31 Outubro 2018
Se você é um católico estadunidense, australiano, irlandês, alemão, chileno ou de qualquer outro lugar marcado por escândalos de abuso sexual clerical, a notícia de que uma cúpula global de bispos católicos em 2018 chegou à beira de endossar uma política de “tolerância zero”, recuando no último minuto, pode parecer quase incompreensível.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 30-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma chave para entender como isso aconteceu é compreender que muitos bispos católicos não são oriundos de tais lugares – na realidade, uma forte maioria não era – e trazem perspectivas e sensibilidades muito diferentes para a mesa.
Aqui está o roteiro de como chegamos aqui.
O Sínodo dos Bispos de 3 a 28 de outubro sobre “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional” foi aberto contra o pano de fundo de uma tumultuada série de novos capítulos na saga dos abusos, incluindo o condenatório relatório do Grande Júri da Pensilvânia; a renúncia do ex-cardeal Theodore McCarrick; uma polêmica na Austrália sobre a erosão do sigilo do confessionário; laicizações, renúncias dos bispos e novas revelações no Chile; e, é claro, a infame carta do arcebispo italiano Carlo Maria Viganò acusando o Papa Francisco de saber sobre o caso McCarrick e de encobri-lo.
Duas semanas antes de o Sínodo ser aberto, o Vaticano anunciou que Francisco convocaria os presidentes de todas as Conferências Episcopais do mundo a Roma para discutir a proteção das crianças, em 21 e 24 de fevereiro.
Desde o primeiro dia, parecia claro que o Sínodo não iria se esconder em relação ao que havia acontecido. Um dos momentos iniciais mais dramáticos ocorreu quando o arcebispo Anthony Fisher, da Austrália, se dirigiu diretamente aos 36 jovens que estavam junto dos bispos, desculpando-se pelos fracassos das lideranças da Igreja.
Fisher confessou o “fracasso de muitos bispos e de outros em responder apropriadamente quando o abuso foi identificado e em fazer tudo o que estava ao seu alcance para mantê-los seguros”, assim como os “danos causados assim à credibilidade da Igreja e à confiança de vocês”.
Ele recebeu fortes e longos aplausos, e foi seguido por vários outros prelados que abordaram a questão tanto em discursos do plenário quanto nas discussões nos pequenos grupos. Parecia que havia um impulso para uma declaração forte da assembleia.
Avancemos para terça-feira, 23 de outubro, quando os participantes do Sínodo foram apresentados a uma versão preliminar do documento final que eles votariam no sábado, 27 de outubro. Ela continha cinco parágrafos sobre a crise dos abusos, quase 700 palavras ao todo, incluindo estes pontos-chave:
- “Muitas vozes se levantaram para expressar dor e vergonha por esses abusos e a incapacidade de dar respostas adequadas.”
- “Os abusos, em todas as suas formas, representam hoje o principal obstáculo ao exercício da missão”.
- “Por trás da disseminação de uma cultura do abuso, existe um vácuo espiritual que deve ser enfrentado com uma decisiva conversão de coração, mente e práticas pastorais. Infelizmente, a Igreja, de certa forma, acabou assumindo um estilo de exercício do poder que marca a história do mundo, composta por violência e danos aos pequenos e aos vulneráveis.”
- Referia-se a atos de abuso e encobrimento como “esses crimes, pecados e omissões”.
- Confirmava a política de “tolerância zero”.
Na quarta e quinta-feira, os bispos reagiram a esse esboço na assembleia sinodal, oferecendo, no fim, cerca de 340 revisões, adições e exclusões. A seção sobre os abusos foi um dos focos do debate, em que alguns prelados argumentaram que o esboço dava muita atenção aos escândalos, que eles consideravam como um fenômeno largamente ocidental, muito distante das preocupações de outros lugares.
Sobre a “tolerância zero”, alguns bispos reclamaram que se trata de um termo midiático que significa coisas diferentes para pessoas diferentes, sugerindo que ele é repetido frequentemente, mas é pouco claro em termos das suas implicações precisas. Além disso, argumentaram, seria inadequado comprometer o Sínodo com qualquer política específica antes da cúpula do papa em fevereiro sobre o assunto.
(De certa forma, essa é uma objeção curiosa, já que o próprio Francisco endossou repetidamente a “tolerância zero”, dizendo, por exemplo em 2017, que a Igreja “irrevogavelmente e em todos os níveis pretende aplicar o princípio da ‘tolerância zero’ contra o abuso sexual de menores”.)
Embora esses pontos tenham vindo de vários prelados africanos e asiáticos, não se tratou apenas do mundo em desenvolvimento. Alguns dos italianos que desempenharam papéis-chave no Sínodo, por exemplo, sentiam o mesmo.
Quando essa contribuição chegou à comissão de redação composta por 12 membros, cinco deles eleitos pelo Sínodo e sete nomeados de uma forma ou de outra pelo papa, eles responderam. No fim, o documento final contém apenas três parágrafos sobre os abusos, com menos de 500 palavras ao todo, e todos os pontos acima foram eliminados ou modificados. Não há nenhum pedido de desculpas claro e direto nem um compromisso com a “tolerância zero”.
Falando ao Crux na segunda-feira, o cardeal mexicano Carlos Aguiar Retes, membro da comissão de redação, acrescentou algumas outras razões para eliminar a referência à “tolerância zero”.
Em primeiro lugar, disse Aguiar Retes, esse foi um Sínodo sobre os jovens, que o Vaticano define como as pessoas que têm entre 18 e 30 anos, enquanto a “tolerância zero” é uma expressão que se aplica ao abuso sexual de menores.
Segundo, disse, o documento também se refere a outras formas de abuso, e a “tolerância zero” não se aplica a todas exatamente da mesma forma.
Os parágrafos redigidos foram facilmente aprovados durante a votação final no sábado à noite, com um total de “sim” de mais de 200 em cada caso, enquanto os “não” mal chegavam a 30. Isso não significa, no entanto, que todos ficaram satisfeitos. Falando nos bastidores, vários bispos de países afetados pela crise disseram ao Crux que estavam profundamente desapontados.
Entre as pessoas que acompanharam os escândalos de abuso, é comum dizer que é apenas uma questão de tempo até que eles surjam em outros lugares. Alguns acreditam que a Itália será a próxima a cair, ou a Polônia, ou as Filipinas, ou uma grande nação africana como a Nigéria, e outros propõem ainda mais possibilidades. O termo comum é o reconhecimento de que o relógio está contando o tempo, porque tanto a natureza humana quanto a cultura eclesiástica são praticamente as mesmas em todos os lugares.
Esse foi o espírito do arcebispo Peter Comensoli, de Melbourne, Austrália, que disse ao Crux no domingo que o resultado final ilustra que o esforço antiabusos continua sendo um trabalho em andamento, globalmente falando.
“Certas partes da Igreja no mundo estão apenas começando a entender o que significa assumir uma posição de tolerância zero, e o Sínodo é um reflexo da Igreja em todo o mundo”, afirmou.
No entanto, muitos prelados de fora do Ocidente – e, para ser franco, também alguns dentro dele – simplesmente não compram isso. Eles acham que “a crise”, no sentido da pressão midiática, das ações judiciais, dos protestos públicos e assim por diante, é um produto de certas culturas, e dedicar muito tempo e energia globais a ela é um mau conselho. Muitos também se ressentem do modo como os escândalos obscurecem outras narrativas mais positivas sobre a Igreja.
Isso pode não se traduzir em “negação”, mas é um claro contraste no senso de prioridades e urgências e, em alguns aspectos, é tão relevante na vida da Igreja de 2018 quanto era na de 2002, quando a crise dos abusos irrompeu pela primeira vez nos Estados Unidos, e quando a política da “tolerância zero” nasceu.
Talvez outro veredito sobre o Sínodo de 2018, portanto, seja este: talvez a única coisa que realmente mudará o cálculo é se os reformadores estiverem certos, e a crise realmente estiver destinada a explodir em um lugar atrás do outro onde ela ainda não eclodiu.
Caso contrário, é difícil imaginar, após observar 260 bispos de todo o mundo sumirem com a “tolerância zero”, o que mais poderia fazer esse truque.
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Entendendo por que o Sínodo dos Bispos sumiu com a ''tolerância zero'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU