e que apenas a missa ao ar livre seria realizada.
Fontes da Nicarágua disseram ao Crux que a Igreja havia sido informada sobre possíveis alvos por parte das forças do governo, e Brenes decidiu agir com segurança.
Dias antes, Brenes havia convocado o povo da Nicarágua para “derrotar o medo” e participar da procissão. No entanto, após o evento, ele reconheceu que a Igreja havia recebido “algumas informações sobre possíveis tensões”, daí a decisão de cancelá-la.
Não estava claro, disse, onde a informação se originou, mas, “para evitar confrontos”, ele consultou muitos padres, “rezou muito”, e determinou que seria melhor suspender a tradição de décadas.
A maior parte da homilia de Brenes girou em torno das palavras de Francisco no dia 1º de janeiro, considerado pela Igreja Católica como o Dia Mundial da Paz. O pontífice disse que a boa política está “a serviço da paz” e, se ocorrer no “respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade”.
“Queremos aconselhar aqueles que fazem política no nosso país a lerem as considerações do papa, porque serão muito úteis para alcançar a paz no nosso país", disse Brenes.
No fim de sua homilia, o prelado rezou para que o povo nicaraguense seja capaz de construir um “futuro digno para todos, em que o dom da diversidade [de pensamento] seja uma riqueza”.
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No Brasil e na Nicarágua, Igreja enfrenta o dilema ''de volta para o futuro'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU